terça-feira, 3 de maio de 2022

Merval Pereira: Máquina do tempo

O Globo

Nos anos 90, ficou famosa no Rio a história de um velho comunista que, para comemorar os 60 anos, soprou as velinhas colocadas sobre confeitos em forma da foice e do martelo e, em vez do tradicional “Parabéns para você”, foi saudado pelos amigos com o hino da Internacional Socialista. Já àquela altura, com a queda do Muro de Berlim, era um ato simbólico extemporâneo de antigos membros do Partidão, um saudosismo inofensivo, quase juvenil.

O que dizer de Geraldo Alckmim, outrora acusado de ser do Opus Dei, ouvindo (não acredito que conhecesse a letra para cantá-la) a Internacional Socialista todo empertigado, numa reunião do Partido Socialista Brasileiro (PSB), ao lado do ex-presidente Lula? Se nos anos 90 já era apenas um retrato na parede da memória, o que será agora?

Tão surpreendente quanto anacrônico, o ato é uma amostra fiel do que vem sendo a campanha de Lula, que diz que criará uma moeda latino-americana para não depender mais do dólar. Fatos como esse do hino socialista, ou da crítica aos policiais, que o obrigou a desculpar-se de público, ajudam Bolsonaro a espalhar o medo entre eleitores de centro-direita que, desapontados com ele, pensam em votar em Lula. O medo, já ensina o sociólogo Manuel Castells, é um grande impulsionador nas escolhas eleitorais.

Por caminhos distintos, Lula e Bolsonaro chegam ao mesmo antiamericanismo infantil. O Itamaraty na época de Lula tinha um viés esquerdista que permanece nas suas declarações e atitudes políticas até hoje, Estados Unidos relegados a segundo plano na estrutura de nossa diplomacia. Até não falar inglês chegou a ser considerado para os alunos do Instituto Rio Branco.

Bolsonaro acaba de fazer uma reforma estrutural no Itamaraty que também relega os Estados Unidos a um departamento em que nem mesmo o nome do país aparece: “Departamento do Caribe, América Central e do Norte”, chama-se agora.

O fracasso relativo das manifestações pelo Dia do Trabalhador, no domingo passado, mostra que, a esta altura da campanha, nem Lula nem Bolsonaro conseguem entusiasmar os eleitores. O atual presidente já esteve pior, e o ex melhor. Lula está à frente nas pesquisas, mas não empolga mais como antigamente, tem cometido erros com frequência, falado muita bobagem e sido obrigado a pedir desculpas. Sinal de que não está na melhor forma.

Bolsonaro esvaziou sua própria manifestação, pois sentiu que não era um bom momento. Não por bom senso, mas por falta de força. Estamos vendo que os dois candidatos se destacam por falta de alternativa, não têm mais a repercussão popular que já tiveram, especialmente Lula. Além de se ajudarem mutuamente alimentando a polarização, têm cometido erros primários que beneficiam o opositor, principalmente Lula.

Quando repete que fortalecerá o Brics, mas que para isso tem de mandar Putin parar “essa porra de guerra”, Lula volta a ser aquele que queria ganhar o Prêmio Nobel da Paz tentando mediar a crise nuclear do Irã sem a menor condição geopolítica de obter sucesso. Dá chance a Bolsonaro de criticar a proposta de resolver a guerra tomando cerveja e se despe da fantasia de líder mundial, para assumir a realidade de um falastrão de mesa de bar.

Bolsonaro, por seu lado, também se meteu a mediador da guerra na Ucrânia, atribuindo a si um suposto recuo de Putin depois de uma conversa a dois. A patacoada virou pó na esteira dos tanques russos invadindo território ucraniano, poucos dias depois da jactância jeca.

Vivemos uma situação muito delicada, e o caminho até as eleições será tumultuado, especialmente porque Bolsonaro joga tudo na desconfiança das urnas. Ele faz ao mesmo tempo campanha para se reeleger e um hedge para se proteger em caso de derrota. É do tipo que avança e recua. Temia-se que participasse das manifestações de 1º de Maio de forma agressiva, e não aconteceu.

Certamente, não quis esticar a corda, como se pensava, mas só a presença dele em atos em que o (ainda?) deputado federal Daniel Silveira era defendido e o Supremo Tribunal Federal (STF) atacado não é um bom sinal. No Nordeste, Lula é fortíssimo, mas em São Paulo já começa a ser superado por Bolsonaro, e algumas pesquisas sugerem um empate técnico em regiões como Sul, Sudeste e Centro-Oeste.

Os dois estão com dificuldades nos seus campos e têm sorte de não ter aparecido nenhum candidato que mobilize o eleitorado para uma disputa maior pelo segundo turno. Tanto Lula quanto Bolsonaro terão campanha mais difícil do que imaginaram. Trata-se de uma disputa entre um líder envelhecido, que não fez um aggiornamento, contra outro, envilecido, ambos recuando no passado numa máquina do tempo enferrujada.

 

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