O Globo
O massacre em Buffalo, em que um jovem
atirador atingiu 13 pessoas e matou dez, não é uma tragédia isolada no tempo.
Pelo contrário, é sintoma de algo muito grave, que nos atinge a todos,
inclusive brasileiros.
A teoria conspiratória que inspirou o jovem
assassino é muito divulgada nos EUA. É a teoria da grande substituição (great
replacement), segundo a qual os imigrantes são estimulados pelos liberais a
ocupar o país e a formar uma nova maioria. Como consequência, os nativos
brancos perderiam para sempre seu poder de decisão sobre os rumos nacionais.
A teoria conspiratória joga com o medo. Não
é exclusivamente americana, uma vez que o medo é também o combustível da
extrema direita europeia. Na verdade, a teoria da substituição foi lançada na
França pelo escritor Renaud Camus, que tem o mesmo sobrenome do grande Albert
Camus.
A extrema direita em vários países,
inclusive nos EUA, adotou sua tese da grande substituição e a divulga
livremente, no caso americano até em programas de grande audiência na Fox.
Esse medo doentio coloca em perigo todos os imigrantes tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Inclusive os brasileiros. Somos mais de 4 milhões vivendo no exterior, a maioria nos Estados Unidos.
No passado, éramos mais atentos a essa
realidade. Pressionávamos o Itamaraty, criávamos comissões, consulados
itinerantes tornavam a vida dos brasileiros um pouco mais protegida.
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Hoje, não se fala mais nisso. Bolsonaro se
identifica politicamente com as forças que estigmatizam a imigração, tanto que
visitou o truculento primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán.
Existem mais alguns ângulos da tragédia de
Buffalo que merecem o olhar brasileiro. Nove mortos eram negros. O assassino
procurou Buffalo porque era uma região com grande presença negra. Não se
tratava só de reação aos imigrantes, mas também de ódio racial. Esse ódio
racial aparece no Brasil em várias formas, dos insultos aos assassinatos nas
áreas mais pobres.
Ele comprou a arma legalmente, numa loja
que vendia mesmo fuzis de segunda mão. A venda de armas sem limites era até há
pouco tempo algo muito norte-americano. Jair Bolsonaro tem o sonho de tornar as
armas um produto de venda livre e está progressivamente conseguindo ampliar
esse comércio no Brasil.
Com um objetivo eleitoral de armar as
pessoas para se defender do crime, ele, na verdade, quer que se preparem para
uma guerra civil, algo que deixou bem claro numa reunião do ministério
divulgada nacionalmente.
Tudo isso serve para mostrar como as
condições que movem tragédias nos Estados Unidos podem estar se gestando aqui
no Brasil. Sem contar o fato hoje universal de que as plataformas digitais
mudaram o cotidiano. O assassino de Buffalo conseguiu divulgar seus crimes ao
vivo por alguns minutos.
A combinação desses fatores, teorias
conspiratórias, medo e ódio racial, armas vendidas livremente, redes sociais
que estimulam a violência, tudo isso contribui para um clima irrespirável.
Outro dia, lendo “Fim de milênio”, o tomo
final da trilogia de Manuel Castells, constatei a importância que o autor dá
também ao crime organizado, em escala internacional. Ele o vê como subproduto
da incapacidade da globalização de integrar amplos setores, sobretudo
latino-americanos, na economia regular.
Dentro desse espírito de ver o mundo com
algumas de suas conexões, o episódio de Buffalo serviria também para uma
reflexão universal. A teoria conspiratória da extrema direita se alimenta do
fluxo de gente expulsa de suas terras de origem, pelas crises econômicas e por
desastres ambientais. Num país como o Brasil, onde a imigração não é o tema
central, a extrema direita produz outros inimigos, alguns do século passado,
como o comunismo, outros mais recentes, como as minorias.
Buffalo é o sinal de uma encruzilhada.
A extrema-direita está engolindo o mundo.
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