terça-feira, 7 de junho de 2022

Paulo Hartung*: A polarização e o debate político-eleitoral deficitário

O Estado de S. Paulo

A bipolaridade mitológico-maniqueísta enfraquece a democracia e não dá conta da complexidade da nossa sociedade.

Qualquer debate sustentado numa polarização despreza a natureza complexa da realidade, que é um grande meio de campo múltiplo, diversificado e rico de possibilidades históricas. Especialmente na política, isso não dialoga com a potência do amplo leque de ideias, projetos e programas de ação que a vivacidade humana enseja e reclama para a construção da vida civilizada.

Assim, a discussão política reduzida a dois polos fica limitada em meio à constelação de alternativas, constrange, faz pouco-caso da amplitude de oportunidades de viabilizar as transformações socioeconômicas sempre tão urgentes e renovadas pelo andor da história. Como nos lembrou o saudoso geógrafo Milton Santos, a política é a “arte de pensar as mudanças e torná-las efetivas”. Desse modo, pode-se dizer que política polarizada é política deficitária.

Como alcançar a visão, as conversas abrangentes e densas requeridas pela ação política numa contingência de restrições de perspectiva e limitação de rumos à caminhada? Como, numa realidade de polarização hostil, superar as distâncias entre os polos e construir pontes que nos levem ao virtuoso caminho do meio? Como ir além da esquematização reducionista pautada pelo populismo antidemocrático, de um lado, e pelo populismo anacrônico, de outro?

Em resumo, este é o gigantesco desafio que se apresenta em ano de uma eleição vital para os destinos de nossa nação: escapar das armadilhas populistas que empobrecem o debate político-eleitoral ou, antes, o sequestram da agenda da realidade massacrante.

O populismo afeta democracias mundo afora, não é doença tropical. Mas, dadas as condições de nossa realidade, os estragos causados na cambaleante condição da vida socioeconômica e político-cultural nacional são dramáticos.

Perder a oportunidade de debates consistentes, distanciados de delírios tanto na fabulação de problemas quanto na imaginação de soluções, é algo com repercussões graves para o hoje e para o amanhã. Ao nos alienarmos da vida real, estamos pisando fundo no acelerador de históricas mazelas brasileiras, especialmente a desigualdade, o empobrecimento da população e o desperdício de oportunidades de efetivo desenvolvimento.

Com razão e emoção, os agentes políticos e a sociedade civil precisam estabelecer diálogos em torno de problemas concretos, em busca de soluções modernas e eficazes, tornando tanto o debate quanto a ação política contemporâneos do nosso tempo. Só assim passaremos a trilhar o caminho da transformação de nossos potenciais em prosperidade compartilhada.

Essa agenda, que tenho chamado de “novo início” nacional, só deslancha com a realização de reformas estruturantes. Não dá para seguirmos com um sistema tributário caótico, colocando-se como correntes que aprisionam e impõem uma letargia intolerável e incompatível às nossas possibilidades econômicas. A máquina governativa deve deixar de ser nicho de patrimonialismos e seara de ação corporativista e se atualizar aos padrões do digital.

É urgente investir na educação básica, incluindo tempo integral na escola e formação técnico-profissionalizante no ensino médio. Pela relevância do SUS na pandemia, ficou claro que é preciso reforçar o sistema público da saúde, especialmente nos aspectos gerenciais. A segurança pública é outro assunto urgente a ser tratado. É preciso reorganizar as políticas assistenciais para que sejam efetivamente uma ação de superação da vergonhosa realidade de concentração de renda no País.

São emergenciais a ampliação do mercado de trabalho e a dinamização da economia com incremento de incentivos à pesquisa científica e à inovação. A proteção e a preservação do meio ambiente, em especial a Amazônia, devem compor políticas públicas vigorosas, que incluam o combate a crimes como desmatamento, garimpo ilegal e grilagem de terra, e que ajudem a gerar renda e valor para a população da Amazônia, entre a qual muitos vivem abaixo da linha de pobreza.

Precisamos estar aptos a aproveitar as possibilidades da digitalidade, das demandas por infraestrutura (portos, ferrovias, dados/5G, rodovias, energia, saneamento, entre outros), da ampliação das interfaces econômicas do Brasil com o mundo e da extraordinária janela de oportunidade, para nós, da economia verde.

Essa monumental agenda, tanto de desafios quanto de oportunidades, hoje está sombreada por um debate político-eleitoral empobrecido, esvaziado pela polarização e imantado pelo culto ao personalismo, dia a dia alimentado e, infelizmente, ampliado pelos tentáculos de redes sociais perversamente instrumentalizadas.

O Brasil precisa ultrapassar a cilada da bipolaridade mitológico-maniqueísta, que enfraquece a democracia, não dá conta da complexidade da nossa sociedade, mascara a efetiva potência da política e só fortalece a marcha da insensatez que compromete ainda mais a nossa caminhada histórica rumo a um tempo de justiça social e inclusão econômica de verdade.

*Economista, presidente-executivo da IBÁ, membro do Conselho Consultivo do Renovabr, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010/2015-2018)

 

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