Estado da Arte - Revista de Cultura, Artes e Ideias
Deixada de lado desde o advento da
globalização dos mercados entre o final do século 20 e o início do século 21,
período em que a ideia de governo inerente ao Estado keynesiano foi substituída
pela ideia de governança subjacente ao Estado liberal, a expressão “projeto de
nação” foi recolocada novamente na agenda por duas iniciativas colidentes entre
si.
A primeira iniciativa tem origem nos meios
militares — mais precisamente, do grupo que apoia o governo Jair Bolsonaro e
acredita, de alguma forma, se manterá no poder até 2035. Ela foi tomada pelo
Instituto General Villas Bôas, criado pelo grupo do general Eduardo Villas
Bôas, que foi o comandante do Exército entre 2015 e 2019, em parceria com o
Instituto Federalista e o Instituto Sagres — Políticas e Gestão Estratégica
Aplicadas. Com o título Projeto de Nação, coordenado por um general e
revisado por três militares, dois embaixadores e dois professores, ele
apresenta um cenário prospectivo do país até 2035, a partir de seis
perspectivas: “temas estratégicos e incertezas críticas, consultas áugures
(especialistas e outros públicos), cenários prospectivos, “cenário foco”,
objetivos nacionais (políticos), diretrizes político-estratégicas e óbices”.
A segunda iniciativa foi tomada por dois economistas, Fabio Giambiagi e Ricardo de Menezes Barboza, que aproveitaram a comemoração dos 70 anos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para lançar um livro no qual técnicos de carreira de diferentes áreas decidiram apresentar uma agenda econômica e socioambiental. Com o título Labirinto visto de cima — saídas para o desenvolvimento do Brasil e publicado pela Editora Lux, a obra foi redigida por especialistas que analisaram a transição de uma economia fechada rumo a uma economia mais integrada ao mundo, porém com baixo crescimento ao longo das últimas décadas e incapaz de aproveitar todo seu potencial de desenvolvimento.
O lançamento desses dois trabalhos às
vésperas do início da campanha presidencial certamente balizará as discussões e
as propostas de alguns candidatos ao Palácio do Planalto. Seu denominador comum
é a identificação e análise dos gargalos estruturais que têm impedido o Brasil
de sair do labirinto em que se encontra e a apresentação de propostas para
removê-los. Evidentemente, as duas iniciativas refletem o ethos das
corporações a que seus autores pertencem. Enquanto a primeira expressa o viés
estamental dos militares, especialmente do Exército, a segunda apresenta o
pensamento das novas gerações de profissionais do desenvolvimento lotados num
órgão de excelência da administração pública, como é o caso o BNDES.
Se o ponto comum dos dois trabalhos é a
ideia de um “projeto de Nação”, mencionada expressamente no primeiro e
subentendida no segundo, no restante só há divergências. A começar pelo fato de
que, enquanto um trabalho prima por seu rigor técnico e sólida fundamentação, o
outro é inteiramente comprometido por uma visão de mundo ideologizada e
limitada — uma visão nacionalista e fortemente autoritária, que condiciona a
transformação do país à “revitalização dos valores morais, éticos e do
civismo”, ao fortalecimento do “sentimento de Pátria”, ao “combate à revolução
cultural”, à “promoção do sentimento coletivo de Nação” e à “valorização dos
vultos históricos do Brasil, sem viés ideológico, a fim de resgatar a
identidade nacional”. Por isso, a distância entre as duas iniciativas é
abissal.
Embora toque em pontos importantes para o desenvolvimento
socioeconômico, o primeiro trabalho não só carece de objetividade, precisão
técnica e propostas sofisticadas, como também não consegue deixar de lado o
mantra da denúncia da “ideologização nociva”, ao mesmo tempo em que propõe como
alternativa visões ingênuas, simplórias e distorcidas da realidade atual. Por
exemplo, enquanto o livro dos técnicos do BNDES chama atenção para a
necessidade de iniciativas voltadas à ampliação da exposição da economia
brasileira à abertura do comércio internacional, o documento dos militares,
explicitando o nacionalismo de cartilha de seus autores, opõe-se a um fato
concreto — a globalização dos mercados de bens, serviços e finanças, acelerada
após a crise do petróleo na década de 1970.
“O globalismo é um movimento
internacionalista cujo objetivo é massificar a humanidade, progressivamente,
para dominá-la; [para] determinar, dirigir e controlar tanto as relações
internacionais quanto as dos cidadãos entre si”. “No centro do movimento está a
Elite Financeira Mundial, ator não estatal constituído por megainvestidores,
bancos transnacionais e outros entes megacapitalistas […]. O argumento central
do globalismo é de que lidar com problemas cada vez mais complexos, como crises
econômicas, proteção do meio ambiente, direitos humanos e outros, requer um
processo centralizado de tomada de decisões em nível mundial. É comum a Elite
cooptar, aliar-se ou se alinhar com potências mundiais, organismos
internacionais e ONGs […]”. No Brasil, “é visível a união de esforços entre determinadas
entidades nacionais e o movimento globalista, inclusive com o apoio de
relevantes atores internacionais, visando a interferir nas decisões de
governantes e legisladores, especialmente em pautas destinadas a conceder
benesses a determinadas minorias, em detrimento da maioria da população, a
exercer ingerência em nosso desenvolvimento econômico, usando pautas
ambientalistas a reboque de seus interesses e não pela necessária preservação
da natureza, e a provocar crises que enfraquecem a Nação em sua
busca pelo desenvolvimento”.
Entre outras afirmações inverossímeis, o
documento afirma que, em sua “face mais sofisticada”, o globalismo deflagrou o
“ativismo judicial político-partidário”, levando parte do Judiciário, do
Ministério Público e das Defensorias Públicas a atuarem “sob um prisma
exclusivamente ideológico, reinterpretando e agredindo o arcabouço legal
vigente, a começar pela Constituição brasileira”. Essa é uma posição de quem
desconhece o funcionamento do Judiciário, não acompanhou as mudanças do direito
contemporâneo, não sabe que a interpretação de uma lei não é uma atividade
mecânica e ignora as técnicas mais elementares de hermenêutica jurídica[1].
Problema semelhante também pode ser visto
no capítulo do documento relativo à educação. Os técnicos do BNDES apontam a
importância de investimento em capital humano, por meio de uma reforma
educacional capaz de melhorar as condições de chegada das novas gerações ao
mercado de trabalho formal. Ao beneficiar jovens dos setores mais
desfavorecidos da sociedade, um ensino público de qualidade reduziria
desigualdades sociais gritantes, classificadas pelos autores como “uma chaga
moral da sociedade” brasileira. Já o documento dos militares, entre outras
platitudes, como a proposta de melhorar “as técnicas pedagógicas de emprego de
recursos tecnológicos”, fala em “aperfeiçoar a formação profissional, ética e
cívica dos docentes”, em “coibir a ideologização nociva do ensino” e desprezar
“propósitos de ideologias de qualquer natureza”. Em que medida essa linha
programática não é, ela própria, uma ideologia autoritária, avessa à
pluralidade valorativa que deve nortear o sistema de ensino? No caso do ensino
superior, além disso, esse pessoal se esquece de que, por princípio, a
universidade não deve ser voltada apenas para a tarefa de produzir
profissionais destinados a exercer tarefas específicas, limitadas pela própria
especialização, nem converter a ciência em força produtiva. Pelo contrário, por
ser um centro de formação, de produção do conhecimento, de geração de cultura e
de liberdade de criação, com capacidade de colocara e equacionar problemas, ela
deve ser livre, laica e independente. Seu papel é articular saberes,
desenvolver pensamento crítico, forjar lideranças intelectuais e, acima de
tudo, descortinar horizontes — em vez de encurtá-los ou até de fechá-los.
Em seu livro, os técnicos dessa ilha de
racionalidade, que é o BNDES, apontam medidas para melhorar a qualidade dos
gastos públicos. Entre os problemas relativos à má qualidade dos gastos
públicos está a corrupção. Sobre este tema, o trabalho dos militares afirma,
mais uma vez, que a maneira de combatê-la é… “coibir a pregação ideológica
radical nos três níveis da educação”, reduzindo a corrupção e a improbidade na
administração pública a uma simples questão ideológica. Para assegurar a
retomada do crescimento, os técnicos do BNDES também propõem “uma nova
construção política” com base em quatro itens: alterar a regra do teto de
gastos; promover um aumento “modesto” da carga tributária; formular “uma
política social inteligente e adequadamente dosada”, por meio de programas para
beneficiar trabalhadores informais; e medidas de ajuste para reforçar a austeridade
fiscal. Um pacto com esses objetivos só pode ser obtido por meio de amplo
diálogo com todos os setores sociais, baseado nas regras democráticas e no
respeito às prerrogativas do Legislativo.
Neste ponto, o documento dos militares
parece avesso a esse diálogo amplo. O texto parte da premissa de que é preciso
“fortalecer a democracia por meio de reformas institucionais que saneiem as
disfuncionalidades do Estado, neutralizem a corrupção, o poder de ideologias
radicais de qualquer natureza e valorizem o civismo”. Propõe o aperfeiçoamento
dos sistemas político e jurídico, a fim de que a “a liberdade” possa ser
“exercida com responsabilidade”, sem, contudo, explicitar quem é que define o
que é responsabilidade. Defende a neutralização do “poder político e social das
correntes de pensamento radical, sectárias, não democráticas, que dividem a
Nação”. Afirma que a percepção de liberdade no país está sendo “confundida com
liberalidade e sem cidadania e espírito cívico”. Diz que o “sistema jurídico”
está submisso a lideranças corrompidas, motivo pelo “não garante leis iguais
para todos e permite que elas sejam manipuladas por grupos poderosos”. Aponta
como óbice para a democracia a “falta de lideranças atuantes e de movimentos
sociais organizados que contribuam […] para que a grande maioria da população
adepta da liberdade econômica com responsabilidade social e conservadora
evolucionista, faça valer sua vontade e seu pensamento político”,
desqualificando assim os demais movimentos sociais como interlocutores. E, de
modo obsessivo, volta a tratar como problemas a “revolução cultural que vem
comprometendo a coesão nacional” e o “enfraquecimento do sentimento de Pátria e
de Nação, com tendência à divisão da sociedade, pela crescente submissão dos
interesses da coletividade nacional aos que atendem aos anseios de grupos
minoritários”.
São afirmações perigosas. De um lado,
porque são retrógradas, desprezando o pluralismo do mundo contemporâneo. Se
ficasse fora dessa revolução cultural, o Brasil seria um país isolado, como uma
Coreia do Norte. De outro lado, porque essas afirmações justificam a tutela da
sociedade por um estamento que se arvora, sem legitimidade, em uma autoridade
moderadora acima das instituições democráticas. Esse pessoal se esquece de que
a República brasileira é fruto de um golpe militar, origem que viciou o regime
político-democrático desde seu início. Como lembra José Murilo de Carvalho,
aquela “intervenção militar tornou-se um modelo, quase uma norma recorrente ao
longo da República. Esta origem criou entre os militares a ideia de que eles
são os pais da República. Que eles são os responsáveis pela República e
herdaram o direito, como corporação, de intervir na política quando assim o
desejarem”[2].
Além de uma visão de mundo da altura de um
rodapé, esse é o maior problema do documento dos oriundos de uma corporação
que, desde 1889, têm dificuldades para conter ao desejo de ir muito além de sua
missão constitucional específica. Ele cheira a naftalina, dada sua associação
ao preâmbulo dos Atos Institucionais 1, 2 e 5 da ditadura de 64, nos quais os
militares se diziam autorizados a legislar em nome de uma “autêntica ordem
democrática”, porém assumindo-se como instrumento de neutralização de quem
fizesse oposição à “ordem revolucionária”. O problema é que, quando esse tipo
de Estado define o inimigo, ele se converte em Estado totalitário. Quando um
regime político quer que todos cantem pelo mesmo missal, não há democracia.
Quem mudar de hino terá de sair da igreja, espontaneamente ou pela força. Nesse
sentido, falta aos autores do projeto de Nação dos militares o que os técnicos
do BNDES, ao entreabrirem o encontro entre o pensamento econômico e a realidade
do mundo atual, têm de sobra — capacidade de compreender a história como
processo, levando em conta a tensão entre continuidades e rupturas. Em seu
livro, eles defendem ideias e instituições para melhorar a realidade, o que
traz novos problemas — e estes, para serem enfrentados, exigem pesquisas, estudos
e embates acadêmicos com atores que são expressamente desqualificados pelos
autores do documento dos militares.
Essa é a distância abissal entre as duas
iniciativas que recolocam na agenda a ideia de definição de um projeto de país.
No limite, o documento dos militares — o estamento que almeja estar por trás do
Estado e que, apesar de ser uma instituição permanente, deixa-se confundir com
o atual governo, que é transitório — caminha na linha do pereat mundi,
fiat ordo, sob comando deles, é claro. Já para os técnicos do BNDES está
claro que economia e democracia são coisas sérias; suas propostas manifestam a
consciência de que a responsabilidade política é uma via de mão dupla, tendo
como marco fundamental um Estado que ouve e responde ante os poderes
constituídos e os setores articulados da sociedade e que se prepara para
atender às demandas e pressões da sociedade.
*José Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Notas:
[1] Ver, nesse sentido, meu artigo Judicialização
da política, ativismo judicial e tensões institucionais, in Journal
of Democracy, edição de novembro de 2021.
[2] Entrevista concedida ao Jornal do
Brasil, publicada em 5 de novembro de 1989, p. 13.
Nossa,excelente artigo!
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