segunda-feira, 6 de junho de 2022

Miguel de Almeida: Pastores sem compaixão por mortos

O Globo

Como vivemos no mesmo mundo, é razoável supor que os pastores bozofrênicos tenham acompanhado as duas dezenas de mortes na Vila Cruzeiro, depois de mais uma letal operação policial.

Difícil também, pode-se afirmar com 99% de certeza, que os mesmos religiosos não estejam informados da morte por asfixia de um motoqueiro no interior sergipano, idem por policiais.

Desnecessário perguntar se tais pastores ouviram as declarações entusiasmadas de apoio do notório Bozo à ação na Penha carioca e à minimização da morte no camburão de gás no Nordeste.

Seria instrutivo, até reconfortante, saber o que os líderes espirituais evangélicos sentiram ao ver as imagens agônicas de Genivaldo dentro da viatura. Condoeram-se? Ficaram ao menos boquiabertos, pasmados, com os gritos do seu semelhante clamando socorro?

Por certo, rapidamente puxaram outra imagem no Instagram. E deram um like na imagem de um cãozinho fofo. Calaram-se, enfim.

Pastores e seus epígonos parlamentares são rápidos em lutar contra a aprovação do aborto —sempre em nome da vida, da alma e do espírito do feto, mesmo que a mãe corra risco de vida ou que a gravidez seja resultado de um estupro.

Não importa se a vítima tenha 10 anos de idade.

O líder político da turma — já no caminho de volta para sua casa na Barra da Tijuca — vocifera em comícios, em reuniões ministeriais e a jornalistas oficiais seu desejo de armar a população.

Um rifle em cada mão. Bolsos vazios de dinheiro, mas cheios de munição. É sua única política pública, descontando aí, claro, a oposição visceral à vacinação infantil contra a Covid-19.

Certamente pode ter me escapado, mas não soube de nenhum pastor bozofrênico a lamentar a morte brutal do motoqueiro em Sergipe.

A bancada do dízimo, de seu lado, achou normal a polícia matar duas dezenas de pessoas na comunidade carioca e continua histericamente lutando contra o aborto.

Difícil entender a lógica. Luta-se pela vida em gestação, mas extermina-se a vida já existente, visível em seu desassombro de desproteção.

O Brasil tem taxa alarmante de homicídios — em especial contra os jovens negros. Qualquer bom cristão, alarmado e compungido, diria se tratar de uma matança premeditada contra um grupo determinado.

Do púlpito evangélico, no entanto, não se escuta nenhum lamento por tantas vidas perdidas. É como se fossem mortes desejadas. Daí o silêncio cúmplice diante da sanha bozonarista em colocar um revólver na mão de cada brasileiro.

Parece haver uma torcida religiosa pela repetição no Brasil de algo como as chacinas de Tulsa, Uvalde ou Buffalo, nos Estados Unidos. É possível que se veja aí a chegada do país ao Primeiro Mundo.

Nunca se falou no Brasil tanto em Deus, pátria e família. Mesmo os milicos do golpe de 64 eram mais parcimoniosos em tamanha patacoada. Antes não se defendeu, em enchentes de perdigotos, o livre trânsito das armas e se acumpliciou oficialmente à indiscriminada violência policial contra os cidadãos.

Jamais houve tanta aquiescência de líderes espirituais com o plano presidencial de sedição para a liberação das armas.

Assim como a educação e a música sertaneja, acredite, a religião no Brasil já foi algo em defesa da vida, da tolerância e do desvalido.

Alguma coisa aconteceu no Reino dos Céus para que o país estivesse povoado por pastores incapazes de condenar a violência contra o rebanho de fiéis. Ao menos poderiam estar sintonizados com o discurso contemporâneo de defesa do consumidor e protestar contra a morte de quem paga dízimos. Enfim, de seus clientes.

Nem isso se ouve. Nem uma lufada de irmanação ou empatia. Nunca uma mão na cabeça, só no seu bolso.

O contribuinte evangélico doa seus poucos tostões não corrompidos pela inflação bozofrênica, mas nem sequer encontra guarida na palavra de seu guia religioso. Ou melhor, ouve que seria bom comprar uma arma, munição e treinar tiro.

O amparo que lhe resta é contar com um colete à prova de bala.

Imagino o que diria Frei Rosário, o espanhol que me ensinou a rezar, numa capelinha que não existe mais (hoje é uma agência bancária!). Dele guardo a lembrança da repetição dos Dez Mandamentos naquele seu sotaque pesado, com seu ar circunspecto. De todos, o mais desprezado, esquecido e solto sem repreensão:

— Não matarás, não matarás.

Também penso em Dom Paulo Evaristo Arns, o herói discreto da luta contra a ditadura, que salvou tantas vidas de presos políticos e ajudou a denunciar a carestia que humilhava a todos.

Nem Dom Paulo, tampouco o severo Frei Rosário se calariam ao ver seu rebanho abatido à bala. Sabiam identificar o demônio. 

 

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