sexta-feira, 6 de maio de 2022

Vera Magalhães: EUA, aborto e os danos à democracia

O Globo

A atual convulsão por que passam os Estados Unidos diante do risco real de que a Suprema Corte revise a jurisprudência firmada em 1973, no caso Roe versus Wade, em que reconheceu o direito da mulher ao aborto, é uma demonstração muito eloquente de como um movimento que provoca solavancos sistemáticos na democracia deixa danos permanentes às instituições e aos direitos civis mesmo quando derrotado nas urnas.

O trumpismo se apropriou da pauta antiaborto e de outras bandeiras de direita que fermentam na sociedade americana há décadas, com raízes ligadas a movimentos supremacistas brancos, à direita religiosa radical e a outros subgrupos da extrema direita e da direita alternativa (a “alt-right”).

Com sua Presidência antiestablishment, Donald Trump foi um galvanizador desses interesses até então difusos, sem uma via partidária para chegar a ameaçar conquistas históricas como a que assegurou às mulheres o direito à interrupção da gravidez e à população outros direitos civis.

Ao esgarçar os limites até então vigentes, e respeitados pelos partidos, de uma convivência republicana em que disputas eram dirimidas no Congresso ou na Suprema Corte, e os vencidos acatavam o resultado das urnas, de votações ou de julgamentos, Trump, mesmo fora da Casa Branca, segue sendo esse ímã que atrai toda sorte de interessados em provocar retrocessos civilizatórios no país.

Pode ser que o vazamento do rascunho do relatório do juiz Samuel Alito evite que a Corte de fato revise a jurisprudência quase cinquentenária. A reação do Partido Democrata, do governo Biden, da imprensa, dos movimentos feministas e de outros de defesa dos direitos civis, além do vazamento sem precedente de um relatório prevendo o placar de um julgamento (algo que jamais havia acontecido nos EUA, diferentemente daqui, onde os ministros do STF são mais acessíveis, e as sessões públicas), pode levar a Suprema Corte a recuar da intenção.

Mas o que se vê agora no país é mais um teste. O trumpismo perdeu as eleições, mas domina o Partido Republicano e resiste como força eleitoral. Em seu mandato, Trump designou três dos nove atuais integrantes da Suprema Corte, o que contribuiu para sua atual conformação majoritariamente conservadora.

O grande temor dos analistas é que, aberto o precedente e confirmada a revisão do direito ao aborto, se abra uma avenida para a contestação, na Corte, de outros direitos, não só reprodutivos, mas ligados à igualdade racial, à educação, à imigração e a outros temas que são alvo dos movimentos de extrema direita acoplados ao trumpismo.

É essa a consequência da crise da democracia americana que serve de alerta para o Brasil, que flerta dia a dia, perigosa e desanimadamente, com estratagemas copiados pelo bolsonarismo do ídolo de pele laranja. Mesmo que esses movimentos de negação da democracia sejam derrotados na urna, eles se mantêm como parasitas em partidos políticos, nos parlamentos, nas redes sociais e numa parcela da sociedade.

É como aqueles filmes de terror em parece que a criatura foi incinerada, morta a machadadas, enterrada no mundo invertido, mas na última cena uma raiz ou gosma aparecem para mostrar que vem aí uma continuação talvez mais aterrorizante.

Para evitar esse desfecho, é necessário que o Judiciário e o Legislativo reforcem os sistemas de freios e contrapesos, não só com a casa já arrombada ou o com o tsunami batendo à porta, como tentam agora às pressas os congressistas democratas, que querem transformar o direito ao aborto em lei federal.

Essas reformas têm de ser feitas com método e atenção à necessidade de fechar as frestas no cimento da democracia que permitem aos iliberais usar as leis e o próprio sistema para atacá-lo por dentro, sufocando-o aos poucos.

 

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