O Globo
Já é fato que a eleição presidencial de outubro próximo será a mais decisiva para o Brasil tal qual o conhecemos. Também já é dada como fato a intenção bolsonarista de tumultuar o resultado caso este se revele desfavorável à reeleição do chefe. A novidade está no agendamento do caos, cuja régua encurta em proporção inversa à autofagia democrática de Jair Bolsonaro. De início, dada a blitzkrieg do governo demonizando o voto eletrônico, o temor de um descarrilhamento à força concentrou-se no que poderá ocorrer em outubro, mês do primeiro e segundo turnos da votação. Todas as pesquisas de opinião iniciais sugeriam que o vencedor só seria conhecido no segundo turno — com derrota infalível do capitão, fosse quem fosse seu adversário. Portanto uma tentativa de obstrução institucional parecia ter data marcada: a partir do domingo 30 de outubro. De uns tempos para cá, porém, algumas pesquisas têm sugerido a possibilidade de vitória do candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva já no primeiro turno ou têm apontado para o aumento da distância entre Lula e Jair. De pronto, a retórica golpista do presidente também deu uma acelerada no tempo, movendo sua “miliciância” (fusão ideológica de milícia + militância armada) a tumultuar a partir do 2 de outubro.
Ou, talvez, até antes. Tomando as ameaças
de insurreição reiteradas por um capitão cada vez mais espumante e
imprevisível, convém apertar os cintos já a partir de agosto. No dia 25 daquele
mês comemora-se o Dia do Soldado, que neste ano tem tudo para não ser de todo
banal. Na sequência, teremos uma fileira de eventos hipoteticamente explosivos
quando somados: o desfile e a convocatória do 7 de Setembro, os festejos
patrióticos dos 200 anos da Independência e a cerimônia magna da posse da
ministra Rosa Weber na presidência do Supremo Tribunal Federal, em substituição
a Luiz Fux. Pouca coisa não é. Bastante chão para esticar a corda
institucional.
“Hiding in plain sight” (Escondido à plena
vista), publicado em 2016 pela antropóloga americana Sarah Kendzior, sobre o método
Donald Trump de ser e agir, tem conteúdo útil para este momento brasileiro. À
época, a autora foi tachada de “alarmista”, até de “histérica” por críticos
mais abertamente misóginos. Na verdade, ela demonstrou ser apenas uma estudiosa
realista que soou o alarme certo: o governo Trump destruiria a nação. Após anos
de pesquisa sobre os regimes autoritários que brotaram da antiga União
Soviética, Kendzior detectou paralelos entre os cleptocratas da Ásia Central e
Trump. E faz questão de chamá-lo ora de autoritário ora de autocrata, apesar
dos seus métodos fascistas de liderar. Ela explica: “Ser fascista implica
lealdade ao Estado. Trump nem sequer respeita as limitações tradicionais do
fascismo. Ele não se importa se o país que lidera é derrotado, o que conta é
ele se sair bem. O intento de Trump é destruir o Estado, fatiá-lo, vendê-lo. As
ambições de sua corte lembram as dos oligarcas russos após o colapso da URSS”.
Além de elencar o lado “facção criminosa” do governo Trump, a antropóloga
manteve em entrevista recente o alerta que soou anos atrás:
— Estamos lidando com uma nova modalidade
de ameaça, por isso precisamos criar métodos de combate também novos. Melhor
abrir a mente para as possibilidades mais sombrias.
Assim como Trump, Bolsonaro desconhece o sentido
da vergonha. Nenhum escândalo moral, político, ético ou pessoal é capaz de
tirá-lo do prumo — a menos que ameace ter alguma consequência jurídica. Daí ser
inútil apontar pela enésima vez a desumanidade criminal/criminosa desse bípede.
Ela é fato. Tampouco vale desesperar-se com o espetáculo macabro da motociata
presidencial em Manaus, destinada a terraplenar, com o máximo de ostentação, os
restos ainda insepultos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico
Dom Phillips. Melhor se concentrar no essencial, no que diferencia o Brasil
decente do destruidor: a realidade dos fatos. Até porque são eles que haverão
de perdurar. A cada novo dia, o Brasil e o mundo conhecem melhor a dimensão do
trabalho e do caráter de ambos. Como não se encantar para sempre com Bruno
captado ao acaso, em plena selva, puxando um cantar em língua indígena? Vale
uma vida.
Bolsonaro, diria Kendzior, só aprende o que
precisa saber para se manter no poder, deixando o restante a advogados e
sequazes. Amazônia? Crise climática? É provável que ele saiba o essencial sobre
o tema, mas prefere acelerar a destruição — uma terra despovoada é mais fácil
de controlar. Em setembro próximo, a antropóloga lança nos Estados Unidos “They
knew: how a culture of conspiracy keeps America complacent” (“Eles sabiam: como
uma cultura da conspiração mantém os EUA complacentes”, em tradução literal).
Tudo a ver.
Até lá o Brasil decente e decidido a não ser extinto já estará cantando “Que tal um samba?”, do Chico Buarque. Também tudo a ver: “Depois de muita bola fora da meta/De novo com a coluna ereta, que tal? /Juntar os cacos, ir à luta/Manter o rumo e a cadência/Esconjurar a ignorância, que tal?/Desmantelar a força bruta/ Então que tal puxar um samba”.
O novo samba do Chico já foi incorporado e citado por quem torce por um País melhor.
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