terça-feira, 19 de julho de 2022

Carlos Andreazza - É o orçamento secreto, estúpido

O Globo

O orçamento secreto é a razão do atentado à República em que consistiu a aprovação da PEC Kamikaze e a explicação para a facilidade com que o ataque às regras fiscais e à lei eleitoral avançou no Congresso.

O fenômeno emenda do relator — fachada ao exercício do orçamento secreto — é a chave. Não apenas achaque aos princípios da transparência e da publicidade, mas também assalto à impessoalidade na distribuição de recursos públicos, limita à mão de poucos o poder de exercer o poder escolhendo os pares — distinguindo aliados, comprando aliados — que apadrinharão milhões em detrimento de outros.

Para pensar nas possibilidades de traficância que uma modalidade de gestão obscura e arbitrária do orçamento da União enseja, leia-se a reportagem de Breno Pires na Piauí. Destrinça esquema de fraude ao SUS que se alastrou por municípios do Maranhão.

É só um exemplo de criatividade. A prefeitura informa ao Ministério da Saúde haver prestado serviços que não prestou; forja e inflaciona a realização de atendimentos, com o que aumenta artificialmente o teto dos dinheiros federais que poderá receber. Esse espaço, então, é preenchido, do chão até o telhado, na forma de emendas —via orçamento secreto —propostas por parlamentares influentes na região ou por “usuários externos” a serviço de parlamentares influentes na região. Os montantes não resultam em benefícios para o cidadão. Chegam e desaparecem, ou por meio de empresas prestadoras de serviço ligadas aos emendadores, ou em função de propina retirada sem qualquer disfarce, o político patrono recebendo a sua “volta”.

A coisa pode ter várias formas e ocorre também nas artérias de outros ministérios, como o do Desenvolvimento Regional, aquele cuja Codevasf fez o alcance da zona de influência dos rios São Francisco e Parnaíba chegar ao Amapá. Em resumo: parlamentar indica emenda a partir de golpe no SUS, ou de perversão da finalidade de uma autarquia, e vai pegar a sua parte — em dinheiro ou em capital político, não raro ambos — na paróquia.

Jogo de ganha-ganha, com muitas camadas de exercícios de poder, desde o poder grandão de Brasília até o miúdo, na ponta. Tem laranjas e rochas. Mais grandões que miúdos. Mais rochas que maranhãozinhos. Uma cadeia patrimonialista perfeita. Esquema encabeçado pelos comandos do Congresso. Senão pela ciência do que se passa, pela forma como agem. Ou já nos teremos esquecido do que revelou, ao Estadão, o senador Marcos do Val?

Que recebeu, em orçamento secreto, cota maior do que a que lhe caberia como ato de gratidão de Rodrigo Pacheco por lhe haver apoiado à presidência do Senado. Como se fosse a emenda do relator parte do Orçamento da União — de repente uma herança — de que o vovô pode dispor como quiser, deixando mais para o netinho que lhe cuidou num momento importante.

Prefeituras alagoanas cujas cadeiras estão sob aliados de Arthur Lira vão entre as mais acarinhadas em orçamento secreto —inclusive aquela tocada pelo pai desse transformer, um trator na Câmara. Uma cadeia patrimonialista perfeita.

O orçamento secreto, a própria materialização do contrato firmado entre governo Bolsonaro e o consórcio parlamentar Nogueira/Lira/Costa Neto, expressa o transtorno por meio do qual algo em essência saudável, a gestão do Orçamento pelo Congresso, converteu-se em braço legislativo para um projeto autocrático de poder que vem progressivamente minando, desde dentro, a própria atividade legislativa.

A manutenção do orçamento secreto — na forma como se executa hoje e sob os atuais executores — é o motivo por que se impôs algo como a PEC Kamikaze. Não é apenas Bolsonaro que se quer reeleger ao custo de endividamento, inflação e juros. Mas o arranjo orçamentário que costura a sociedade entre Planalto e os senhores do Congresso. A reeleição desse conjunto significaria a sustentação incontornável das emendas do relator nas mãos correntes.

O orçamento secreto veio para ficar. A diferença sendo que, com um presidente da República diferente, e estando o trator Lira mui comprado de Bolsonaro, talvez seja outro o lira a tocar as distribuições.

E Lira quer continuar a ser o lira. Com Bolsonaro, sem riscos. Donde as camadas de violência sobrepostas pela aprovação da PEC Kamikaze, cuja existência decorre da necessidade de decretar um estado de emergência artificial para violar, com segurança, a lei eleitoral. PEC para cuja aprovação o transformer Lira aterrou o regimento da Câmara. A porteira está aberta.

Não é apenas o conteúdo inconstitucional da emenda à Constituição, que formaliza que o governo de turno — extinguindo qualquer paridade de armas na disputa eleitoral — poderá despejar bilhões de reais até o fim do ano; mas também a forma como se a produziu, com a intenção para a qual se a produziu.

A intenção: garantir o statu quo encarnado pelo orçamento secreto; uma máquina que dá autonomia ao Parlamento — autonomia em relação à República.

3 comentários:

  1. Adoro quando tem sua coluna, acho-o extremamente realista em suas análises e conclusões.

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  2. Eu falo que o mundo virou uma máfia e que a Internet facilitou a vida de malandros como esse Centrão. Só falta matar para completar a bandidagem e isso não vai demorar, não

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