sexta-feira, 17 de junho de 2022

Naercio Menezes Filho*: Queda da renda e aumento da pobreza

Valor Econômico

Existe uma forte rede de proteção informal entre os trabalhadores menos qualificados, uma espécie de seguro informal

Dados do IBGE divulgados na semana passada mostraram uma grande queda na renda dos brasileiros em 2021. Além disto, outra pesquisa mostrou que a insegurança alimentar e a fome aumentaram bastante. Quais as razões para este rápido empobrecimento da população brasileira? Por que a rede de proteção social não está dando mais conta de proteger os mais pobres da fome?

A figura mostra a evolução da renda per capita média e dos seus componentes (renda do trabalho e de outras fontes) nos últimos 30 anos no Brasil. Várias informações nela merecem destaque. Podemos ver, em primeiro lugar, que a renda aumentou 84% entre 1992 e 2019 (3,6% ao ano), principalmente entre 2004 e 2014. A renda do trabalho foi a principal responsável por este processo, mas as outras fontes de renda também contribuíram bastante.

O mais interessante é que a renda de outras fontes aumentou continuamente no período, tendo passado de R$ 150 para R$ 390 per capita, um aumento de 160%. As principais fontes desta categoria são as aposentadorias, programas de transferências de renda, doações, aluguéis e rendimentos do mercado financeiro. Como essas rendas foram ganhando importância crescente, a renda total foi ficando cada vez menos dependente da renda do trabalho. Se antigamente o desemprego tinha um efeito brutal sobre a renda, hoje em dia as rendas de outras fontes funcionam como um amortecedor, como deve acontecer em um Estado de bem-estar social.

Por exemplo, em 2015 tivemos uma forte queda no PIB per capita, que não se recuperou até hoje. Entretanto, o efeito sobre a renda média foi limitado. A renda média declinou apenas 4% entre 2014 e 2018 e já em 2019 havia recuperado seu valor de antes da crise. Isto ocorreu não só porque a queda do PIB não parece ter afetado fortemente a renda de trabalho, mas também porque as outras fontes de renda continuaram aumentando durante o período, principalmente as que estão vinculadas ao salário mínimo, como as aposentadorias e o Benefício de Prestação Continuada.

Mas o que ocorreu entre 2019 e 2021? Este foi o período da pandemia, que afetou bem mais fortemente o mercado de trabalho. A renda média do trabalho caiu 10% em média neste período, sendo que os trabalhadores mais pobres foram os mais afetados. Entre eles, a renda do trabalho caiu 40% em dois anos, pois o isolamento social diminuiu bastante as oportunidades de trabalho informal e por conta-própria, que são as principais fontes de renda para os trabalhadores sem muitas qualificações. Além disso, o recrudescimento do processo inflacionário pode ter contribuído para a queda de renda real do trabalho, especialmente entre os mais pobres que ganham abaixo do salário mínimo.

A renda de outras fontes caiu 14% entre 2019 e 2021, ao contrário do que estava ocorrendo desde 1992. Por que desta vez foi diferente? Isso é ainda mais intrigante porque o valor das transferências de renda aumentou entre 2019 e 2021, já que o programa bolsa-família, que pagava R$ 200 em média, foi substituído pelo auxílio emergencial, que pagou em torno de R$ 250 em 2021. Assim, o valor médio real efetivamente recebido pelas famílias mais pobres de transferências aumentou 22% em 2021, apesar de ter declinado com relação a 2020, quando os valores transferidos eram de R$ 600 ou R$ 1200.

O principal responsável pela queda das outras fontes de renda entre os mais pobres neste período parece ter sido as doações. Existe uma forte rede de proteção informal entre os trabalhadores menos qualificados, em que os que passam por períodos melhores transferem renda para os que estão passando por dificuldades. É uma espécie de seguro informal. Mas, durante a pandemia, como todos os trabalhadores menos qualificados foram afetados simultaneamente, este sistema de seguro parou de funcionar. Assim, o declínio da renda do trabalho entre os mais pobres não foi compensado pelas outras rendas e a renda média caiu ainda mais, provocando a volta da fome. Sem o auxílio emergencial a situação seria ainda pior. O que deve acontecer agora?

Como a pandemia foi um evento único e a economia está voltando ao normal em 2022, deveremos observar um aumento das outras rendas e retomada do processo de seguro informal que ocorre entre os trabalhadores menos qualificados, desde que a inflação seja controlada. Além disto, a diminuição do desemprego deverá estabilizar as perdas do mercado de trabalho. Assim, não deveremos observar outra queda de renda nesta magnitude em 2022.

No longo prazo, agora que já temos um Estado de proteção social montado, aumentos de renda terão que vir principalmente da renda do trabalho, pois não será possível aumentar muito mais os rendimentos de outras fontes sem que haja forte aumento da carga tributária ou da inflação. Além disto, devemos aperfeiçoar e recuperar os programas sociais que foram desmantelados nos últimos quatro anos.

Para aumentar os rendimentos do trabalho é necessário aumentar a sua produtividade, melhorando a qualificação do trabalhador e os investimentos. Para isso, temos que melhorar a qualidade da educação, aumentar a parcela de trabalhadores com ensino superior e igualar as oportunidades entre as pessoas e entre as empresas, tornando o ambiente de negócios mais previsível e democrático.

*Naercio Menezes Filho é professor titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper, professor associado da FEA-USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e diretor do CPAP. 

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