O Globo
À falta de coisa melhor na política, num
momento em que a radicalização leva a situações surreais no país, dedico este
espaço a um encontro acontecido no leito de morte de Machado de Assis em sua
casa no Cosme Velho, que não existe mais pela incúria de nossa política
cultural. Um encontro entre um jovem estudante, que se tornaria importante
figura da política nacional, e o maior escritor brasileiro.
Foi assim que Euclides da Cunha descreveu o encontro, no Jornal do Commercio de
30 de setembro de 1908:
“Neste momento, precisamente ao anunciar-se esse juízo desalentado, ouviram-se
umas tímidas pancadas na porta principal da entrada. Abriram-na. Apareceu um
desconhecido: um adolescente, de 16 ou 18 anos, no máximo.
Perguntaram-lhe o nome. Declarou ser desnecessário dizê-lo: ninguém ali o
conhecia; não conhecia por sua vez ninguém; não conhecia o próprio dono da
casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o encantavam. Por isso, ao ler
nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo, tivera o
pensamento de visitá-lo. Relutara contra essa ideia, não tendo quem o
apresentasse: mas não lograva vencê-la. Que o desculpassem, portanto. Se lhe
não era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias certas de seu estado.
E o anônimo juvenil — vindo da noite — foi conduzido ao quarto do doente.
Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre, beijou-a num
belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito.
Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.
À porta, José Veríssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lho.
Mas deve ficar anônimo. Qualquer que seja o destino desta criança, ela nunca
mais subirá tanto na vida. Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela
alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo — no meio segundo em que ele
estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior
homem de sua terra.
Ele saiu — e houve na sala, há pouco invadida de desalentos, uma
transfiguração.”
Estavam reunidos na casa, relata Euclides, grandes intelectuais como Coelho
Neto, Graça Aranha, Mário de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Correia e
Rodrigo Otávio. O nome ficou guardado durante muitos anos, até que a escritora
Lúcia Miguel Pereira revelou, em 1936, ser Astrojildo Pereira, que viria a se tornar
escritor, jornalista, crítico literário e entraria na História do Brasil como
fundador do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que completa 100 anos.
Grandes homens de um Brasil que não existe mais.
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