quarta-feira, 4 de maio de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

Vendilhões da democracia

O Estado de S. Paulo

É estarrecedor que membros de MDB e PSDB, partidos ligados às lutas democráticas, sejam coniventes com Bolsonaro. Por benefícios de curto prazo, transigem com princípios inegociáveis

É triste constatar que a maioria do MDB, partido cuja história está diretamente vinculada à restauração da democracia no País e à Constituição de 1988, não veja problemas em aderir ao bolsonarismo. Segundo revelou o Estadão, se o MDB declinar da decisão de ter candidatura própria ao Palácio do Planalto, a maioria do partido inclina-se por apoiar a reeleição de Jair Bolsonaro. Os dados são de uma sondagem feita pelo MDB entre seus prefeitos, bancadas e delegados eleitos pelos diretórios estaduais.

Ainda que não diminua sua responsabilidade, é preciso reconhecer que o MDB não está sozinho nessa proximidade com o presidente da República que afronta as instituições, põe em dúvida o processo eleitoral e tenta envolver as Forças Armadas em devaneios golpistas. Também parte significativa do PSDB, especialmente na Câmara dos Deputados, não vê empecilhos em alinhar-se ao bolsonarismo. Citam-se os dois partidos por seu histórico de defesa do regime democrático, mas há também outras legendas que tratam Jair Bolsonaro como um útil parceiro.

Observa-se, assim, um nítido decaimento da consciência cívica não apenas em parte da população – há, por exemplo, quem saia à rua para pedir o fechamento da Corte constitucional –, mas da própria classe política. É um nível de retrocesso ainda mais preocupante, pois se dá em pessoas que, pela própria trajetória profissional, deveriam ser especialmente cuidadosas com o regime democrático e as suas instituições. Como um deputado, por exemplo, pode apoiar um presidente da República que questiona, sem nenhuma prova, a lisura das eleições? Como um parlamentar pode apoiar um movimento político que, entre suas causas, defende o AI-5, pede o fechamento do Congresso e postula o retorno da ditadura militar?

É constrangedor, deve-se admitir, que parte da população defenda essas barbaridades, numa imitação irrefletida do que Jair Bolsonaro defendeu ao longo de sua carreira política. Nenhuma das bandeiras antidemocráticas do bolsonarismo ajuda a resolver, por mínimo que seja, algum dos problemas e desafios nacionais. Além disso, não faz sentido que alguém que se considere defensor das liberdades de expressão e de opinião manifeste apoio à reedição do AI-5. Agir assim expressa profunda ignorância histórica, constitui evidente manipulação política.

Mas ainda mais chocante e constrangedor é constatar que partidos políticos que, de uma forma ou de outra, participaram da luta pela redemocratização – o PSDB, por exemplo, nasceu do MDB, que era oposição ao governo militar – sejam coniventes com a agenda bolsonarista. Nessa indignação aqui não há nenhuma ingenuidade. É notório que esses partidos, especialmente os seus grupos mais próximos ao bolsonarismo, estão sendo fartamente alimentados pelo governo federal por meio das mais variadas emendas e de outras verbas públicas. Ninguém esconde isso, nem mesmo Jair Bolsonaro. Com sua falta de modos, o bolsonarismo instaurou em Brasília um ambiente de escárnio em relação à compra de apoio político. Tudo é respondido com um “e daí?”.

O grande problema, para o qual os partidos perigosamente fazem vista grossa, é que o bolsonarismo não é apenas um governo fraco e omisso, com o qual políticos hábeis podem lucrar muito no curto prazo. Jair Bolsonaro ameaça o livre funcionamento das instituições, a começar pela Justiça Eleitoral. Ou seja, ele coloca em risco a própria continuidade dos partidos. Na contagem paralela de votos do bolsonarismo, quem garante que os votos dados para o MDB e o PSDB irão mesmo para os dois partidos? No sonho bolsonarista de ter um Judiciário refém do Executivo, não há espaço para demandas contrárias aos interesses de Jair Bolsonaro.

A conivência dos partidos, especialmente MDB e PSDB, com o golpismo de Jair Bolsonaro é muito perigosa. Tolera-se o intolerável. Normaliza-se um antirrepublicano e inconstitucional exercício do poder. E tudo isso vindo de legendas que, como se viu nas eleições de 2020, não precisam de Jair Bolsonaro para ser competitivas nas urnas.

Muito ajuda quem não atrapalha

O Estado de S. Paulo

Amplas incertezas econômicas, agravadas pela produtiva usina de crises do Palácio do Planalto, afastam investidores dos leilões de infraestrutura

Inflação em patamares que não eram vistos há décadas, taxa básica de juros nas alturas, desemprego elevado e crescimento pífio afetam o dia a dia da população, mas também os negócios. A combinação entre um governo populista como o de Jair Bolsonaro, o desarranjo causado pela pandemia de covid-19 nas cadeias produtivas mundiais, a insistência da China em adotar quarentenas draconianas e a guerra entre Rússia e Ucrânia são a representação de uma tempestade perfeita. Em tempos conturbados, o investidor prudente prefere aguardar a passagem da crise antes de tomar uma decisão, algo que costuma ter efeitos nefastos para países emergentes como o Brasil.

As consequências mais claras dessa instabilidade têm sido vistas nos leilões de infraestrutura cancelados nas últimas semanas e foram coroadas com a postergação da licitação do Rodoanel Norte pelo governo de São Paulo. Com 44 quilômetros de extensão e previsão de conclusão em agosto de 2025, cortando os municípios de São Paulo, Arujá e Guarulhos, o projeto exigiria investimentos de R$ 4,1 bilhões em obras e despesas de operação e manutenção ao longo de 31 anos de concessão. A Agência de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp) justificou o adiamento ao mencionar as incertezas do cenário macroeconômico interno e externo e a alta de preços de insumos.

Quando nem mesmo um projeto que tem demanda certa na maior cidade brasileira consegue atrair interessados, não se pode esperar nada diferente de outras localidades. A disputa pelo Rodoanel Metropolitano de Belo Horizonte foi adiada para julho. A Secretaria de Estado de Infraestrutura e Mobilidade de Minas Gerais disse que a extensão do prazo visa a garantir a ampla concorrência e dar tempo para empresas estrangeiras providenciarem a documentação exigida pelo edital. A licitação da BR 381-262, que liga Belo Horizonte e Governador Valadares a Vitória, foi adiada por três vezes antes de ser finalmente suspensa em fevereiro, quando a União admitiu a necessidade de fazer ajustes no edital para atrair os potenciais interessados. Por ajuste, leia-se elevar as taxas de retorno dos empreendimentos.

O problema não atinge apenas as novas concessões. O avanço do preço dos insumos da construção civil tem levado entidades empresariais a encomendarem estudos que ensejem futuros pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro por parte das operadoras – e, consequentemente, tarifas de pedágio e serviços de transporte de carga mais caros. Enquanto os reajustes costumam ter o IPCA como referência, a disparada de itens básicos para rodovias e ferrovias, como diesel, cimento, aço e asfalto, gerou um descasamento entre receitas e despesas e pode colocar em xeque a sustentabilidade dos projetos já leiloados. A secretária de Fomento, Planejamento e Parcerias do Ministério da Infraestrutura, Natália Marcassa, rejeitou uma solução única para todos e disse ao Estadão/Broadcast que é preciso analisar as situações caso a caso.

Às incertezas econômicas somam-se as políticas. Enquanto as licitações patinam, o tempo corrói a qualidade da deficiente infraestrutura nacional e a lista de obras paradas só aumenta, o presidente Jair Bolsonaro faz campanha antecipada, participa de atos antidemocráticos e questiona a confiabilidade do processo eleitoral. Com o menor nível de investimento público da história, o governo reservou apenas R$ 42,3 bilhões para todos os ministérios e privilegiou a área militar e as emendas de relator do Centrão. Em uma peça orçamentária engessada por 95% de despesas obrigatórias, é arrogância achar que o investimento público algum dia vai superar o privado. Mas a premissa que garante o apetite desse setor, além de um marco regulatório e jurídico adequado, é um ambiente macroeconômico saudável e estável, com controle da inflação, equilíbrio fiscal e juros civilizados, o contrário do que o Brasil tem apresentado. Sem capacidade econômica e financeira para resolver gargalos históricos do País, o governo faria muito se, ao menos, não atrapalhasse.

Indústria à espera de uma política

O Estado de S. Paulo

A indústria cresceu em fevereiro e março, mas continua longe de retomar o dinamismo perdido há uma década

Promover a recuperação e a modernização da indústria deveria ser prioridade do governo federal, se houvesse um presidente e uma equipe econômica interessados na prosperidade do País. Enquanto se espera a mudança no centro do poder, prossegue o retrocesso da economia. Dois meses de crescimento – 0,7% em fevereiro e 0,3% em março – foram insuficientes para a indústria compensar a perda de 2% em janeiro e fechar o primeiro trimestre no azul e em melhor condição do que antes da pandemia. Liderados pelo setor automobilístico, 14 dos 26 ramos cobertos pela pesquisa mensal produziram mais em março do que no mês anterior. Mas a média trimestral ainda ficou 0,4% abaixo daquela registrada nos três meses finais de 2021. Além disso, o volume acumulado em 2022 foi 4,5% inferior ao de um ano antes. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A produção de março ficou 2,1% abaixo daquela observada 12 meses antes. Pelo oitavo mês consecutivo, essa comparação mostrou recuo. Além disso, o volume produzido em março foi 2,1% menor que o de fevereiro de 2020, antes dos danos causados pela pandemia.

Como tem ocorrido em muitos países, a atividade industrial tem sido prejudicada, no Brasil, por desajustes globais. Primeiro ocorreram problemas de suprimento decorrentes da pandemia. Houve dificuldades de transporte e falhas na produção de semicondutores e de outros insumos. Depois vieram desarranjos na oferta de petróleo, gás e cereais, causados pela agressão russa à Ucrânia. A recente baixa da produção chinesa, resultante de restrições vinculadas a um surto de covid-19, complicou o cenário. Desde o começo da pandemia, os desajustes de suprimento e de produção foram agravados pela alta de preços.

A onda inflacionária vem sendo enfrentada em várias economias, incluídas a americana e a brasileira, com aumentos de juros destinados a conter a demanda. Também essa política deve arrefecer o crescimento industrial. No Brasil, o efeito tende a ser mais doloroso, porque o mercado interno vem sendo, há mais tempo, afetado pelo desemprego e pela redução da renda familiar. A persistência da inflação, já acima de 12% em 12 meses, torna mais difícil a recuperação da atividade. Mesmo com alguma melhora, a maior parte das projeções indica expansão econômica abaixo de 1% neste ano. A mediana das estimativas aponta crescimento de apenas 1% em 2023.

A crise da indústria, no Brasil, é muito mais que um problema conjuntural. O setor mostrou pouco dinamismo na maior parte dos últimos dez anos. Depois do tombo de 2020, ocasionado pela pandemia, houve forte reação da atividade em muitos países. No Brasil, a indústria de transformação produziu 4,9% mais que em 2020, mal conseguindo compensar a perda de 4,8%, de acordo com os dados da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Unido). A indústria de transformação brasileira ficou em 82.º lugar numa lista de 113 países. Se o próximo governo der alguma atenção a esses fatos, o futuro será mais animador.

É preciso resgatar critérios técnicos no Orçamento

O Globo

Uma das involuções mais relevantes no Brasil de Jair Bolsonaro foi a disseminação do dispositivo orçamentário conhecido por “emenda do relator” ou pela sigla RP9, que resultou no famigerado “orçamento secreto” operado pelas lideranças do Congresso. Usadas pelo governo como moeda de troca com o Legislativo, essas emendas alcançam cifras gigantescas (R$ 38,1 bilhões em 2020 e 2021, em valores corrigidos). Reportagem do GLOBO revelou que metade dos repasses às prefeituras nesses dois anos ficou concentrada em 7,7%, ou 422, dos 5.570 municípios do país.

A escolha não foi feita com base em critérios técnicos, privilegiando regiões e populações mais necessitadas. A concentração dos recursos é meramente fruto dos interesses políticos de aliados de Bolsonaro. O dinheiro tem como objetivo fortalecer os interesses paroquiais.

Tome o caso de Petrolina (PE), base eleitoral de Fernando Bezerra Coelho (MDB), líder do governo no Senado até o fim do ano passado. É uma das seis cidades mais ricas do estado e recebeu R$ 173,6 milhões entre 2020 e 2021 (em valores atualizados até dezembro). Governada até março pelo filho de Bezerra Coelho, foi o município que mais ganhou verbas das emendas no período. O deputado Domingos Neto (PSD), relator do orçamento de 2020, privilegiou a pequena Tauá (CE), governada por Patrícia Aguiar, sua mãe, com R$ 172,3 milhões. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), principal operador do orçamento secreto, segue a mesma toada em Alagoas.

Outra inovação perversa do Congresso é o salto na parcela das emendas individuais dos parlamentares repassada a prefeituras sem necessidade de apresentar projeto nem de fiscalização pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Conhecidas como “emendas cheque em branco” ou “Pix”, elas quase triplicaram no ano passado, alcançando R$ 1,87 bilhão (num total de R$ 8,47 bilhões). No Orçamento de 2022, estão previstos R$ 3,28 bilhões.

É certo que parlamentos têm como uma de suas prerrogativas determinar para onde vão os gastos públicos. Também é verdade que, no Brasil, é indecente a fatia do Orçamento cujo destino já é carimbado (quase 95%). No México, o percentual é de aproximadamente 80%, e no Chile 65%, segundo estudo do Banco Mundial. Os defensores das emendas do relator partem dessa realidade, que deveria ser revisada, para justificar todo tipo de distorção. Além de basear decisões somente em cálculos políticos, apostam na falta de transparência. São naturais as suspeitas de irregularidades.

Noutros países, regras técnicas são impostas para eleger prioridades, e recursos são destinados aos locais que mais precisam, sem acobertar indícios de corrupção. Num país como o Brasil, onde há escassez crônica de recursos e os impostos já são sufocantes, seria o mínimo a exigir do Parlamento.

No caso do orçamento secreto, não basta apenas cumprir a determinação do Supremo Tribunal Federal e revelar quem são todos os políticos responsáveis pelas destinações. É preciso que haja justificativas técnicas, sensatas e livres de roubalheiras. A escolha de Bolsonaro foi clara: pagar a blindagem do seu governo com a entrega de bilhões nas mãos de lideranças do Congresso para que possam agradar a suas bases. Os parlamentares ganham; o Brasil perde.

No país dos absurdos, clubes de tiro proliferam enquanto faltam escolas

O Globo

É lamentável constatar que, enquanto faltam escolas — pelo menos 3.500 não foram concluídas por falta de verba —, os clubes de tiro se multiplicam, alguns instalados a curta distância de estabelecimentos de ensino. Como revelou reportagem do GLOBO, dados obtidos pelos institutos Igarapé e Sou da Paz, com base na Lei de Acesso à Informação, mostram que, em 2021, 457 novos clubes de tiro desportivo foram abertos em território nacional, mais de um por dia. Em relação ao ano anterior, o aumento foi de 34%.

A estatística tende a aumentar. Apenas nos três primeiros meses de 2022 foram criados 268, quase três por dia. No Brasil, já há 2.070 clubes e estandes de tiro, de acordo com o Exército, responsável pela fiscalização. A questão não é só a quantidade, mas também a localização. Em Santo Augusto, no interior do Rio Grande do Sul, a Prefeitura sancionou uma lei proibindo clubes de tiro perto de escolas. A decisão foi motivada por um estande situado a cerca de 200 metros de salas de aula.

Não surpreende que a atividade tenha crescido concomitantemente ao afrouxamento da legislação. Desde que assumiu, em 2019, o presidente Jair Bolsonaro já publicou mais de 30 normas facilitando a compra e o porte de armas e munições, além de ter dificultado o rastreamento. O desmonte do Estatuto do Desarmamento levou a um aumento do arsenal. Reportagem do GLOBO mostrou que o registro de novas armas de fogo por civis bateu recorde em 2021, chegando a 204.314, o quádruplo do que havia em 2018.

O registro de Caçador, Atirador ou Colecionador (CAC) virou febre. Até bandidos obtêm licença. Em janeiro, foram apreendidas no Rio 65 armas compradas legalmente por um CAC. O destino era uma facção criminosa. A fiscalização tem se mostrado inócua. Em 2020, o Exército vistoriou 2,3% dos arsenais privados do país, ou 7.234 de 311.908 locais, entre residências dos CACs, lojas e clubes de tiro.

O que justifica a multiplicação perigosa e absurda dos clubes de tiro? Certamente não é o agravamento da violência, cujos índices têm se mantido relativamente estáveis nos últimos anos, com pequenas oscilações.

Ainda que o motivo fosse esse, não faria sentido. O que combate a criminalidade não são ações individuais, mas políticas públicas. Bolsonaro foi incapaz de apresentá-las ou mesmo de formulá-las em três anos e meio de governo. Alguém acha que estará mais seguro porque tem arma e aprendeu a atirar? Não são poucas as mortes de policiais, treinados e experientes, fora de confrontos. Quando arma os cidadãos, o país opta por um caminho comprovadamente perigoso, de acordo com todos os estudos acadêmicos sérios.

Em vez de incentivar a prática de tiro e criar oportunidades a milícias particulares, o governo deveria adotar outras prioridades no combate ao crime. É verdade que os clubes de tiro, entidades privadas, podem nem ter relação com a violência. Mas uma coisa é certa: investir em boas escolas e bons professores é o melhor caminho para oferecer um futuro aos jovens tragados pela criminalidade por falta de opção.

Lucidez fardada

Folha de S. Paulo

Comandante da PM paulista delineia fronteira óbvia entre corporação e política

Dadas as tensões políticas e institucionais dos últimos tempos, estimuladas por Jair Bolsonaro (PL), há ocasiões em que uma autoridade pública merece ser elogiada simplesmente por dizer o óbvio.

Nesse contexto, acerta o novo comandante da Polícia Militar de São Paulo —maior força do gênero do país, com 83 mil integrantes. Disse o coronel Ronaldo Miguel Vieira à Folha: "Estamos em um Estado democrático de Direito, temos de respeitar a opinião de todas as pessoas e as preferências políticas. Só que política é fora de quartel".

Ao delinear uma fronteira entre corporação e política, a observação de Vieira não diz respeito apenas ao panorama mais recente.

Desde que eclodiram os grandes movimentos de policiais no pós-redemocratização, nos anos 1990, a ideia de reivindicações e protestos vindos de pessoas com armas na mão assusta governantes e sociedade. De 1992 para cá, 18% das intervenções das Forças Armadas a pedido de administrações locais ocorreram devido a motins.

O Supremo Tribunal Federal enfim estendeu, em 2017, a proibição de sindicalização e direito de greve às polícias, nos moldes fixados pela Constituição às Forças Armadas.

Regramento claro, mas contestado com estímulo dado por um novo tipo de político, cujo maior expoente é o atual presidente. Bolsonaro, que sempre atuou como militar sindicalista, buscou apoiar e instrumentalizar tais ações.

No Ceará, em 2020, o chefe da Força Nacional de Segurança Pública, tropa encarregada de lidar com esses incidentes, chegou a confraternizar com os amotinados. O bolsonarismo amplia, desse modo, a estratégia intimidatória também empregada com os militares.

Até aqui, instituições e forças políticas contiveram boa parte da ofensiva. O Congresso não deixou andar a federalização do controle das PMs; em São Paulo, um coronel que incentivou atos antidemocráticos foi afastado em 2021.

Permanecem espasmos, todavia, como o ataque policial a manifestantes em Recife, no ano passado. O risco não deve ser desprezado.

Há ainda o impacto na segurança pública. Também em São Paulo, a bem-sucedida iniciativa de instalar câmeras corporais nos policiais ficou sob fogo do candidato bolsonarista ao governo estadual, Tarcísio de Freitas (Republicanos).

Ele diz que elas colocam em risco a eficácia da PM —enquanto a letalidade policial caiu 85% nos batalhões em que os artefatos foram adotados nos sete meses finais de 2021, em comparação com o mesmo período do ano anterior. As mortes de agentes em tiroteios seguiram uma tendência similar.

O endosso do comandante Vieira ao programa de câmeras é, portanto, mais uma obviedade necessária.

Efeito Índia

Folha de S. Paulo

Calor extremo prejudica saúde e colheita do trigo no 2º maior produtor mundial

A Índia teve o março mais quente desde os primeiros registros, há 122 anos. No Paquistão, o pior em 61 anos. Mais de 1 bilhão de pessoas sofrem com a onda de calor que chegou mais cedo e com mais impacto em 2022, local e globalmente.

Na média as temperaturas estão mais de 1ºC acima do normal, mas em vários lugares do subcontinente os termômetros foram além de 43ºC e alcançam picos de 47ºC. Os verões escaldantes costumam ocorrer em maio e junho, não em março e abril, como agora.

A anomalia preocupa porque só 7% da população indiana dispõe de condicionadores de ar, recurso comum contra a canícula, e mesmo assim o aumento da demanda por eletricidade tem ocasionado blecautes. Sofrem idosos e crianças; houve mais de 12 mil mortes em 660 ondas de calor de 1978 a 2014.

Não se sabe ainda o efeito do verão precoce sobre as monções, que chegam a partir de junho. A expectativa é de chuva em níveis usuais ou pouco acima, embora não se descartem perturbações mais graves da norma pela interação entre a condição La Niña (águas frias no Pacífico Oriental) e o aquecimento incomum do Ártico.

Tampouco se pode já atribuir o calor recordista inequivocamente à mudança do clima. Especialistas apontam o aquecimento global como causa provável, uma vez que a predição desses fenômenos extremos conta com confiança muito alta nos modelos climatológicos.

Além do impacto sobre a saúde no segundo país mais populoso do planeta, suscita alarme também a quebra da safra de trigo. A Índia é o segundo maior produtor do grão, nos dois casos depois da China.

O governo em Nova Déli estima redução de 6% na colheita, e há quem preveja 10%. O efeito negativo terá repercussão global, pois a Índia vinha aumentando exportações drasticamente com a demanda forçada pela guerra na Ucrânia, até então sexto maior exportador.

Após cinco anos em crescimento acelerado, o trigo indiano acabou prejudicado pelo calor inusual na fase de enchimento dos grãos. No ano fiscal encerrado em março, a Índia havia exportado um recorde de 7,85 milhões de toneladas, 275% acima do ano anterior, e a previsão era embarcar 12 milhões.

A perda de produção, além de contribuir para a alta da commodity no mercado global, eleva os preços para o consumidor de um país extremamente pobre.

Calor extremo e pão caro, flagelo duplo para legiões de indianos.

Fed poderá dar adeus a sua política contra a inflação

Valor Econômico

As decisões de hoje na reunião do Fomc podem ser um divisor de águas

Uma década depois de terem feito tudo para evitar a deflação, os bancos centrais estão agora em uma enrascada, tendo diante de si uma inflação vigorosa. A vingança inflacionária suscita a velha reação monetária dos manuais sugerida por investidores - doses de juros cada vez mais altas até que os índices de preços voltem a se comportar. Se esse comportamento prevalecer na reunião de hoje do Federal Reserve americano, será o enterro da nova estratégia do Fed sob o comando de Jerome Powell, que buscou uma inflação consistente acima dos 2% para evitar agir preventivamente a qualquer sinal desconfortável dos preços e deslocou o foco para os desvios do pleno emprego como móvel da ação monetária.

O Federal Reserve pode hoje elevar o juro em meio ponto percentual, pela primeira vez desde 2000, o que não quer dizer muita coisa - há duas décadas os juros estão baixos e, na maior parte do tempo, negativos. E nos EUA, com um IPC de 8,5%, muito negativos. A reação dos investidores parece não ter mudado, após confiarem na mudança anterior de rumo do Fed e se enganarem. Querem agora que o BC recupere o atraso no combate inflacionário.

Powell está hoje em maus lençóis, mas esteve boa parte do tempo na direção correta. Os EUA não teriam voltado tão logo ao pleno emprego sem que o Fed mantivesse por longo tempo os estímulos monetários, que agora vai retirar. Bastou a Ben Bernanke, cinco anos após a crise monetária de 2008, apenas sinalizar que interromperia estímulos para que os mercados tivessem “chiliques” que o obrigaram a mudar de rota. Janet Yellen tentou fazer a mesma coisa em 2016 e recuou. Nenhum dos dois tinha pela frente uma inflação das proporções que Powell terá de encarar, mas nenhum deles também teve de enfrentar uma depressão resultante de uma pandemia global e uma guerra em pleno solo europeu, que catapultou preços e reduziu a produção mundial.

Ainda que Powell possa vir a ser lembrado como o presidente do Fed que trouxe a inflação de volta, nenhum de seus antecessores após Alan Greenspan conseguiu cumprir a meta de inflação - Powell tampouco, ao menos no curto prazo. Olhando em retrospecto, houve lógica nas ações do Fed, ainda que pareça ingênua agora. Powell alinhou seus passos à ideia de que, após tantos fracassos em chegar à meta de 2%, seria possível continuar estimulando a economia até que a inflação a ultrapassasse. A um período de inflação muito baixa seguiria outro, com ela acima da meta, por um bom tempo.

O presidente do Fed nunca disse quanto acima da meta a inflação precisaria chegar para que os estímulos cessassem, e certamente foi surpreendido, como todos, com 8,5% do IPC e um núcleo do PCE de 6%. Da mesma forma, não explicitou qual seria o tempo adicional no qual a inflação acima da meta seria tolerável. Houve um consenso “sem fórmulas” entre os membros do Fed, o que parecia uma grande desconversa que justificasse improvisos, e um sinal verde para a discricionaridade. Os mercados, habituados há mais de uma década com uma liquidez jamais vista na história do capitalismo, compraram o peixe do Fed na forma mal embrulhada com que foi vendido.

Muitos esqueceram essa política do Fed e já projetam juros entre 5% e 6% para virar o jogo contra a inflação. Outras apostas, mais moderadas, vão a 3%. Em sua ata mais recente, o Fed indicou apropriado elevar os fed funds, com rapidez não pre-determinada, ao juro neutro de 2,5%-3%. Não há dúvida de que um aperto maior virá, mas ele pode não ser aquele que alguns investidores vislumbram.

Powell não estava de todo errado quando usava o termo traiçoeiro de “provisória” para a inflação. O fim da guerra na Europa e mudanças na política contra a covid na China vão desinchar os preços - se ocorrerem. A desaceleração global em curso vai ajudar nesta tarefa. Mas o mercado de trabalho americano está aquecido e em março 4,5 milhões de pessoas deixaram o emprego - há no país 1,9 posto de trabalho disponível para cada trabalhador desempregado. Esfriar esse mercado exigirá aperto considerável. Mais: não se sabe com que rapidez e nem em quanto tempo o Fed considera prudente obter êxito.

A missão, diante de uma sucessão de choques imprevisíveis é difícil. Há quem estime que se a economia americana desacelerar a 1% e 1,5% anual será possível fazer pouso suave, sem doses de juros à la Volcker. Pelo histórico de Powell, porém, ele provavelmente recuará antes de os EUA entrarem em uma recessão, se isso estiver ao seu alcance. As decisões de hoje na reunião do Fomc podem ser um divisor de águas na história recente do banco.

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