segunda-feira, 25 de julho de 2022

Entrevista | Thomas Shannon*, ex-embaixador - Bolsonaro estudou Trump e parece preparar terreno para questionar eleições

Thomas Shannon vê EUA preocupados com posição de presidente e afirma que Brasil ficaria isolado em caso de ruptura

Ricardo Della Coletta / Folha de S. Paulo, 24.7.2022

BRASÍLIA - Ex-embaixador no Brasil e referência nos Estados Unidos para temas da América Latina, o diplomata Thomas Shannon, 64, diz à Folha que Jair Bolsonaro (PL) parece preparar o caminho para questionar o resultado das eleições de outubro.

Segundo ele, o presidente brasileiro e sua equipe estudaram a estratégia adotada pelo ex-líder americano Donald Trump, que em 6 de janeiro de 2021 insuflou uma invasão do Capitólio para tentar reverter a derrota no pleito presidencial.

Hoje aposentado da diplomacia, Shannon argumenta que Washington não teria problema em trabalhar com um eventual novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), hoje líder nas pesquisas, e diz que o Brasil ficaria isolado no caso de uma ruptura institucional.

O que o sr. achou da reunião de Bolsonaro com embaixadores para propagar mentiras sobre o sistema eleitoral? 

Não entendo por que o presidente escolheu falar com o corpo diplomático sobre esse tema, mas acho que ele indicou um desejo de explicar para essa comunidade em Brasília —uma das maiores no hemisfério Ocidental, portanto ele falou para o mundo— por que não confia no sistema eleitoral.

Acho totalmente surpreendente que um presidente, eleito por esse sistema e que chefia um governo que representa a vontade popular, coloque em questão o sistema eleitoral do próprio país. E fazer essa argumentação para uma audiência diplomática transforma o surpreendente em perigoso. Ele parece estar preparando o caminho para não aceitar o resultado das eleições.

Acredita que isso confirma a análise de que Bolsonaro está imitando a estratégia de Trump? 

Acredito que Bolsonaro e sua equipe estudaram muito atentamente os eventos de 6 de Janeiro [de 2021] e chegaram a uma conclusão. Primeiro, que Trump fracassou porque dependia de uma multidão pouco disciplinada e não tinha apoio institucional —de lideranças partidárias, tribunais, Forças Armadas. Bolsonaro e sua equipe avaliaram que, na hipótese de tentar algo parecido, precisariam de apoio institucional.

No entanto, na eleição de Joe Biden, embora no voto popular tenha ocorrido uma diferença de 7 milhões de votos, no Colégio Eleitoral houve um resultado bem apertado, o que permitiu que Trump argumentasse que houve fraude. No Brasil as pesquisas indicam no momento que a disputa não está apertada. Então a pergunta a ser feita é: qual o plano do presidente Bolsonaro? Esperar a votação ocorrer e declará-la inválida? Ou impedir que a eleição ocorra ao desqualificar todo o processo agora?

O fato de Bolsonaro ter algum apoio institucional lhe dá mais chances de ser bem-sucedido numa eventual tentativa de ruptura? 

Depende muito das instituições brasileiras e como elas vão responder. Recai sobre elas a tarefa de deixar claro que têm confiança no sistema eleitoral brasileiro.

E o sr. vê essa reação institucional ocorrendo? 

Está ganhando corpo, à medida que as pessoas entendem a gravidade da situação. Eu não sou brasileiro, não vou votar. Cabe aos brasileiros e às instituições brasileiras decidir o caminho que o país vai tomar. O sistema eleitoral brasileiro guiou o país no período democrático desde a década de 1980, ajudou o país a atravessar eleições presidenciais, dois impeachments, foi capaz de garantir transições pacíficas.

É um sistema que ganhou o respeito do mundo, e é chocante que nesse momento não tenha o respeito do presidente. É um erro criticar o processo eleitoral brasileiro porque abre espaço para que as pessoas tentem questionar a eleição por meio da violência, não pelos canais normais e pelos tribunais. Isso não deveria ser aceito num líder político.

A embaixada americana publicou uma nota em que manifesta confiança no processo eleitoral brasileiro. Como interpreta esse texto? 

Os EUA têm grande respeito pelo Brasil e pela democracia do país e estão preparados para trabalhar com qualquer liderança que o povo brasileiro escolher.

O comunicado afirma que o relacionamento dos dois países tem como fundamento compromissos democráticos e valores comuns. Também coloca que os EUA respeitam as instituições brasileiras e o processo eleitoral e, nesse sentido, não concordam com as alegações de Bolsonaro.

Há no Brasil analistas que argumentam que a reação internacional seria suficiente para impedir uma ruptura institucional. O sr. concorda? 

Cabe aos brasileiros protegerem sua democracia, assim como cabe aos americanos protegerem a nossa. Não podemos depender de britânicos, franceses ou japoneses. Mas o que o mundo está dizendo é que é falso o argumento de que o sistema eleitoral brasileiro é fraudulento.

Quando você pensa no que poderia ocorrer no caso de ruptura, estamos falando sobre consequências contra ações que não são democráticas. O que a comunidade diplomática está tentando fazer é garantir que o Brasil não chegue a esse ponto.

Que tipo de consequências uma ruptura poderia gerar? Há no governo quem diga que o Brasil é grande demais para ser isolado do mundo. 

Na minha experiência, o Brasil não aceita ameaças. É um erro ameaçar o Brasil. É por isso que países não estão abordando o tema para falar de consequências em caso de ruptura. O que os países estão fazendo é dizer aos brasileiros: seu sistema eleitoral funciona bem e temos confiança nele. Estão oferecendo seu apoio.

Mas se a argumentação no governo Bolsonaro é que o Brasil é importante demais ao ponto de poder fazer o que quiser, isso simplesmente não é verdade. Veja o que está ocorrendo com a Rússia. É uma economia enorme, o maior território do mundo, um país em que os EUA gastaram 30 anos construindo uma relação econômica. E tudo acabou num instante devido ao comportamento [da Rússia, que invadiu a Ucrânia]. Se houver ruptura constitucional no Brasil, o colapso da ordem democrática, o Brasil ficaria isolado, ao menos no hemisfério Ocidental e na Europa. Sob muita pressão política e econômica.

No recente encontro entre Bolsonaro e Biden, a imprensa reportou que o líder brasileiro retratou Lula como uma ameaça aos interesses americanos. Esse tipo de mensagem é efetivo? 

Enquanto o líder brasileiro for escolhido livremente pelo sistema democrático, os EUA trabalharão com quem o povo brasileiro escolher. No caso de Lula, ele foi presidente por oito anos; sua sucessora [Dilma Rousseff] esteve no cargo por quase seis. São 14 anos de governo do PT. Os EUA conhecem bem e estão familiarizados com Lula e seu partido. Foi desenvolvida uma relação de trabalho muito boa, assim como com todos os presidentes eleitos democraticamente no Brasil. Até agora, claro.

O quão preocupado o governo Biden está com a instabilidade institucional causada por Bolsonaro? 

O fato de a embaixada ter divulgado um comunicado, seguido de manifestação do porta-voz do Departamento de Estado [Ned Price], significa que o governo dos EUA está muito preocupado.

Republicanos no Senado barraram a aprovação da embaixadora indicada para o Brasil, Elizabeth Bagley. Isso limita a capacidade do governo dos EUA de, nas eleições, manifestar suas posições? 

Temos uma excelente embaixada no Brasil, e nosso encarregado de negócios [Douglas Koneff] é um servidor muito bom. Ele tem relatado a situação a Washington e expressado as visões dos EUA [ao governo Bolsonaro]. Dito isso, num mundo definido pelo protocolo, um embaixador é melhor do que um encarregado de negócios. Elizabeth Bagley era uma boa escolha. O fato de o Comitê de Relações Exteriores não ter aprovado seu nome foi lamentável. E tem um impacto muito negativo em razão da importância da relação [dos dois países] e do momento. Os republicanos sabiam disso.

*Thomas Shannon, 64, Embaixador dos EUA no Brasil entre 2009 e 2013. Foi subsecretário para Assuntos Políticos do Departamento de Estado, um dos cargos mais importantes da diplomacia americana, e secretário de Estado assistente para assuntos do hemisfério Ocidental. Teve uma primeira passagem pela embaixada em Brasília entre 1989 e 1992.

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