Folha de S. Paulo
Quando nada acontece, há uma violação de
direitos que não estamos vendo
Quem vive na rua em São Paulo sabe que seus
pertences de subsistência podem
lhe ser retirados à força. Colchões, cobertores, barracas, ração do
cachorro, até documento de identidade. Não por ato criminoso comum, mas pelo
poder público. O cinismo jurídico chama
a operação de "zeladoria urbana", serviço incumbido de podar
árvores, limpar bueiros, varrer ruas. No meio da sujeira havia uns humanos.
Funcionários uniformizados e guarda
metropolitana, sem mediação da assistência social, sem maiores avisos ou
identificação à vista, diante de qualquer resistência, costumam começar pela
agressão verbal e terminar com a física. Removidas as pessoas, dão esguichada
precária no local, que permanece sujo e mal cheiroso. Limpeza cumprida.
Há muitos registros da violência feitos pela Defensoria Pública de São Paulo, pela Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, da USP, e outras organizações. O padrão histórico continua apesar da tentativa de regulação por decretos municipais que exigem o básico: comunicação prévia, proibição de retirada de pertences pessoais, etc.
A defensoria, em 2019, ajuizou
ação judicial para exigir reparação de 20 pessoas instaladas embaixo do viaduto
Júlio de Mesquita Filho que foram atacadas em operação "limpeza".
A Justiça concedeu indenização de 10 mil reais às vítimas. Como os mais
invisíveis entre os invisíveis não costumam ter endereço ou caixa postal, três
foram localizados para receber. Alguns morreram.
Outra ação proposta pela defensoria,
relacionada às pessoas na praça Isabel, espera decisão. Pede o elementar: aviso
prévio, obrigatoriedade de identificação dos agentes, mediação na abordagem e
equipamentos como "guarda-pertences".
As repetidas
intervenções na cracolândia, mais violentas porque
militarizadas e sob justificativa oficial de combate ao tráfico, seguem a
mesma lógica de tornar a cidade uma grande Higienópolis, a cidade da higiene.
Sem oferecer alternativa decente para os sem-lugar.
Aprende-se mais sobre dignidade humana
observando tais situações-limite de degradação e humilhação do que em
abstrações filosóficas e jurídicas.
Patrizia Romito, psicóloga social, mostra
que há técnicas para se disfarçar essa violência: eufemizar para que, por meio
da linguagem, suavizemos a percepção do que se passa ("limpeza
urbana"); desumanizar para que à crueldade não se some o remorso; culpar
para que a responsabilidade por sua condição seja alocada inteiramente no
indivíduo (Bia Doria já ensinou: "a rua hoje é atrativo, a pessoa
gosta").
Pierre Rosanvallon, filósofo político,
enxerga um problema de representação política. A invisibilidade tem custo para
os indivíduos. "Porque vida deixada nas sombras é vida que não existe,
vida que não conta."
Mas não só. Tem custo, diz ele, para a
democracia, que não dá consistência à palavra "povo". Uma de suas
propostas é construir um "parlamento dos invisíveis" por meio de
instituições que respondam à necessidade "de ver narradas as vidas
ordinárias, as pequenas vozes ouvidas".
Preencher o vazio de representação é o que
tem feito a defensoria nesses casos. Ou iniciativa suprapartidária como a do
"Quilombo nos Parlamentos", projeto
que fortalece candidaturas comprometidas com pautas do movimento negro para
as eleições de 2022. Seu lançamento ocorrerá em 6 de junho. Censo da prefeitura
de 2021, a propósito, aponta que 72% das pessoas em situação de rua em São
Paulo são negras.
Guimarães Rosa, no conto "O
Espelho", observou: "Quando nada acontece, há um milagre que não
estamos vendo". Linhas depois, explicou: "Vivemos, de modo
incorrigível, distraídos das coisas mais importantes."
No
Brasil bruto e desigual de sempre, sob "normalidade" democrática,
a citação poderia inspirar síntese da nossa distração e dessensibilização
moral: Quando nada acontece, há uma violação de direitos que não estamos vendo.
Mas a era Bolsonaro não nos dá um dia sem
evento moralmente sísmico ou juridicamente grotesco. Ou esteticamente tosco. Em
quantidade e qualidade, desceu alguns degraus incivilizatórios. A frase muda:
quando tudo está acontecendo, há uma velha violação que continuamos não vendo,
que nunca quisemos ver.
Se Jair Bolsonaro é a personificação mais
bem acabada de malignidade pública na história brasileira, o tratamento de
invisíveis é nossa malignidade despersonificada, coletiva.
*Professor de Direito Constitucional da
USP, é doutor em Direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa,
Ciência e Liberdade - SBPC
O Brasil é um país desenhado por latifundiários escravistas.
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