O Globo
Guerra na Ucrânia obriga presidente dos EUA
a ser pragmático
O amigável soquinho de punho trocado
por Joe
Biden com o líder saudita Mohammed bin Salman, o MBS, provocou
escândalo.
— Alô, presidente, o sangue da próxima
vítima de MBS escorre nas suas mãos — reagiu a noiva de Jamal Khashoggi, o
jornalista dissidente barbaramente assassinado por ordem do herdeiro da Casa de
Saud.
Do New York Times e mesmo de parlamentares democratas, emanaram sentenças de tristeza ou escárnio. Biden afastou-se tanto do mundo real que seu retorno lembra os solavancos de uma trilha de motocross.
No tempo das palavras, Biden classificou
MBS como “pária” e proclamou que Putin “não pode permanecer no poder”. Hoje,
tempo de ação, o presidente americano enviou uma delegação diplomática à
Venezuela para negociar com Nicolás Maduro e restabeleceu o diálogo com a
monarquia saudita. A invasão russa à Ucrânia ensinou-lhe duas ou três coisas
que ele deveria saber há décadas sobre a geopolítica do petróleo.
Os valores — a defesa da democracia, das
liberdades e dos direitos humanos — deveriam ocupar lugar destacado na política
externa de qualquer país democrático. Contudo, especialmente no caso das
grandes potências, é preciso equilibrá-los com os imperativos geopolíticos.
— Não foi uma sentença prudente —
diagnosticou Henry Kissinger, referindo-se à declaração de Biden sobre Putin,
numa entrevista à revista Der Spiegel.
O presidente dos EUA não pode se furtar a
conduzir negociações com líderes de Estados autoritários — inclusive com o
responsável por uma guerra abjeta que coloca em risco a estabilidade global.
Fechar as portas não é uma opção viável,
por mais aplausos que a intransigência virtuosa seja capaz de gerar. Um fruto
das sentenças imprudentes de Biden encontra-se à vista de todos: Recep Erdogan,
o líder autoritário turco, opera como interlocutor de Putin nas negociações
sobre as exportações de grãos da Ucrânia. Aos EUA, enquanto isso, sobra apenas
a opção de denunciar o jogo de chantagem alimentar praticado pelo Kremlin
contra os países pobres.
Kissinger, assessor de Segurança Nacional e
secretário de Estado nos governos Nixon e Ford, concebeu a aproximação entre os
EUA e a China ainda maoista, no início dos anos 1970, hora da retirada
americana do Vietnã. O passo histórico isolou a URSS e acelerou o fim da Guerra
Fria. Na entrevista à Spiegel, ele formulou a crítica precisa aos fundamentos
da política mundial de Biden.
O presidente americano descreveu o atual
cenário global como uma confrontação entre democracia e autocracia — e, nessa
linha, no final de 2021, convocou uma Cúpula pela Democracia. Kissinger:
—Nas relações do mundo contemporâneo, se a
democracia é convertida no principal objetivo, emerge um impulso missionário
que poderia resultar num conflito militar do tipo da Guerra dos Trinta Anos.
A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648)
envolveu a Europa inteira. O ponto de partida da guerra foi o “impulso
missionário” da Casa de Habsburgo para estabelecer uma “monarquia universal”
católica. A França, potência católica, aliou-se a potências protestantes para
derrotar os Habsburgos. A Paz de Vestfália, ponto final do longo conflito,
inaugurou o moderno sistema de Estados e, com ele, a primazia do interesse
nacional nas relações internacionais.
Atualmente, definir a política externa da
maior superpotência nos termos de uma confrontação ideológica global implicaria
estabelecer linhas múltiplas de conflito nas esferas econômica, política,
diplomática e militar. Não há caminho melhor para convencer os eleitores
americanos a desistir do apoio político e militar à Ucrânia, trocando o
internacionalismo pelo nacionalismo isolacionista da facção republicana que
segue Donald Trump.
A guerra movida pela Rússia na Ucrânia empurra Biden de volta ao mundo real — à topografia acidentada da Realpolitik. Há pouco ele esclareceu que não pretende interferir na política interna chinesa. Falta, ainda, reconhecer que Putin não desaparecerá de cena por encanto — e que o líder russo é o interlocutor incontornável para o restabelecimento de algum tipo de ordem na Europa.
Biden e suas controvérsias.
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