O Estado de S. Paulo
Se o enredo de 2022 for igual ao de 2018, vamos ser forçados a recordar que a situação de 1964, comparada à atual, foi só um festival de blefe
Naquele longínquo 31 de março de 1964,
estagiando num jornal, eu sofria com a inexperiência e a timidez. Quando
sobreveio o golpe, tomei coragem e perguntei a um político importante quem, ao
ver dele, seria o presidente da República. A resposta veio em três segundos: o
Exército só aceitará cinco nomes, Humberto Carlos de Alencar Castello Branco.
Para mim, todo golpe é ruim. Abomino todos
os regimes de exceção. Mas antes ter um Castelo Branco, que pairava metros
acima dos demais, que muitos outros que nada tinham entre as orelhas. Castelo
garantia que a intervenção militar seria de curta duração, dois ou três anos
para acabar com o comunismo e a corrupção e implantar algumas reformas na
economia.
Pouco tempo antes, chegara ao Brasil o brasilianista Alfred Stepan, que iria fazer uma tese sobre os militares. Tornamo-nos amigos até o recente falecimento dele. Stepan admirava Castelo e não tardou a conseguir acesso à alta oficialidade. Mas, sobre a promessa de Castelo de manter o Exército no poder por um curto período, Stepan não acreditava que ele lograsse tal proeza. Outros oficiais-generais lhe haviam dito precisamente o contrário. Não devolveriam o poder aos civis em menos de 20 anos.
Meus leitores, se os tenho, devem estar
impressionados com a exatidão da ciência política. Stepan acertara em cheio.
Castelo errou redondamente. Fato é, entretanto, que nos 56 anos decorridos
desde aqueles diálogos, este campo de estudos que nos orgulhamos em denominar
ciência foi posto em xeque pelo menos umas 50 vezes. Por isso insisto em
perscrutar o futuro, fazendo entrevistas, revirando estatísticas ou
pacientemente observando o voo dos pássaros, como faziam os antigos adivinhos
romanos.
No momento, vejo somente tênues indícios de
uma intervenção militar, nada além disso, e así quiera Diós que permanezca! Mas
cá, na planície, fora da caserna e do governo, volta e meia vemos milhões de
energúmenos vociferando por um novo 31 de março de 1964. Tal ideia lhes ilumina
a cabeça e os faz saltitar de alegria. Creem piamente que o verde das fardas
livrará nosso país de suas mazelas e desavenças. Em seus momentos de maior
devaneio, cogitam que alguns tanques nas ruas trariam de volta nossa tradição
de ameno convívio, acabariam com as desordens, nos livrariam da corrupção e do
paradeiro econômico, da inflação e de tudo mais que nos desengrandece aos olhos
do mundo civilizado.
É possível; tudo é possível. Nos espaços
siderais da imaginação, tudo é possível. Alguns chegam mesmo a crer que
paraísos políticos, uma vez estabelecidos, não se desfazem. Que a uma elite
sábia e honrada se segue outra, esquecendo-se de que, na antiga Roma,
governantes sábios e justos foram sucedidos por dementes como Nero, Calígula e
Cômodo.
O leitor por certo percebeu que estou
falando do desvario de umas poucas mentes doentias, confiante em que males de
tal ordem não estão a nos espreitar. No fundo, sinto-me despreocupado, mas
sentiria um alívio ainda maior se três espectros vez por outra não me
atormentassem. Primeiro, sabemos que o Brasil e a América Latina são as mais
perfeitas estufas do populismo, e que populismo, por definição, é um modo de
agir político sempre propenso a atropelar as instituições. Em todas as
latitudes, populistas são aqueles que não encontram conforto nos limites
institucionais da democracia e conclamam o que entendem por “povo” para
derrubá-la.
Segundo, a oferta de populistas aumentou.
Em épocas pretéritas, os portadores de tal DNA populista apresentavam-se um de
cada vez, apoiados por meia dúzia de policiais, e os golpes assemelhavam-se a
meras operações de despejo. Foi o que se passou na Argentina em 1928, quando o
desmiolado general Uriburu derrubou o presidente Yrigoyen e deu início à
sucessão de tragicomédias que transformou a outrora próspera nação pampeana na
caricatura que dela resta. No rastro da multiplicação de populistas, nós,
brasileiros também teremos no dia 2 de outubro uma oportunidade de ouro de
também nos transformarmos numa caricatura da quase caricatura que sempre fomos.
Se recaírmos na polarização iniciada em
2018, estará redondamente enganado quem pensar que acordaremos do pesadelo
quando a Justiça Eleitoral der por encerrada a contagem dos votos. Se o enredo
deste ano for o mesmo de 2018, seremos forçados a recordar que, comparada à
situação de hoje, a de 1964 foi apenas um festival de blefes, uma peça de
segunda personificada por artistas do gogó: Carlos Lacerda, de um lado, e o
indefectível Almirante Aragão, do outro.
Seria tudo muito engraçado se nós também
não nos tivéssemos transformado numa caricatura moderna daquela que antigamente
já éramos. Hoje, nada mais parece nos impressionar. Pobres sempre fomos, mas,
ao fim da Segunda Guerra, não era comum presenciarmos indivíduos disputando uma
vaga para dormir debaixo de algum viaduto, ou para chegar primeiro na cata de
restos de comida. A própria violência tornou-se mais violenta, gratuita e
cruel.
*Cientista político, é sócio-diretor da Augurium
Consultoria. Seu último livro é ‘Jano – imagens da virtude e do poder’ (Editora
Desconcertos, São Paulo)
E ainda há quem chame a ditadura de 64 de ditadura militar ou, pior, civil militar. Foi simplesmente uma ditadura do Exército. Tanto que só quem podia ser presidente da República eram generais de quatro estrelas. Nenhum almirante ou brigadeiro. E agora o restolho de 64 quer tomar o poder de qualquer jeito.
ResponderExcluirQuem sonha com a ditadura sabe que não vai melhorar nada,eles só querem que seja do jeito deles,prenderem os opositores e etc.
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