quarta-feira, 22 de junho de 2022

Memória | Graziela Melo*: A prisão

Dois de setembro de 1970. Dia terrível. Fatídico. Inesquecível. A essas alturas de nossas vidas já havíamos nos mudado cinco vezes em pouquíssimo tempo. A cada suspeita ou medo de sermos descobertos, nos arrancávamos carregando, além dos filhos, pouquíssima coisa, deixando para trás as estruturas das casas montadas. Carregar mudança era um risco que não se podia correr. Era fornecer nosso roteiro para os olheiros de plantão, tanto da polícia como do Exército. A tensão era tal que contraí uma ulcera. Tensão essa que aumentou quando comecei a desconfiar que estava sendo seguida. No bondinho de Santa Teresa, ao meu lado, sentara um sujeito. Tive a nítida impressão de já tê-lo visto em alguma parte. Desci no meu ponto na Almirante Alexandrino. Ele seguiu. Na outra noite quando desci, às 7h da noite, aproximadamente, lá estava ele no nosso portão. Às 6 horas da manhã do dia seguinte a campainha toca com muita estridência. Eu sabia que eram eles. Tinha certeza. Gilvan acordou assustado. Fui até a porta. Abri o postigo. Pelos vazios entre as grades colocaram uma arma em meu peito. “Abre ou eu atiro”. Não abri. Estranha reação de uma mulher tímida quando se sente na obrigação de proteger. Não cedi a pressão que continuou Abre ou atiro, abre ou atiro.

Com a porta fechada e calmamente argumentei que não sabia quem eles eram, que não podia abrir a porta para bandidos, que na minha casa não existia arma de fogo, etc. Como a porta continuasse fechada, foram obrigados a exibirem seus documentos do Ministério do Exército. A contra gosto. Mas este fato pode ter salvado a vida de Gilvan. Invadiram então a casa. Esses curtos instantes do diálogo com a porta fechada foi suficiente para que Gilvan desse sumiço a alguns documentos do Partido. Algemaram-no, reviraram tudo. Apreenderam uma dessas fotos mais comuns de Che-Guevara, rasgaram outra de Dom Helder Câmara a quem xingaram bastante. Na hora da saída Gilvan pediu para ir até o segundo quarto para despedir-se de nossos três filhos.

Se foram. Fui até o portão. Distribuiu-se em dois carros e foram embora. Mal se foram, troquei de roupa e fui ao advogado, Dr. Modesto Silveira. De lá para o Dr. Jansen Machado.

Começou minha peregrinação. Primeiro o nono andar do Ministério do Exército onde funcionava um dos Departamentos do DOI-CODI. Identifiquei-me para um oficial e disse que buscava noticias de meu marido preso naquela manhã. O Oficial para surpresa minha, respondeu que não. Não podia ser. Pois do Exército não partira ordem para prender ninguém. Eu insisti que sim e ele que não. Então me perguntou como é que eu sabia. E eu lhe respondi que não abrira a porta até que os homens exibissem seus documentos do Ministério do Exercito. Visivelmente contrariado, o oficial foi até o telefone. Voltou e falou, ainda contrafeito, que Gilvan se encontrava no Quartel da Barão de Mesquita, mas que eu não poderia vê-lo.

Mais uma vez teria que contrariar as “ordens”. Fui para casa. Dia seguinte pela manhã, peguei as três crianças, mais a filha da empregada e a própria empregada e rumei para o quartel do DOI CODI, na Barão de Mesquita. Toquei a campainha no portão de ferro. A sentinela chamou alguém que me perguntou o que eu queria. Vim visitar meu marido que se encontra preso aqui. Fizeram-me entrar e sentar num banco de madeira longo, como banco de Igreja. A essa altura já sabiam que eu sabia que Gilvan estava lá. Veio me atender um cidadão a paisana. A ele perguntei o que fora feito de meu marido. Queria saber se estava vivo ou morto. O cidadão me respondeu com um sorriso irônico que “ainda” estava vivo. Tratava-se do hoje conhecido capitão médico Amílcar Lobo.

*Crônicas, contos e poemas, p. 38. Abaeté Editorial / Fundação Astrojildo Pereira, Brasília, 2008.

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