segunda-feira, 25 de julho de 2022

Fernando Gabeira - Esperança no Brasil pós-Bolsonaro

O Globo

Bolsonarismo deixará um legado amargo. Mas pelo menos haverá de novo a possibilidade de sonhar

Não sei se por otimismo, mas o discurso de Bolsonaro aos embaixadores não me deixou apenas triste. Vi uma luz no fim do túnel ao perceber que ele age como se já estivesse derrotado.

Se ele próprio já admite, indiretamente, sua derrota, é sinal de que novos tempos nos esperam. Não sou ingênuo. Teremos de passar pelo desconforto de desarmar sua tentativa de golpe, sua cópia desbotada de invasão ao Capitólio.

Meu otimismo com a saída de Bolsonaro não se prende tanto à instalação de outro governo e outro Congresso. Ele se baseia mais na energia social que pode ser liberada quando sua passagem se consumar.

O bolsonarismo exaure nossas forças com suas fake news, falsas polêmicas, supostos desejos majoritários, questionamento de mecanismos que funcionam bem, como nosso sistema eleitoral.

Ele deixará um legado amargo não só na economia, mas na forma de milhões de armas espalhadas pelo Brasil. Mas pelo menos haverá de novo a possibilidade de sonhar.

Outro dia, vi um documentário sobre a vida de Shimon Peres e toda a sua obra na História de Israel. Era considerado um sonhador, mas, olhando bem, em quase todos os seus feitos havia a presença social, alguns heróis anônimos que se doavam pelo país.

Não pretendo comparar situações heterogêneas. Cada país tem sua História, sua gênese, nível educacional, pressão diante de fatores externos.

Mas a superação de um governo de extrema direita libera energia e, com todos os seus problemas, o Brasil é uma fonte extraordinária.

Grande parte do problema da fome pode ser equacionada pela sociedade; grande parte do atraso educacional pode ser vencida por esforços extraoficiais, grande parte da adaptação aos efeitos do aquecimento planetário depende de atitudes individuais.

Outro dia, tive uma ideia meio estranha, dessas que as pessoas não levam muito a sério. Minha proposta era criar um “odiômetro”, que medisse por meio das redes sociais e da mídia profissional o nível cotidiano da expressão do ódio no Brasil.

Essa é uma ferramenta que poderia nos dar uma importante variável sobre as possibilidades de iniciativas sociais. Baixados os índices do rancoroso termômetro, haverá mais chance de propostas que signifiquem algo importante e possam reunir pessoas de diferentes horizontes políticos.

Precisamos recriar no Brasil aquela sensação de que existem objetivos nacionais, temas que interessam a todos, e não é vergonha alguma ou capitulação contribuir com eles, ao lado de quem não pensa exatamente como nós.

Claro que sei o momento em que vivemos, compreendo como a internet contribuiu para a radicalização. Tudo fica difícil se não encontrarmos o mínimo de unidade na base social.

O mundo já era complicado quando surgiu a pandemia. Tanto nos morros do Rio como em Paraisópolis, em São Paulo, as pessoas conseguiram se socorrer. Várias campanhas surgiram entre nós, em especial de apoio aos profissionais de saúde.

De certa maneira, a pandemia nos uniu. Quem sabe, independentemente de governo, o adeus da extrema direita e de sua carga de ódio não consiga o mesmo?

Como disse acima, haverá ainda um desconforto, precisamente na cerimônia do adeus. Será preciso muita energia para superar a ira dos derrotados e sua tentativa de virar a mesa.

Mas o grande pulo do gato será viver no Brasil atento a toda tentativa de volta ao passado, a todo movimento para dividir as pessoas, a toda a degradação da democracia que eles esperam de boca aberta para reconquistar o poder.

Não se trata mais de distribuir a culpa pela ascensão de Bolsonaro. Mas de analisar friamente em que ponto uma conjunção de fatores negativos abre as portas do caos. Enfim, de aprender alguma coisa com esses anos de destruição ambiental, mortes e violência cotidiana.

 

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