Folha de S. Paulo
Esse arranjo fundamental está sob risco no
Brasil hoje
Humanos somos um bando de carolas que
transformam tudo em religião. A democracia não é exceção.
Não é incomum ver as pessoas associando
democracia a desenvolvimento econômico e até à realização das mais elevadas
potencialidades humanas. Ela seria o maná político institucionalizado. É claro
que, se definirmos tautologicamente democracia como regimes que promovem o bem,
fica fácil ligar todas essas coisas. Mas a questão é mais complexa.
Basta ver que existem sistemas ditatoriais, como o chinês, que estão entregando desenvolvimento econômico e até científico sem nadinha de democracia. De modo análogo, Daniela Campello e Cesar Zucco mostraram, em "The Volatility Curse" (a maldição da volatilidade), que os ciclos políticos na América Latina têm muito mais a ver com os preços das commodities do que com escolhas conscientes dos eleitores. Ao contrário, a economia praticamente impede uma avaliação objetiva do desempenho dos governantes.
O ponto central é que, mesmo que dispamos a
democracia do blá-blá-blá semirreligioso que a cerca e a separemos de outras
instituições que costumam acompanhá-la (mas não necessariamente o fazem), como
as liberdades individuais e o respeito a contratos, ficando apenas com o uso de
eleições para escolher dirigentes, ela ainda é valiosa. Nessa concepção
minimalista, defendida, entre outros, por Adam Przeworski, a democracia serve
para prevenir a violência política. É que, de um modo geral, vale mais a pena
para o grupo derrotado nas urnas passar um tempo na oposição e esperar uma nova
chance de assumir o poder do que tentar impor-se pela força. Perdas momentâneas
são preferíveis à possibilidade de eliminação definitiva.
É esse arranjo fundamental que está sob
risco no Brasil hoje.
Lula erra feio quando elogia o militante
que agrediu um bolsonarista, mas Bolsonaro faz muito pior quando sugere que
poderá não
entregar o poder em caso de derrota.
Estamos no mato sem cachorro.
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