O Globo
Não começou no fim de semana. Tampouco foi
ocorrência isolada. Aconteceu novamente. Novamente em ano eleitoral. Acontece
desde há muito, há quatro anos assassinada Marielle Franco e esfaqueado Jair
Bolsonaro. Há quanto se sopra o apito para cachorro morder? A mordida vem. O
assoprador — nenhum mais alto que o presidente da República — não tendo
controle sobre quem será o mordido. Acontecerá novamente. O assoprador tendo
responsabilidade sobre a forma como mobiliza; a mobilização sendo muito mais
fácil sob o cenário de grave pobreza.
O momento é decisivo.
A palavra de governante influi; estimula.
Não somente a dele. Bolsonaro, ao mesmo tempo produto e produtor de
instabilidades, produto e produtor da degeneração de meios, dita os comandos
para o choque. É o que lhe dá existência. Ninguém sendo obrigado a lhe dançar a
música. Nenhum mercado eleitoral sendo mais promissor que o do candidato
pacificador.
O golpe é hoje. Não está condicionado às eleições. Não é o futuro com tanques nas ruas. Mas o presente em que o Exército — de barriga cheia — não tem outro papel senão legitimar desconfiança contra a Justiça Eleitoral; contra o sistema que endossa os mandatos políticos.
O momento é decisivo. Precisamos do mandato
pacificador ou ainda pioraremos longamente antes de começarmos a sair da vala.
Tudo o mais constante, pioraremos.
Costumo dizer para Marcella Lourenzetto,
minha parceira na rádio CBN, que este será o ano mais desafiador de nossas
carreiras. Para além do jornalismo, o desafio de 2022 é para todos os
brasileiros. O desafio do equilíbrio; de sermos fiéis ao centro de nós mesmos.
Não será fácil. Para muitos, longa viagem de retorno. A radicalização é
elemento de nossa realidade. Ninguém está livre. A todos, porém, a chance de
botar a bola no chão.
Antes de tudo, penso em termos de
linguagem. Os meios importam. Estamos, desde há muito, admitindo e conjugando o
território da política como de guerra. Isso nos afastou do razoável. Isso
normalizou a ascensão do populismo autocrático. Ninguém precisa pegar em armas
— e nunca foi tão fácil fazê-lo — para apertar o gatilho dos autoritarismos.
Quantos de nós esvaziaram relações afetivas
— apartaram-se de gentes queridas — porque pautados pelo filtro das escolhas
ideológicas? Desde quando medimos e reformamos nossos gostos, mesmo artísticos,
em função de filiações partidárias?
Enfiados e afundados — há década — na
depressão política, e sob a doença que deformou o exercício do contraditório no
rito de confronto e colisão de que se alimenta o facciosismo dogmático, nunca
foi tão propício o solo para que demos vazão ao totalitário que nos tenta.
Isso pode resultar numa família que não se
senta mais à mesa tanto quanto no fanatizado para quem o outro, divergente,
pode ser eliminado.
Que tipo de imaginação fundamenta e impele
um sujeito a atirar contra o adversário? Que imaginação erige a fé autorizativa
segundo a qual se está investido para disparar pela morte do que votará
diferentemente? Que imaginação será essa, em que a afirmação da identidade
consiste na eliminação do outro?
O espírito do tempo se manifesta
concretamente. É violento. Violento no campo da política, que ocupou e
perverte, transtornando a própria natureza da atividade política, transtornando
mesmo nossa capacidade de identificar a gravidade do assalto.
O bolsonarismo, como sistema de conflito e
para o conflito, nos exaure, turvando as percepções, enquanto mira e mina nosso
centro, nosso equilíbrio. É uma máquina para a promoção do cansaço; que — via
instabilidade permanente — estimula irritação; que nos empurra ao extremo de
nós mesmos. Nunca fomos tão irritados. Nunca aumentamos tanto a superfície para
enraizamento de extremismos.
Comecei a escrever este texto a partir e em
função do assassinato do ex-premiê japonês Shinzo Abe.
O assassino alegou que não tivera intenções
políticas. Isso — essa negativa da motivação política — é importante porque
capta o estado da percepção do indivíduo. Matou porque insatisfeito com a
economia — assim explicou. Note-se a desconexão, a supressão de qualquer
causalidade. Matou por razão política, sem intenção política. Declarou que não
tinha motivação política; e assumiu a motivação política.
A insatisfação, o descontentamento, um
conjunto que deveria produzir voto, inclusive voto ruim, gerou — por resposta —
um balaço às costas. Ressentimento resulta. Uma das mensagens: o voto não me
faz representando. Esse ato precisa ser examinado à luz de uma compreensão de
mundo que não contempla a mediação da política, que não acredita em filtros institucionais.
Exatamente o chão de descrença que o Exército brasileiro ora ajuda a ampliar.
Se não se reconhece a política, jamais se
agirá politicamente. E então a barbárie. Sem política, mas com a multiplicação
de agentes fanatizados ocupando-lhe os espaços. E então Foz do Iguaçu.
O "professor" Olavo de Carvalho deve estar contente com os resultados de sua pregação... Os ministros que ele indicou para o MEC também... O inesquecível Abraham Weintraub, então... Agredindo os membros do STF e despreocupado com os efeitos da pandemia nas escolas! O primeiro já na companhia do capeta, os demais ainda sendo aguardados por lá!
ResponderExcluirCompraram o Exército e a gente nunca pensou que tivesse preço, mas tem.
ResponderExcluirO pior é que Bolsonaro está dizendo que o assassino bolsonarista é a grande vítima porque foi chutado por alguns convidados mais exaltados.
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