Valor Econômico
Ao avançar sobre o orçamento dos Estados,
Congresso tenta sobrepujar governadores na intermediação de recursos
Num país em que mais da metade da população
passa fome ou vai dormir com medo de não ter o que comer no dia seguinte, o
presidente da República sempre precisará de bodes expiatórios. O da vez, para
Jair Bolsonaro, são os governadores.
Ao encampar a contenda do ICMS e aprovar
seus pressupostos, o Congresso vai além. Mais do que um estelionato eleitoral
para baixar a inflação a marretadas, o que está em curso é um assalto à
Federação, com consequências que extrapolam a era Bolsonaro.
Aposta-se numa mudança estrutural que
entronize os parlamentares, definitivamente, como entrepostos do Orçamento
nacional. O avanço das emendas parlamentares, particularmente das emendas de
relator, não deu conta da tarefa. Sem ter como aumentar de imediato sua fatia
nos gastos da República, o Congresso trata de diminuir aquela dos governadores.
Isso está claro no avanço sobre aquele que é o principal imposto do país, o ICMS. O governo federal e seus aliados no Congresso alegam que a receita dos Estados cresceu. A da União também. Todas abraçados à inflação. Misturam a arrecadação nominal com a real. Se colar, colou. Enquanto isso, garfam a capacidade permanente de arrecadação dos Estados.
Élida Graziane, procuradora do Ministério
Público de Contas do Estado de São Paulo e professora da FGV, diz que as formas
de compensação propostas são uma réplica dos pires que entregaram nas mãos dos
governadores com a Lei Kandir, de 1996, quando uma outra rodada de isenção do
ICMS obrigou os Estados a renegociar todos os anos os valores da compensação.
A nova temporada de oneração dos Estados,
porém, se dá num momento de novas pressões sobre o orçamento de Estados e
municípios com bondades sendo distribuídas com o chapéu alheio. Tome-se, por
exemplo, o piso nacional dos professores. Seu aumento, de 33%, em janeiro deste
ano, foi capitalizado por Bolsonaro como o maior da história, mas caiu no colo
de prefeitos e governadores.
Em abril foi a vez de o Congresso aprovar o
piso nacional da enfermagem. Não é apenas outra demanda histórica atendida com
chapéu alheio. Além de onerar a folha de Estados e municípios, o piso
pressionará os planos de saúde a fazer novos reajustes. Aprovadas as mudanças
no ICMS, os hospitais públicos estaduais e municipais disporão de menos
recursos para cuidar da população que vai ser expulsa dos planos.
Nos cálculos de Élida Graziane, se as
perdas de R$ 115 bilhões estimadas pelo conselho de secretários de fazenda e
pela confederação nacional dos municípios se concretizarem, a educação terá R$
28,7 bilhões a menos e a saúde, R$ 14,6 bilhões. Na entrevista em que foi
proposta a emenda constitucional para zerar o ICMS sobre combustíveis, o
ministro Paulo Guedes arvorou-se a usar o critério de “essencialidade” como
norte das políticas federais. A aplicá-lo à educação e à saúde públicas,
governo e Congresso preferem reservá-lo para a gasolina da classe média.
É claro que há distorções no ICMS e que
estados e municípios não devem ser poupados de esforços fiscais para reduzir o
impacto da alta de combustíveis sobre os mais vulneráveis. Há inúmeras
propostas na mesa, que se valem dos royalties aos dividendos distribuídos pela
Petrobras. Pelas redes sociais, o governador de São Paulo, Rodrigo Garcia,
acrescentou mais uma. Foi uma resposta à proposta de emenda constitucional
parar zerar o ICMS, bode na sala para a aprovação do projeto que fixa em 17% o
limite da alíquota sobre combustíveis.
O governador acendeu o pavio: a suspensão,
por dois anos, do pagamento da dívida do Estado. “Uso esse dinheiro para zerar
o ICMS do diesel, etanol e gás de cozinha e reduzir a gasolina. Não precisa de
PEC. É mais justo e rápido”, provocou.
Do outro lado há um vale-tudo para transferir
a fatura. Há cerca de um mês, num almoço promovido por um ministro do Supremo
Tribunal Federal com a presença de outros parlamentares, o presidente da Câmara
já havia sondado a edição de uma PEC para os combustíveis a exemplo daquela
que, no início da pandemia, recebeu o nome de “Orçamento de guerra”.
Lira mira na retirada de travas fiscais
como o teto de gastos e a Lei de Responsabilidade Fiscal. É o que lhe falta
para conseguir uma maior paridade de armas com os governadores. Não é
coincidência que esta guerra em torno do ICMS tenha explodido num momento em
que as duas maiores lideranças do Centrão, Lira e o ministro da Casa Civil,
Ciro Nogueira, sejam oposição nos seus Estados. Não porque almejem a cadeira.
Com o poder de que dispõem, ambos poderiam
se eleger governadores em Alagoas e no Piauí. Preferem, no entanto, ficar onde
estão, desde que mantenham o poder local, nos seus estados e nos dos aliados,
que garante a recondução de seus mandatos e de suas bases.
Não teriam ascendência sobre ministérios,
autarquias, agências reguladoras e tribunais federais se estivessem sentados na
cadeira de governador de estados carentes. Só estenderiam o pires para o
ministro da Economia, sem condições de disputar poder com ele, como hoje o
fazem.
Arthur Lira e Ciro Nogueira não vivem numa
bolha. Têm acesso às evidências cada vez menores de reeleição de Bolsonaro.
Esta continua a ser a prioridade, mas, a cada rodada de pesquisa, o
fortalecimento do Congresso sobre o Orçamento passa a ser o plano A.
Nesse intento, contam com a adesão do
presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), cuja pauta, assim como a de
Lira, é a recondução ao cargo. Isso passa por segurar a execução de um lote de
emendas depois da eleição, quando se saberá quais parlamentares serão reconduzidos,
mas vai além.
Não têm hoje como dar curso ao desejo, já
explicitado pelo líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), de uma
Constituinte que alveje o pacto federativo e a autonomia de estados e
municípios. Mas agem, como resume Élida Graziane, para executar, à sua maneira,
o plano DDD (desobrigar, desvincular e desindexar) de Paulo Guedes sobre a
receita dos Estados.
Com uma entre muitas diferenças. Ao longo dos últimos anos, as despesas dos estados foram submetidas a um número cada vez maior de crivos. Já aquelas sob o controle do Congresso precisaram da intervenção do STF para terem um mínimo de transparência. Cobrado sobre a publicidade das emendas de relator, Lira já mandou que os órgãos de controle acompanhassem as redes sociais dos parlamentares. É o plano E de escárnio.
Pois é,metade da população passa fome e a parcela mais rica faz regime.
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