Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Diálogos do ministro, reproduzidos em “Sem
máscara - o governo Bolsonaro e a aposta pelo caos”, mostram como ele renova a
ilusão de que seu mérito não está no que faz, mas no que não deixa fazer
“Minha
mãe mandou esta carta para o senhor. Ela é sua fã e vê seu sofrimento. Mandou
esta carta desejando ao senhor muito boa sorte e orações.” O destinatário a devolveu:
“Diz o seguinte para ela: com o filho que ela arrumou para mim, não tem oração
que dê jeito. Eu tô fud... mesmo. Pode devolver isso para ela”. O filho da
piedosa genitora se dirigia à porta quando foi chamado. “Vem cá, me dá a carta.
Diz a ela que vou botar no meu oratório que minha mulher fez lá em casa.
Desculpa eu ter falado isso pra você. É que tô muito aborrecido com sua saída,
mas você tem um nome a zelar. Eu não tenho, né? Só você que tem.”
O emissário da carta é o ex-secretário do
Tesouro Bruno Funchal. E seu destinatário é o ministro da Economia, Paulo
Guedes. A conversa, segundo o jornalista Guilherme Amado, se deu depois que o
ministro e seu ex-secretário foram apresentados às claraboias no teto de gasto
sugeridas pelo Palácio do Planalto: o cálculo passaria a levar em conta a
inflação de janeiro a dezembro, e não mais de julho a junho, e o pagamento dos
precatórios seria parcelado a perder de vista. Funchal não aceitou participar
da farsa e pediu o boné. As orações de sua mãe não aliviaram a barra de Guedes,
mas o filho acabaria como CEO do Bradesco Asset Management.
A história está contada em “Sem máscara - o governo Bolsonaro e a aposta pelo caos” (Companhia das Letras, 2022), livro em que Amado, colunista do Metrópoles, faz o balanço do governo Jair Bolsonaro. A fonte é um dos 47 entrevistados de quem o jornalista tomou depoimento com o compromisso de que não os identificaria. De todos os diálogos colhidos, este, talvez, seja aquele em que mais se reconheça o protagonista, tão reiterado é o comportamento de Guedes com colaboradores, subordinados e jornalistas.
Como o personagem faz, ao vivo e em cores,
declarações muito mais estapafúrdias, como a de que a primeira-dama francesa,
Brigitte Macron, “é feia” ou que tem “empregada doméstica indo para
Disneylândia”, a grosseria arrependida dos bastidores acaba por humanizá-lo, já
que a missão que enfrenta é de sacrifício. Pelo menos é o que deixa claro a
seleção dos relatos feita para o livro. Vide o episódio em que, ante uma chuva
torrencial que fechou os acessos de São Conrado à zona sul do Rio, o ministro
teria decidido descer do carro e pegar o metrô para chegar ao seu apartamento
no Leblon. “As pessoas tiraram foto, abraçaram, me agradeceram, uma coisa
linda”, teria dito. Nesses momentos, diz Amado, entendia Cristo, perseguido a
despeito de tentar ajudar a humanidade.
Nem todas as fontes dos diálogos estão “off
the records”. É caso do ex-presidente da Câmara e hoje secretário de projetos e
ações estratégicas do governo de São Paulo, Rodrigo Maia, num relato fiel do
decantado ciúme nutrido por Guedes em relação a economistas badalados na
imprensa. A birra, que se notabilizou com os economistas do Plano Real, se
estendeu aos mais jovens, como o ex-secretário de Política Econômica, hoje
presidente do Insper, Marcos Lisboa. À época da reforma da Previdência, Maia
contou como Guedes se arvorava a lhe dar ordens, solenemente ignoradas: “Você
está proibido de falar com Marcos Lisboa”.
Guedes, segundo o relato do jornalista,
soube, pela imprensa, do escolhido para o lugar de Roberto Castello Branco, por
ele indicado para ser o primeiro presidente da Petrobras do governo Bolsonaro.
Castello Branco, que, em março deste ano, assumiria o comando de uma empresa
que comprou campos da Petrobras durante seu mandato (3R Petroleum), foi a
primeira vítima da pressão pelo controle de preços.
São três os relatos compilados das
tentativas de Guedes de demover Bolsonaro e seus militares da nomeação do então
diretor de Itaipu, o general Joaquim Silva e Luna, ex-ministro da Defesa do
governo Michel Temer. Os dois primeiros com o chefe: “Tem um negócio,
presidente, chamado especialidade. O cara tem que ser especialista. Botar
militar na Petrobras é mesma coisa que mandar um dentista pra guerra pra
chefiar um Exército. Não vai dar certo”. Na segunda tentativa, aludiu ao
controle militar da PDVSA: “Existe o risco de os militares, desempenhando
tantas funções que não são deles, se deixarem corromper, como aconteceu na
Venezuela”.
Não se sabe o que ouviu de volta. Mas deve
tê-lo levado a insistir, desta vez, um degrau abaixo. Em conversa com
“generais”, disse: “O Geisel e o Figueiredo foram um desastre. Vocês saíram
pela porta dos fundos, sabe por quê? Vocês não acreditaram na sociedade aberta.
Vocês querem um Brasil forte? Uma grande economia de mercado? São os
americanos, com Forças Armadas fortes. Quem vocês acham que está mais
defendido? Quem tem a Petrobras, a Eletrobras, a Cinebras, ou quem tem o
segundo maior exército das Américas?”.
Guedes perdeu a parada. Não apenas com
Silva e Luna, que permaneceu no cargo por quase um ano, como com aquele que
viria a sucedê-lo, José Mauro Coelho. Ex-secretário de Petróleo, Gás Natural e
Biocombustíveis do Ministério de Minas e Energia, Coelho chegou ao cargo pelas
mãos do ex-ministro do MME Bento Albuquerque, almirante da reserva. Apesar de
civil, sua indicação foi vista como um reforço da Marinha vis-à-vis os
interesses desde sempre defendidos por Guedes na estatal.
Coelho não esquentará a cadeira. A guerra
da Ucrânia fez explodir a cotação internacional do petróleo e, principalmente,
do diesel, levando a nova escalada das pressões. Foi a oportunidade para Guedes
retomar a ofensiva com a indicação de Caio Paes de Andrade, um ex-presidente do
Serpro que ocupava a secretaria de desburocratização do Ministério da Economia.
O ministro já havia tentado emplacá-lo
quando Bolsonaro resolveu tirar Silva e Luna. Foi atropelado pela dupla Adriano
Pires e Rodolfo Landim, que arregimentou apoio tanto do Centrão quanto do MME.
Os conflitos de interesse da dupla vieram à superfície. A desistência abriu
espaço para Coelho.
A retomada da Petrobras é a principal
aposta de Guedes, não apenas para ficar no governo num eventual segundo mandato
de Bolsonaro, mas para marcar algum tento numa gestão marcada pelo baixo
desempenho da economia. O Fundo Monetário Internacional contrariou a previsão
de Guedes de que o Brasil, que cresceu 0,5% no biênio 2020-2021, e mais oito
países estariam com o PIB superior àquele que antecedeu a pandemia.
Na verdade, há 35 economias nesta situação,
sendo 31 com resultado superior ao brasileiro. No biênio da pandemia, a
economia global cresceu 2,6% e os emergentes, 4,4%. Com um crescimento de 0,5%,
o Brasil só tem um desempenho benéfico se comparado com a América Latina e o
Caribe, onde a economia encolheu 0,6%.
Nenhum dado é mais crítico para Guedes, no
entanto, do que a alta da inflação, que bateu 12% nos últimos 12 meses e
corrobora para a impopularidade do presidente. Tudo que o governo joga na renda
dos mais pobres, a inflação toma.
O calendário corre contra Guedes. A decisão
do conselho de administração da Petrobras de postergar a assembleia de
acionistas para julho retardou a troca no comando da estatal e a execução dos
planos do ministro. Até emissários da Cosan, empresa para a qual Coelho havia
sido sondado antes de aceitar o convite de Bento Albuquerque para a Petrobras,
foram mobilizados para reiterar o convite, sem sucesso. Até a assembleia de
acionistas a estratégia da empresa é se defender das pressões pelo congelamento
do combustível com alertas sobre o desabastecimento, que, se hoje está
pressionado pelos embargos contra a Rússia, ficaria numa situação ainda mais
crítica com uma trava nos preços.
Para pressionar conselho e assembleia sobre
o controle de preços, a Economia corre com os planos de privatização. Aprovou
no Conselho do Programa de Parceria de Investimentos (CPPI) a recomendação de
um decreto presidencial que permita o início de estudos sobre a privatização. É
um primeiro passo que ainda está longe de significar a inclusão da estatal no
Plano Nacional de Desestatização, etapa que depende de chancela do Congresso.
E é justamente de lá que partem as maiores
pressões contra Guedes. O ministro é o último obstáculo para o Centrão
estender, ao Executivo, o mesmo domínio que exerce sobre o Legislativo. O novo
pacote para a redução do ICMS apresentado pelo governo ao Congresso avança
sobre a receita de dividendos da União auferidos do lucro da Petrobras, à
revelia do ministro.
No início da semana, Bolsonaro alimentou as
especulações de que Guedes possa vir a ser substituído. Disse que o ministro
“de vez em quando” se mostra “cansado” e cobrou dele solução para os
combustíveis. Revelou que recebe pressões para trocá-lo, mas que, apesar de
tudo, confia na “lealdade mútua para mudar algumas coisas e prosseguir nessa
linha”. E jogou um aperitivo para o Centrão ao dizer que desmembraria a
Indústria e Comércio da pasta de Guedes.
Bolsonaro acaba por reforçar outro dos
mantras ilusionistas do ministro, cujo sucesso pode ser medido pelo número de
executivos de grandes bancos e empresas que o repetem: seu mérito não está no
que faz, mas no que não deixa ser feito. E é alimentando esta ilusão que o
ministro renova o passaporte da nação bolsonarista, desafiando aqueles que
duvidavam de sua coabitação com as pedaladas da reeleição presidencial.
Noutro dos longos diálogos de Guedes, segundo o resgate de Guilherme Amado, o ministro estoura com o ex-governador João Doria, que, no início da pandemia, ligou para convencer o amigo a deixar o governo. Aconselhou-o a pensar na sua biografia. “Biografia é o ca..., tô ca... para a minha biografia”. Manteve o hábito de dizer e se desdizer em questões de segundos: “Quero o julgamento da história, João. Não quero o julgamento de paixões contemporâneas. Para falar a verdade, não estou nem preocupado com isso, estou preocupado em sair dessa m...”. Como, de resto, 212 milhões de brasileiros.
Guedes é muito parecido com Bolsonaro,senão não estaria no governo até hoje,ou melhor,nem teria entrado.
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