O Globo
Diz-se que saudade é a palavra mais bonita da língua
portuguesa. Minha preferida, pela sonoridade e pela serventia, é falácia.
Luis Fernando Verissimo também se encantou
por ela, imaginando-a como “um animal multiforme que nunca está onde parece
estar”. Num texto clássico do autor, um criador de falácias chora ao vê-las em
quantidade:
— Se elas parecem estar no meu campo, é
porque estão em outro lugar.
Esse outro lugar é o Brasil. Aqui, falácias
abarrotam redes sociais, entrevistas, análises, debates. Uma amostra:
— É um crime contra a criança ensinar em
casa (homeschooling).
Mas matar a criança dentro do útero é bacana (Fernando Ulrich, economista).
Dois espantalhos: ensino doméstico não é crime; não se tem notícia de quem ache bacana matar criança, dentro ou fora do útero. E as afirmações não têm nenhuma relação entre si.
— Eu não entendo essa babaquice de dizer
no face que
essa é a melhor época do ano, com tanta notícia de gente morrendo nas ruas por
causa de frio. (...) No fundo, vocês querem mais é que o frio leve um monte de
pobre pra sepultura (Anderson França, escritor e ativista).
Whataboutismo na veia. Superioridade moral
em cinemascope.
— Um governo sério não precisa de teto de
gastos (...) uma forma que a elite econômica e política encontrou para evitar
que o pobre tivesse aumento nas políticas sociais (Lula, candidato à
Presidência).
A premissa é falsa: o teto de gastos foi
criado para evitar que o governo gaste mais do que arrecada, provocando alta de
juros e inflação (quem paga a conta são os mais pobres). Prognóstico duvidoso:
que um eventual novo governo do PT seja sério.
— Quem é “nem Lula nem Bolsonaro” é
Bolsonaro (Fernando Caruso, humorista).
Falsa dicotomia: só existiriam duas
alternativas; as demais, que não interessam ao humorista, são descartadas.
— Quem vota em Lula só no segundo turno não
tem dignidade (Marcia Tiburi, filósofa e escritora).
Difamação injusta: a dignidade do eleitor
independe da sofreguidão da militância por uma vitória no primeiro turno.
— Time grande tem torcida contra (Fernando
Haddad, candidato ao governo de São Paulo).
Falso silogismo: time grande tem grande
rejeição; Haddad tem 34% de rejeição; logo, é porque seu time (seu partido) é
grande.
— Armar só os professores vai
transformá-los em alvos estratégicos. Única solução: armar e treinar as
crianças. (...) Nós vivemos numa sociedade onde [sic] as crianças são sexualizadas, onde elas podem
fazer cirurgia de cortar o pau fora, (...) onde as crianças vão para a escola
ser doutrinadas, mas armar não pode? Treinar com arma de fogo não pode?
Trabalhar não pode? Ganhar dinheiro não pode? Abrir uma empresa não pode?
Dirigir uma bosta de um veículo não pode? Atirar com fuzil não pode? A criança
não pode ganhar dinheiro, aprender, se deslocar com veículo automotor, não pode
se defender com uma arma, mas pode cortar o pau (Paulo Kogos, empresário e
influenciador digital).
Sem comentários, porque 3 mil toques seriam
insuficientes para dar conta desse showroom de
falácias.
Para mim, falácias são flores roxas,
cultivadas por quem quer nos fazer de trouxas.
Falácias mesmo e algumas absurdas.
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