O Estado de S. Paulo
Tal como a pronunciam, ela tem servido de
camburão para uma ideologia da monstruosidade – que poderíamos chamar de
natureza desumana.
Aprendemos a pensar que, se é natureza, não
é cultura – e, inversamente, se é cultura, não pode ser natureza. A força que
impele os animais ao acasalamento e à reprodução brota de pulsões naturais,
ditas instintivas; já a instituição do matrimônio entre as pessoas de carne e
osso, ditas pessoas físicas, decorre de construções simbólicas, ou seja,
culturais. A fúria selvagem corresponderia à natureza bruta; o diálogo pacífico
e harmonioso, capaz de gerar o entendimento, seria uma conquista da cultura. Em
suma, temos o costume de opor a natureza à cultura mais ou menos como opomos a
barbárie à civilização.
Caprichosamente, essa oposição se instala no interior de cada subjetividade, de cada um e cada uma de nós aqui. É como se fosse uma tensão interna, uma polaridade inevitável que estrutura a essência do que somos. Quando alguém levanta a mão para falar de “natureza humana”, é isso que acontece: somos natureza (portanto, bichos) e, simultaneamente, somos humanos (portanto, seres de linguagem e de cultura). Uma contradição ambulante.
Os transeuntes nos logradouros públicos,
nas estações de metrô e nos mercados de hortifrutigranjeiros carregam uma
natureza indômita dentro de seus corpos semoventes. Floras de incontáveis
bactérias lhes habitam os intestinos, glândulas estúpidas injetam substâncias
estranhas em sua corrente sanguínea, frêmitos ardentes lhes despertam paixões.
A natureza imperiosa age sobre eles – que, no entanto, são também humanos,
conscientes, sensíveis, inteligentes e, vejam que coisa desconcertante, são
sujeitos éticos. Valores morais – uns efetivamente virtuosos, outros
abomináveis – influenciam a conduta de todo mundo. Olhando assim, é claro que
o Homo sapiens nunca poderia dar certo, mas é o que temos para hoje.
No mais das vezes, a tal da “natureza
humana” é invocada por alguém que quer justificar uma atrocidade ou um vício.
Entre os políticos, virou mania. Se eles não falassem tanto na indefectível e
repetitiva “natureza humana”, não teríamos de nos ocupar dessa matéria em
artigos de jornal. O diabo – e o diabo pertence a outra natureza – é que a toda
hora surgem uns tipos esquisitos botando a culpa disto e daquilo nela, sempre
nela, ela mesma, a “natureza humana”. A “natureza humana”, meu senhor, minha
senhora, é a culpada desta tragédia bufa que se abateu sobre o nosso pobre país
– e países, é bom avisar, são uma invenção da cultura.
Faz uns dois anos, um parlamentar que vem a
ser trineto da Princesa Isabel declarou, em plena Câmara dos Deputados, que “a
escravidão é um aspecto da natureza humana”. No ano passado, um desses
ministros da Saúde do Brasil foi a Nova York e, ao passar por manifestantes que
protestavam contra ele e seu presidente da República, fechou o punho num gesto
chulo, com o dedo do meio apontado para cima. Depois, ao ser indagado sobre a
obscenidade, deu de ombros: “É da natureza humana existirem falhas”. Em
dezembro, um prócer do bolsonarismo afirmou que o ex-ministro Sergio Moro
“representa o que há de pior na natureza humana”.
Como se pode depreender disso tudo, o
próprio bolsonarismo não passa de um, por assim dizer, “naturezumanismo”. Tudo
é culpa da “natureza humana”. Como sair, então, dessa encalacrada conceitual?
Sabemos que Hobbes dizia que, em estado de natureza, os homens viviam em guerra
permanente de todos contra todos. Será por aí? Seriam hobbesianos os
bolsonaristas? Será que acreditam que, em natureza, todo homem é mau? Ou se
acham, eles mesmos, em permanente estado de natureza? Será por isso que adoram
revólveres, pistolas e garruchas e se mobilizam em permanente guerra cultural
de todos contra todos, ou, melhor, de “nós” contra “eles”? (Rousseau acreditava
no oposto, que o homem em natureza é bom, que foi a civilização que o
corrompeu, mas isso não importa.)
A vã filosofia, contudo, não vai nos
ajudar. Eles – eles lá, que gostam de se chamar de “nós” (e gostam de nos
chamar de “eles”) – não sabem quem foi Hobbes, nem quem foi Santo Agostinho,
nem Epicuro, que cultivava os prazeres necessários e naturais. O que ouviram
falar de Epicuro, ouviram da pior fonte. No fundo – ou no raso –, não sabem que
sua alegação da “natureza humana” é, antes, um artefato da cultura, não da
“natureza” – é de uma cultura inculta, meio chucra, mas, ainda assim, cultura.
Para entendermos um pouco melhor esse ponto,
vale voltar rapidamente ao parlamentar nobre (e não nobre parlamentar) que viu
algo de “natural” na escravidão. O que o levou a afirmar que “a escravidão é um
aspecto da natureza humana” não foi sua própria “natureza humana”, mas sua
deformação cultural, ou seja, não é a “natureza” que supõe que a escravidão
seja da “natureza humana”, mas uma cultura preconceituosa que vê na escravidão
um “regime natural”.
Em suma, a alegada “natureza desumana” é
apenas uma degradação da cultura, nada mais. A “natureza humana”, tal como a
pronunciam, tem servido de camburão para uma ideologia da monstruosidade – que
poderíamos chamar de natureza desumana.
*jornalista, é professor da ECA-USP
O colunista se embananou. Se a escravidão existe há milênios em diversas civilizações antigas e sobreviveu até o século XIX em várias partes do mundo, como não considerá-la parte efetiva da natureza humana? Uma parte evidentemente negativa, "desumana" mesmo, mas ainda assim parte da nossa história e infelizmente parte da natureza humana que o colunista resolveu comentar de forma pouco criteriosa.
ResponderExcluirSempre vai ter um anônimo apoiando a natureza desumana.
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