terça-feira, 14 de junho de 2022

Míriam Leitão: Urna, floresta e soberania nacional

O Globo

O país foi tomado pela dúvida desde o dia 5 sobre o paradeiro do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira. Ontem foi um dia dramático. No meio da bruma que cercou o caso, muito está sendo revelado. No fim de semana, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) forneceu à imprensa um farto material provando que eles têm reiteradamente comunicado às autoridades crimes praticados por quadrilhas naquela região. Por que mesmo o governo não se mobilizou para coibir os ilícitos? Ontem o presidente do Senado falou em “Estado paralelo” na Amazônia. Não é exagero.

Enquanto o Brasil vive essa angústia real, no mundo paralelo do Ministério da Defesa, o general Paulo Sérgio Nogueira resolveu atacar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por um problema inexistente. A ocupação da Amazônia pelo crime é um problema de segurança nacional, concreto, verdadeiro, perigoso, mas o que move os humores do ministro da Defesa é a mentira do presidente da República de que as urnas não são confiáveis. Os termos da nota do general são inaceitáveis. Em negrito, o ministro registrou. “Cabe ressaltar que uma premissa fundamental é que secreto é o voto, não a apuração”. A apuração não é secreta, nunca foi, quem inventou isso foi Jair Bolsonaro. O general subverteu a ordem da República e quer dar ordens ao tribunal eleitoral.

O senador Rodrigo Pacheco abriu a sessão ontem falando da gravidade do caso de Bruno e Dom. “É um Estado paralelo comandado por crime organizado de tráfico de drogas transnacional, tráfico de armas, o famoso desmatamento ilegal, que é o nosso maior problema do meio ambiente no Brasil e de imagem do Brasil lá fora, o garimpo ilegal e os atentados aos povos da floresta, aos povos indígenas”, disse Pacheco.

O general Paulo Sérgio, na sexta-feira, na nota ao TSE, cita partes do artigo 142 da Constituição, que é sempre usado como ameaça pelo governo atual. O artigo, como se sabe, fala que as Forças Armadas são a garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. A extrema-direita interpreta que isso faz dos militares um poder sobre os outros Poderes. É falsa a interpretação. A ameaça fica mais explícita nas frases seguintes, quando o general diz que “não interessa concluir o pleito eleitoral sob a sombra da desconfiança dos eleitores”. Ora, essa desconfiança tem sido alimentada pelo presidente. Como fez com a vacina. Pega apenas os seus seguidores mais fanáticos, uma minoria. A maioria absoluta da população (73%) acredita na segurança das urnas. E, conclui o general, “eleições transparentes são questão de soberania nacional”.

Onde a soberania nacional está ameaçada? Onde o crime se substitui ao Estado, onde ele se espalha invadindo territórios impunemente. Não no TSE, mas no Vale do Javari. Os documentos entregues pela Univaja aos jornalistas revelam um absurdo. Os indígenas estão com o ônus de procurar criminosos. Num desses documentos, ao delegado da Polícia Federal em Tabatinga, afirmam: “Senhor delegado. Dando prosseguimento aos diálogos presenciais realizados por essa organização com o Ministério Público Federal em 25/03/2022 e com o MPF, Polícia Federal e Força Nacional em 04/04/2022, trazemos em anexo alguns documentos produzidos pela equipe de vigilância da Univaja”. E dão informações de que há quadrilhas instaladas lá e qual é o modus operandi. Em 12 de abril, enviaram à Frente de Proteção Etnoambiental da Funai ofício informando o que havia sido visto por uma equipe de nove vigilantes. Denunciam que pescadores e caçadores ilegais estavam invadindo a Terra Indígena. Contam que viram cinco embarcações de grande porte de 13 metros, três delas na comunidade de São Rafael.

No Vale do Javari, os indígenas denunciam, vigiam e protegem o território nacional. Em Brasília, o ministro da Defesa confunde conceitos e fatos sobre as eleições de outubro, o presidente mente e o vice-presidente põe a culpa nos desaparecidos, repetindo as acusações absurdas do delegado que preside a Funai, Marcelo Xavier, de que eles não pediram autorização. Eles estavam fora da Terra Indígena, que não precisa de autorização. O general Mourão disse que eles deveriam ter pedido “escolta”, porque o local é perigoso. Ontem, indigenistas entraram em greve para que o delegado Marcelo Xavier, presidente da Funai, retire as acusações contra Bruno. Como é possível tanto horror?

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