segunda-feira, 23 de maio de 2022

Fernando Gabeira: Massacre em Buffalo é alerta para o Brasil

O Globo

O massacre em Buffalo, em que um jovem atirador atingiu 13 pessoas e matou dez, não é uma tragédia isolada no tempo. Pelo contrário, é sintoma de algo muito grave, que nos atinge a todos, inclusive brasileiros.

A teoria conspiratória que inspirou o jovem assassino é muito divulgada nos EUA. É a teoria da grande substituição (great replacement), segundo a qual os imigrantes são estimulados pelos liberais a ocupar o país e a formar uma nova maioria. Como consequência, os nativos brancos perderiam para sempre seu poder de decisão sobre os rumos nacionais.

A teoria conspiratória joga com o medo. Não é exclusivamente americana, uma vez que o medo é também o combustível da extrema direita europeia. Na verdade, a teoria da substituição foi lançada na França pelo escritor Renaud Camus, que tem o mesmo sobrenome do grande Albert Camus.

A extrema direita em vários países, inclusive nos EUA, adotou sua tese da grande substituição e a divulga livremente, no caso americano até em programas de grande audiência na Fox.

Esse medo doentio coloca em perigo todos os imigrantes tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Inclusive os brasileiros. Somos mais de 4 milhões vivendo no exterior, a maioria nos Estados Unidos.

No passado, éramos mais atentos a essa realidade. Pressionávamos o Itamaraty, criávamos comissões, consulados itinerantes tornavam a vida dos brasileiros um pouco mais protegida.

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Hoje, não se fala mais nisso. Bolsonaro se identifica politicamente com as forças que estigmatizam a imigração, tanto que visitou o truculento primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán.

Existem mais alguns ângulos da tragédia de Buffalo que merecem o olhar brasileiro. Nove mortos eram negros. O assassino procurou Buffalo porque era uma região com grande presença negra. Não se tratava só de reação aos imigrantes, mas também de ódio racial. Esse ódio racial aparece no Brasil em várias formas, dos insultos aos assassinatos nas áreas mais pobres.

Ele comprou a arma legalmente, numa loja que vendia mesmo fuzis de segunda mão. A venda de armas sem limites era até há pouco tempo algo muito norte-americano. Jair Bolsonaro tem o sonho de tornar as armas um produto de venda livre e está progressivamente conseguindo ampliar esse comércio no Brasil.

Com um objetivo eleitoral de armar as pessoas para se defender do crime, ele, na verdade, quer que se preparem para uma guerra civil, algo que deixou bem claro numa reunião do ministério divulgada nacionalmente.

Tudo isso serve para mostrar como as condições que movem tragédias nos Estados Unidos podem estar se gestando aqui no Brasil. Sem contar o fato hoje universal de que as plataformas digitais mudaram o cotidiano. O assassino de Buffalo conseguiu divulgar seus crimes ao vivo por alguns minutos.

A combinação desses fatores, teorias conspiratórias, medo e ódio racial, armas vendidas livremente, redes sociais que estimulam a violência, tudo isso contribui para um clima irrespirável.

Outro dia, lendo “Fim de milênio”, o tomo final da trilogia de Manuel Castells, constatei a importância que o autor dá também ao crime organizado, em escala internacional. Ele o vê como subproduto da incapacidade da globalização de integrar amplos setores, sobretudo latino-americanos, na economia regular.

Dentro desse espírito de ver o mundo com algumas de suas conexões, o episódio de Buffalo serviria também para uma reflexão universal. A teoria conspiratória da extrema direita se alimenta do fluxo de gente expulsa de suas terras de origem, pelas crises econômicas e por desastres ambientais. Num país como o Brasil, onde a imigração não é o tema central, a extrema direita produz outros inimigos, alguns do século passado, como o comunismo, outros mais recentes, como as minorias.

Buffalo é o sinal de uma encruzilhada.

 

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