quinta-feira, 5 de maio de 2022

Maria Cristina Fernandes: Para não desviar o foco sobre o Brasil

Valor Econômico

Rede de proteção à democracia rejeita marola na Ucrânia

Luiz Inácio Lula da Silva arrancou uma capa deferente da revista “Time”. Ponto para o ex-presidente. Ao contrário de seu adversário na disputa presidencial, é reconhecido como um democrata no resto do mundo. Se já ganhou esta batalha, ainda não venceu a eleição. Por isso, Lula poderia ter feito melhor uso da entrevista. E por quê?

Há cerca de um mês, o senador Jaques Wagner (PT-BA), que estava nos Estados Unidos para participar de um seminário na Universidade de Harvard, foi chamado a Washington para uma conversa com Juan González, assistente especial do presidente Joe Biden e diretor para o Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional.

Lá foram explicitadas as preocupações do governo americano com os rumos da gestão Jair Bolsonaro, a consciência de que a corda foi demasiadamente esticada com a Venezuela e a expectativa de boas relações entre os dois países num eventual governo Luiz Inácio Lula da Silva. O senador, compreensivelmente, não confirma o encontro, relatado por duas outras fontes.

Dias depois, o presidente Joe Biden tomou a iniciativa de defender recompensas financeiras para que o Brasil mantenha suas florestas em pé e enviou dois subsecretários de Estado, Jose Fernandez e Victoria Nuland ao país.

Nunca dois subsecretários tinham vindo juntos ao país. O primeiro valorizou a participação do Brasil nas cadeias de suprimento da economia global e a segunda cuidou de reafirmar a crença americana no processo eleitoral brasileiro desacreditado dia sim e no outro também pelo presidente Jair Bolsonaro. Foi a segunda alta burocrata americana a verbalizar esta posição. O primeiro foi González.

Na mesma época, o tuíte de Lula em apoio à reeleição do presidente francês foi a mensagem mais compartilhada do perfil de campanha de Emmanuel Macron na última semana do segundo turno.

Macron manteve a mesma deferência demonstrada no fim do ano passado quando o pré-candidato petista teve honras de chefe de Estado no Palácio do Eliseu. Nesta viagem a Europa, Lula também foi recebido pelo recém-eleito primeiro-ministro alemão, Olaf Sholz, e pelo primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sánchez, lideranças com as quais o presidente Jair Bolsonaro nunca conseguiu encontrar ao longo de seu mandato.

O sucesso desta viagem, simbolizado pelos aplausos em pé dos integrantes do Parlamento Europeu, foi tamanho que o pré-candidato petista até desistiu de programar outras viagens ao Hemisfério Norte. Na linha do “se melhorar, estraga”.

A eclosão da guerra da Ucrânia deu ainda mais centralidade ao papel do Brasil. A viagem de Bolsonaro a Moscou acabou, paradoxalmente, favorecendo Lula. Se o sinal já estava amarelo na direção do Brasil, o apoio do presidente brasileiro a Vladimir Putin acabou por acender luzes vermelhas em direção ao futuro do Brasil sob mãos bolsonaristas.

A boa vontade dos Estados Unidos com o Brasil é, por óbvio, parte da estratégia para isolar a Rússia. A ressurreição do acordo entre o Mercosul e a União Europeia também é um efeito da necessidade de se fortalecer a segurança energética e alimentar em decorrência dos tremores da geopolítica.

Em função disso, não apenas a agenda internacional de Lula em direção à Ásia não prosperou, como conselheiros graduados de sua política externa, como Celso Amorim, têm se mantido discretos sobre temas que lhe são caros, como o Brics, bloco do qual o ex-chanceler petista é padrinho.

Ninguém lá fora confia em Bolsonaro, constata um amigo de Lula. Por isso, o momento é de administrar a maré favorável à oposição no Brasil. Não é por cinismo, mas por óbvio. A mais recente briga entre o Palácio do Planalto e o Itamaraty se deu por um voto contrário do Brasil à Arábia Saudita no conflito do Iêmen, contrariando interesses particulares de um dos filhos atiradores do presidente.

Se Lula não precisa incluir em seu programa de governo, em seu discurso e em seus encontros qualquer compromisso formal com outras potências, tampouco parece necessário colocar em pé de igualdade a responsabilidade de Vladimir Putin e Volodymyir Zelensky pelo desfecho da guerra da Ucrânia.

O próprio Lula já havia condenado Putin, em consonância com a posição de que os princípios do direito internacional estão acima de tudo e a afronta à integridade territorial de uma nação não se justifica em nenhuma hipótese. Não precisa ombrear Putin e Zelensky para valorizar sua rejeição à Otan e propostas de diálogo e de reforma da governança mundial.

Não se trata de um deslize. É fruto de um Lula ainda imerso na percepção de que o objetivo da eleição não é derrotar Bolsonaro mas, sim, levar o petista de volta ao poder. Com a palavra, o ex-presidente: “Há uma expectativa de que eu volte a presidir o país porque as pessoas têm boas lembranças do tempo em que eu fui presidente”. Mais de um terço dos que vão votar em outubro não eram eleitores quando o PT chegou ao poder.

De tão ensimesmado, Lula fez pouco caso, na entrevista, das propostas do candidato da esquerda colombiana nas eleições presidenciais de junho, Gustavo Petro, para os combustíveis fósseis. E qual é mesmo a proposta do pré-candidato petista para a mudança climática?

Se isso já seria preocupante numa campanha polarizada entre dois candidatos democratas, toma contornos mais delicados numa disputa em que seu principal adversário não apenas questiona a lisura das eleições como empurra as Forças Armadas a agir da mesma forma.

As declarações de Lula aconteceram num momento em que o entorno menos ideológico do ex-presidente já não via ameaça à soberania nacional na observação eleitoral pela União Europeia. Se a OEA participou em 2018, por que a União Européia, que atuou como observadora na Colômbia, no Chile e no Peru, não poderia fazer o mesmo? A pergunta é de um aliado do ex-presidente.

O desconvite brasileiro aos observadores europeus, é bem verdade, pode sair pela culatra. A atenção pode vir a ser redobrada em relação ao que se passará no Brasil. Desde que o candidato petista esteja focado em fazer o resto do mundo acreditar que também ganha com a alternância de poder no país.

 

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