O Globo
Bolsonarismo deixará um legado amargo. Mas
pelo menos haverá de novo a possibilidade de sonhar
Não sei se por otimismo, mas o discurso de
Bolsonaro aos embaixadores não me deixou apenas triste. Vi uma luz no fim do
túnel ao perceber que ele age como se já estivesse derrotado.
Se ele próprio já admite, indiretamente,
sua derrota, é sinal de que novos tempos nos esperam. Não sou ingênuo. Teremos
de passar pelo desconforto de desarmar sua tentativa de golpe, sua cópia
desbotada de invasão ao Capitólio.
Meu otimismo com a saída de Bolsonaro não
se prende tanto à instalação de outro governo e outro Congresso. Ele se baseia
mais na energia social que pode ser liberada quando sua passagem se consumar.
O bolsonarismo exaure nossas forças com
suas fake news, falsas polêmicas, supostos desejos majoritários, questionamento
de mecanismos que funcionam bem, como nosso sistema eleitoral.
Ele deixará um legado amargo não só na economia, mas na forma de milhões de armas espalhadas pelo Brasil. Mas pelo menos haverá de novo a possibilidade de sonhar.
Outro dia, vi um documentário sobre a vida
de Shimon Peres e toda a sua obra na História de Israel. Era considerado um
sonhador, mas, olhando bem, em quase todos os seus feitos havia a presença
social, alguns heróis anônimos que se doavam pelo país.
Não pretendo comparar situações
heterogêneas. Cada país tem sua História, sua gênese, nível educacional,
pressão diante de fatores externos.
Mas a superação de um governo de extrema
direita libera energia e, com todos os seus problemas, o Brasil é uma fonte
extraordinária.
Grande parte do problema da fome pode ser
equacionada pela sociedade; grande parte do atraso educacional pode ser vencida
por esforços extraoficiais, grande parte da adaptação aos efeitos do
aquecimento planetário depende de atitudes individuais.
Outro dia, tive uma ideia meio estranha,
dessas que as pessoas não levam muito a sério. Minha proposta era criar um
“odiômetro”, que medisse por meio das redes sociais e da mídia profissional o
nível cotidiano da expressão do ódio no Brasil.
Essa é uma ferramenta que poderia nos dar
uma importante variável sobre as possibilidades de iniciativas sociais.
Baixados os índices do rancoroso termômetro, haverá mais chance de propostas
que signifiquem algo importante e possam reunir pessoas de diferentes
horizontes políticos.
Precisamos recriar no Brasil aquela
sensação de que existem objetivos nacionais, temas que interessam a todos, e
não é vergonha alguma ou capitulação contribuir com eles, ao lado de quem não
pensa exatamente como nós.
Claro que sei o momento em que vivemos,
compreendo como a internet contribuiu para a radicalização. Tudo fica difícil
se não encontrarmos o mínimo de unidade na base social.
O mundo já era complicado quando surgiu a
pandemia. Tanto nos morros do Rio como em Paraisópolis, em São Paulo, as
pessoas conseguiram se socorrer. Várias campanhas surgiram entre nós, em
especial de apoio aos profissionais de saúde.
De certa maneira, a pandemia nos uniu. Quem
sabe, independentemente de governo, o adeus da extrema direita e de sua carga
de ódio não consiga o mesmo?
Como disse acima, haverá ainda um
desconforto, precisamente na cerimônia do adeus. Será preciso muita energia
para superar a ira dos derrotados e sua tentativa de virar a mesa.
Mas o grande pulo do gato será viver no
Brasil atento a toda tentativa de volta ao passado, a todo movimento para
dividir as pessoas, a toda a degradação da democracia que eles esperam de boca
aberta para reconquistar o poder.
Não se trata mais de distribuir a culpa
pela ascensão de Bolsonaro. Mas de analisar friamente em que ponto uma
conjunção de fatores negativos abre as portas do caos. Enfim, de aprender
alguma coisa com esses anos de destruição ambiental, mortes e violência
cotidiana.
Não vejo a hora que tudo isso passa.
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