Folha de S. Paulo
Não há nada que autorize nossos soldados a
supervisionar o Supremo Tribunal Federal no exercício de sua missão de guardar
a Constituição
A erosão das democracias constitucionais é
normalmente precedida por um forte processo de descrédito de suas instituições.
Entre os alvos preferidos dos novos
populistas autoritários encontram-se os tribunais e cortes constitucionais,
responsáveis por defender, em última instância, as regras do jogo democrático.
Quanto mais proeminentes, mais atacadas serão.
O roteiro é conhecido. Hugo Chávez ascendeu ao poder
em fevereiro de 1999. Em menos de 10 meses conseguiu aprovar, por meio
de um plebiscito, uma nova Constituição que lhe atribuiu extensos poderes,
inaugurando o que David Landau chama de "constitucionalismo abusivo",
com amplo apoio de militares.
Em 2004, após um longo período de embate com o Supremo Tribunal de Justiça, aprovou lei orgânica, aumentando o número de juízes do Supremo e alterando a regra para a nomeação e destituição de magistrados. O tribunal, desde então, assumiu uma postura servil ao regime.
Recep Erdogan, eleito primeiro ministro da
Turquia em 2003 e presidente
em 2014, inspirado em Putin, também utilizou emendas à Constituição de 1982
para consolidar seu poder e subverter um dos poucos regimes democráticos da
região.
Duas emendas, aprovadas em 2010, ampliaram
a composição e as regras de nomeação dos membros da Corte Constitucional. Após
a tentativa de golpe militar de 2015, nada menos que 2.745 juízes e promotores
foram presos. O regime de exceção se consolidou, agora com anuência da então
altiva Corte Constitucional de Ankara.
Viktor Orbán, seguindo o script, tornou-se
primeiro ministro da Hungria, pela segunda vez, em 2010.
Conquistando mais de dois terços do
parlamento, aprovou uma ampla reforma constitucional, ainda em 2011.
A poderosa Corte Constitucional Húngara,
joia da coroa do constitucionalismo democrático que aflorou na Europa do Leste
após a queda
do Muro de Berlim, passou a ser sistematicamente atacada por Orbán.
Duas emendas constitucionais ampliaram sua
composição, restringiram o acesso dos cidadãos à sua jurisdição, bem como
anularam importantes decisões anteriores às reformas de 2011. Neutralizado o
tribunal, Orbán alterou as regras eleitorais e abriu caminho para um novo
mandato.
Como Bolsonaro não dispõe da maioria
necessária para alterar formalmente as regras básicas da democracia brasileira,
sua estratégia tem sido abusar de medidas infralegais e parainstitucionais para
subverter, afrontar ou neutralizar mandamentos constitucionais. Ao encontrar
resistência no Supremo
Tribunal Federal, fez dele o principal alvo de seus ataques.
O mais grave, no entanto, tem sido a forma
insidiosa e ilegal com que passou a incitar animosidade entre as classes
armadas e o Supremo Tribunal Federal e, mais recentemente, o Tribunal Superior
Eleitoral.
O fato é que Bolsonaro busca explorar um
ressentimento difuso entre militares em relação ao Supremo que, a partir da
Constituição de 1988, assumiu a função de guardião da Constituição, deslocando
as Forças Armadas da função moderadora que ocupou de facto e não de iuri, desde
da Velha República.
As Forças Armadas têm uma missão
importantíssima e dificílima na defesa de nossa integridade territorial e,
ainda que subsidiariamente, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa dos
demais poderes. A bárbara execução
de Bruno e Dom,
numa terra sem lei, chamada Amazônia, demonstra isso.
Não há nada que autorize nossos soldados,
no entanto, a supervisionar o Supremo Tribunal Federal no exercício de sua
missão de guardar a Constituição. O mesmo se diga em relação ao Tribunal
Superior Eleitoral na condução do processo eleitoral.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
A democracia vai morrendo aos poucos.
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