sábado, 28 de maio de 2022

Eduardo Affonso: Brasil é a capital das falácias para enganar os trouxas

O Globo

Diz-se que saudade é a palavra mais bonita da língua portuguesa. Minha preferida, pela sonoridade e pela serventia, é falácia.

Luis Fernando Verissimo também se encantou por ela, imaginando-a como “um animal multiforme que nunca está onde parece estar”. Num texto clássico do autor, um criador de falácias chora ao vê-las em quantidade:

— Se elas parecem estar no meu campo, é porque estão em outro lugar.

Esse outro lugar é o Brasil. Aqui, falácias abarrotam redes sociais, entrevistas, análises, debates. Uma amostra:

— É um crime contra a criança ensinar em casa (homeschooling). Mas matar a criança dentro do útero é bacana (Fernando Ulrich, economista).

Dois espantalhos: ensino doméstico não é crime; não se tem notícia de quem ache bacana matar criança, dentro ou fora do útero. E as afirmações não têm nenhuma relação entre si.

— Eu não entendo essa babaquice de dizer no face que essa é a melhor época do ano, com tanta notícia de gente morrendo nas ruas por causa de frio. (...) No fundo, vocês querem mais é que o frio leve um monte de pobre pra sepultura (Anderson França, escritor e ativista).

Whataboutismo na veia. Superioridade moral em cinemascope.

— Um governo sério não precisa de teto de gastos (...) uma forma que a elite econômica e política encontrou para evitar que o pobre tivesse aumento nas políticas sociais (Lula, candidato à Presidência).

A premissa é falsa: o teto de gastos foi criado para evitar que o governo gaste mais do que arrecada, provocando alta de juros e inflação (quem paga a conta são os mais pobres). Prognóstico duvidoso: que um eventual novo governo do PT seja sério.

— Quem é “nem Lula nem Bolsonaro” é Bolsonaro (Fernando Caruso, humorista).

Falsa dicotomia: só existiriam duas alternativas; as demais, que não interessam ao humorista, são descartadas.

— Quem vota em Lula só no segundo turno não tem dignidade (Marcia Tiburi, filósofa e escritora).

Difamação injusta: a dignidade do eleitor independe da sofreguidão da militância por uma vitória no primeiro turno.

— Time grande tem torcida contra (Fernando Haddad, candidato ao governo de São Paulo).

Falso silogismo: time grande tem grande rejeição; Haddad tem 34% de rejeição; logo, é porque seu time (seu partido) é grande.

— Armar só os professores vai transformá-los em alvos estratégicos. Única solução: armar e treinar as crianças. (...) Nós vivemos numa sociedade onde [sic] as crianças são sexualizadas, onde elas podem fazer cirurgia de cortar o pau fora, (...) onde as crianças vão para a escola ser doutrinadas, mas armar não pode? Treinar com arma de fogo não pode? Trabalhar não pode? Ganhar dinheiro não pode? Abrir uma empresa não pode? Dirigir uma bosta de um veículo não pode? Atirar com fuzil não pode? A criança não pode ganhar dinheiro, aprender, se deslocar com veículo automotor, não pode se defender com uma arma, mas pode cortar o pau (Paulo Kogos, empresário e influenciador digital).

Sem comentários, porque 3 mil toques seriam insuficientes para dar conta desse showroom de falácias.

Para mim, falácias são flores roxas, cultivadas por quem quer nos fazer de trouxas.

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