sábado, 21 de maio de 2022

Pablo Ortellado: Fraude nas urnas é teoria da conspiração

O Globo

A insistência do governo na tese de que as urnas eletrônicas foram fraudadas é estranha. As evidências apresentadas são muito frágeis, e os mecanismos adotados pela Justiça de supervisão e escrutínio parecem mais que suficientes. Por isso analistas supõem má-fé do governo, que, sabendo que a alegação é falsa, insistiria nela apenas com o intuito malicioso de preparar um golpe de Estado. Mas há motivos para supor que ele pode acreditar na tese na forma de uma teoria da conspiração.

O maior estudioso das teorias da conspiração, Joseph Uscinski, as define como a crença, contrariada pela autoridade epistemológica (a ciência, o jornalismo profissional ou a Justiça), de que fenômenos complexos que prejudicam o bem comum são explicados de modo adequado pela ação de um pequeno grupo de indivíduos poderosos agindo em segredo.

Embora a teoria da conspiração precise de algum tipo de evidência para sustentá-la, ela não aceita ser contestada pelos fatos, não admite ser “falseada”. Pistas, indícios e suspeitas, não importa quão frágeis, são capazes de manter a crença viva. Evidências contrárias, mesmo que contundentes, são rejeitadas. Os fatos se moldam à convicção.

A investigação aberta pela Polícia Federal para apurar as alegações de Bolsonaro, feitas numa live, de fraude nas eleições mostra como o governo age segundo a lógica de uma teoria da conspiração. O inquérito da PF descreve como, mesmo diante de evidências escassas e frágeis, contrariado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pelos mecanismos de supervisão e pelas pesquisas de intenção de voto, Bolsonaro mantém todas as alegações e segue resolutamente buscando mais “provas”.

A investigação descobriu que, ainda no final de 2019, o general Luiz Eduardo Ramos, então ministro-chefe da Secretaria de Governo, procurou o empresário de informática Marcelo Abrileri para se reunir com o presidente e outros ministros e apresentar seus indícios de que a eleição de 2014 tinha sido fraudada. Abrileri tinha produzido uma apresentação mostrando aumento súbito na contagem dos votos em favor de Dilma Rousseff, o que bolsonaristas interpretavam como “forte indício” de fraude (o salto se deu, na verdade, pela atualização do sistema central, que recebeu um lote novo de dados dos tribunais regionais do Nordeste).

Também em 2019, o perito criminal da Polícia Federal Ivo Peixinho foi procurado pela Abin para produzir um relatório com todas as ocorrências envolvendo as urnas eletrônicas. Embora o relatório não trouxesse indício algum de fraude, os elementos foram apresentados pelo ministro da Justiça, Anderson Torres, na live presidencial, com as suspeitas de Abrileri. No fim da live, não foram apresentadas evidências, como o presidente mesmo reconheceu:

—Não tem como se comprovar que as eleições não foram ou foram fraudadas. São indícios.

Mesmo depois de reconhecer que não havia nenhum indício que em todos esses anos tivesse sido provado, Bolsonaro seguiu sustentando a suspeita. Com o convite para um representante das Forças Armadas fazer parte da Comissão de Transparência das Eleições do TSE, ele instrumentalizou essa participação. Transformou as intervenções desse representante num esforço obsessivo de suspeição. Embora todos os questionamentos tenham sido esclarecidos pela Justiça Eleitoral, a desconfiança do presidente não foi aplacada.

Vale a pena notar a sequência. Não houve uma denúncia, seguida de investigação e, depois de fatos apurados e corroborados, uma acusação formal pela autoridade constituída. Houve o inverso: primeiro foi feita a acusação — grave, embasada em suspeitas frágeis, não apuradas; em seguida, o esforço para tentar corroborar a tese com a busca de mais indícios. É a forma da teoria da conspiração como definida por Uscinski.

Não temos como saber se Bolsonaro acredita mesmo na teoria da conspiração da fraude nas urnas ou se apenas a usa em seu projeto autoritário. Mas o fato de ter feito tantos movimentos internos de investigação com base em indícios frágeis sugere que acredite. De todo modo, ainda que não a subscreva, seus apoiadores — ou parte deles — provavelmente o fazem. Não será fácil combater a difusão politicamente organizada de uma teoria da conspiração que, pela própria natureza, resiste à apresentação de evidências contrárias. Podemos apenas torcer para que ela não se espalhe além do gueto dos radicalizados.

 

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