quinta-feira, 2 de junho de 2022

Conrado Hübner Mendes*: O Jair em nós

Folha de S. Paulo

Quando nada acontece, há uma violação de direitos que não estamos vendo

Quem vive na rua em São Paulo sabe que seus pertences de subsistência podem lhe ser retirados à força. Colchões, cobertores, barracas, ração do cachorro, até documento de identidade. Não por ato criminoso comum, mas pelo poder público. O cinismo jurídico chama a operação de "zeladoria urbana", serviço incumbido de podar árvores, limpar bueiros, varrer ruas. No meio da sujeira havia uns humanos.

Funcionários uniformizados e guarda metropolitana, sem mediação da assistência social, sem maiores avisos ou identificação à vista, diante de qualquer resistência, costumam começar pela agressão verbal e terminar com a física. Removidas as pessoas, dão esguichada precária no local, que permanece sujo e mal cheiroso. Limpeza cumprida.

Há muitos registros da violência feitos pela Defensoria Pública de São Paulo, pela Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, da USP, e outras organizações. O padrão histórico continua apesar da tentativa de regulação por decretos municipais que exigem o básico: comunicação prévia, proibição de retirada de pertences pessoais, etc.

A defensoria, em 2019, ajuizou ação judicial para exigir reparação de 20 pessoas instaladas embaixo do viaduto Júlio de Mesquita Filho que foram atacadas em operação "limpeza". A Justiça concedeu indenização de 10 mil reais às vítimas. Como os mais invisíveis entre os invisíveis não costumam ter endereço ou caixa postal, três foram localizados para receber. Alguns morreram.

Outra ação proposta pela defensoria, relacionada às pessoas na praça Isabel, espera decisão. Pede o elementar: aviso prévio, obrigatoriedade de identificação dos agentes, mediação na abordagem e equipamentos como "guarda-pertences".

As repetidas intervenções na cracolândia, mais violentas porque militarizadas e sob justificativa oficial de combate ao tráfico, seguem a mesma lógica de tornar a cidade uma grande Higienópolis, a cidade da higiene. Sem oferecer alternativa decente para os sem-lugar.

Aprende-se mais sobre dignidade humana observando tais situações-limite de degradação e humilhação do que em abstrações filosóficas e jurídicas.

Patrizia Romito, psicóloga social, mostra que há técnicas para se disfarçar essa violência: eufemizar para que, por meio da linguagem, suavizemos a percepção do que se passa ("limpeza urbana"); desumanizar para que à crueldade não se some o remorso; culpar para que a responsabilidade por sua condição seja alocada inteiramente no indivíduo (Bia Doria já ensinou: "a rua hoje é atrativo, a pessoa gosta").

Pierre Rosanvallon, filósofo político, enxerga um problema de representação política. A invisibilidade tem custo para os indivíduos. "Porque vida deixada nas sombras é vida que não existe, vida que não conta."

Mas não só. Tem custo, diz ele, para a democracia, que não dá consistência à palavra "povo". Uma de suas propostas é construir um "parlamento dos invisíveis" por meio de instituições que respondam à necessidade "de ver narradas as vidas ordinárias, as pequenas vozes ouvidas".

Preencher o vazio de representação é o que tem feito a defensoria nesses casos. Ou iniciativa suprapartidária como a do "Quilombo nos Parlamentos", projeto que fortalece candidaturas comprometidas com pautas do movimento negro para as eleições de 2022. Seu lançamento ocorrerá em 6 de junho. Censo da prefeitura de 2021, a propósito, aponta que 72% das pessoas em situação de rua em São Paulo são negras.

Guimarães Rosa, no conto "O Espelho", observou: "Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo". Linhas depois, explicou: "Vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes."

No Brasil bruto e desigual de sempre, sob "normalidade" democrática, a citação poderia inspirar síntese da nossa distração e dessensibilização moral: Quando nada acontece, há uma violação de direitos que não estamos vendo.

Mas a era Bolsonaro não nos dá um dia sem evento moralmente sísmico ou juridicamente grotesco. Ou esteticamente tosco. Em quantidade e qualidade, desceu alguns degraus incivilizatórios. A frase muda: quando tudo está acontecendo, há uma velha violação que continuamos não vendo, que nunca quisemos ver.

Se Jair Bolsonaro é a personificação mais bem acabada de malignidade pública na história brasileira, o tratamento de invisíveis é nossa malignidade despersonificada, coletiva.

*Professor de Direito Constitucional da USP, é doutor em Direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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