quinta-feira, 16 de junho de 2022

Malu Gaspar: O golpismo e a chantagem andam juntos

O Globo

Dizem em Brasília que, como jabuti não sobe em árvore, se o bicho aparecer pendurado numa, é porque alguém o colocou ali. O último jabuti a surgir sobre um galho na capital da República passou a circular no Congresso nesta semana.

É a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que dá aos parlamentares o poder de desfazer decisões do Supremo Tribunal Federal que não tenham sido tomadas por unanimidade entre os ministros.

A iniciativa é de um deputado ruralista, Domingos Sávio, que também é do PL, o partido de Jair Bolsonaro. Sávio deu ao documento o curioso título de “PEC do Equilíbrio entre os Poderes”, embora, na verdade, ela estabeleça exatamente o oposto, a subordinação do Supremo ao Congresso. O que, por ferir a independência entre os Poderes, a torna flagrantemente inconstitucional.

A ideia foi imediatamente encampada por integrantes da bancada evangélica e bolsonaristas ferrenhos — como o deputado Bibo Nunes (PL-RS). "Assim como eles querem fazer constantemente com a gente, nós também queremos colocar um freio", disse.

A declaração é música para os ouvidos de Bolsonaro. Quem conhece o Congresso sabe que nem Sávio e nem Nunes têm força para bancar uma medida desse calibre. Por isso, a PEC foi recebida no Congresso como obra da cúpula do Centrão, mais especificamente do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), do líder do governo, Ricardo Barros (PP-PR), e dos deputados Wellington Roberto (PL-PB) e Marcos Pereira (Republicanos-SP).

 

Eles, sim, têm o poder de fazer uma proposta andar ou parar no Congresso. O apoio de eminentes membros do Centrão, como o vice-presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Darci de Matos (PSD-SC), e o vice-líder do Republicanos, Lafayette de Andrada (Republicanos-MG), só demonstra que, se não inventou a proposta, a cúpula tampouco se moveu para impedir que ela nascesse.

Diante do espanto geral, tanto Lira como Pereira correram para dizer que não tinham nada a ver com a história — tanto publicamente como nos bastidores, mandando recados apaziguadores ao Supremo. Ato contínuo, parlamentares garantiram aos jornalistas que a proposta não tem chance de prosperar no Congresso. Tudo certo, portanto? Mais ou menos.

Difícil acreditar que se tratou apenas de um arroubo sem consequências, prestes a ser contido. Um exemplo recente sugere bem o contrário.

Depois de dez anos sem o Congresso avaliar nenhuma prestação de contas do Tribunal de Contas da União (TCU), o presidente da Comissão Mista de Orçamento, Celso Sabino, anunciou que olhará com lupa os gastos do órgão em 2021.

Sabino, aliado fiel de Lira, disse ainda que cogita entrar no Supremo ou mesmo apresentar outra PEC para garantir que o TCU se atenha à função de órgão auxiliar do Congrestso e pare com essa mania de querer tolher o Legislativo. Em outras palavras, quer pôr um freio no TCU.

Os ministros do tribunal vêm sendo questionados pelo alto volume de despesas com diárias de viagens no exterior, o que merece mesmo verificação mais atenta.

Contudo a razão da medida de Sabino foi outra. Segundo ele mesmo, o fato de o tribunal ter mandado parar, em maio, as obras de pavimentação de estradas bancadas pela Codevasf com emendas parlamentares.

Na decisão, o TCU considerou que a estatal, comandada pelo Centrão, fazia contratações sem critérios técnicos, dando chance a licitações dirigidas e permitindo até que os parlamentares escolhessem o tipo de asfalto usado. Uma vez criado o furdunço, os bombeiros da Câmara entraram em ação nos bastidores para apaziguar os ânimos — desde que, é claro, o TCU também baixasse a guarda.

Na segunda-feira, o tribunal anunciou que aceitou as explicações da Codevasf e liberou as obras.

Os dois casos podem até não dar em nada, mas servem para enfraquecer os controles institucionais que formam o sistema de freios e contrapesos tão caros à democracia. Se há na PEC do Supremo um componente flagrantemente golpista, há também oportunismo de quem está acostumado a sentir o cheiro de sangue para atacar alvos frágeis.

É prova de que no Brasil, hoje, o golpismo e a chantagem cada vez mais andam juntos. Quando isso acontece, o resultado é imprevisível. Mas não tem nenhuma chance de ser bom.

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