terça-feira, 5 de julho de 2022

Joel Pinheiro da Fonseca: A nova imprensa de Gutenberg

Folha de S. Paulo

Os tempos mudaram, e a autoridade automática que vinha do controle da informação não vai mais voltar

Participei, no domingo, de um debate sobre o tema da liberdade de expressão, tema do livro recém-lançado de Gustavo Maultasch, "Contra Toda Censura" (Faro Editorial, 2022).

Entre algumas divergências, os quatro participantes bateram num ponto comum: as redes sociais deram a todos o poder de comunicação que antes era de poucos. Foi uma inovação democratizante, ao contrário da invenção de cinema, rádio e TV no século 20, que aumentaram a capacidade de difusão das informações ao mesmo tempo em que a concentrou em alguns polos emissores.

Mas há um paralelo muito instrutivo com uma inovação tecnológica anterior: a invenção da imprensa mecânica por Gutenberg em meados do século 15, que também difundiu o que antes era acessível a poucos: a impressão de livros e panfletos em larga escala. Antes dela, fazer uma cópia de um livro era caro e demorado. Poucas instituições tinham acesso a copistas (monges ou seculares) em larga escala: basicamente a Igreja Católica e os maiores Estados nacionais. Eles eram "o sistema".

Inicialmente, a igreja viu a inovação com bons olhos. Um dos itens mais demandados aos primeiros impressores eram as indulgências, cujo mercado só crescia. Logo, contudo, as autoridades eclesiásticas se deram conta de que tinham perdido o poder sobre a informação. E daí o sentimento mudou. "Heresias" começaram a pipocar por todos os cantos, e não é à toa que a mais bem-sucedida foi justamente aquela que soube colocar o livro -objeto antes caro e agora popularizado- em seu centro: o protestantismo.

O resultado foram séculos de guerras sangrentas até que a Europa conseguisse aceitar a liberdade religiosa. Seria um erro pintar um lado como o mocinho e outro como o bandido, mas uma lição é clara: a reação da Igreja Católica foi, de maneira geral, muito ruim. Em reação ao novo, ela se fechou, se centralizou e se tornou mais repressiva.

Houve diversas traduções da Bíblia feitas para línguas vernáculas antes da Reforma com relativa liberdade. Depois dela, a igreja passou a restringi-las e mesmo a combatê-las. Fortaleceu-se, no meio católico, a doutrina curiosa de que a leitura direta da Bíblia é danosa para a alma do fiel, a não ser que guiada de perto pela autoridade.

Foi depois da imprensa mecânica que a igreja criou o Index Librorum Prohibitorum, o índice de livros proibidos, um monumento à ignorância. A inquisição se tornou mais violenta e totalitária e a atitude da instituição passou a ser -é claro, com exceções- reativa e desconfiada de tudo que vinha de fora, olhando sempre para o passado e buscando manter os fiéis como um rebanho passivo. Em alguns séculos, o diferencial de alfabetização entre países protestantes e católicos era enorme. A atitude da igreja só mudou de verdade em meados do século 20.

Vivemos numa situação similar. Um sistema perde poder. Estados, universidades, escolas e institutos de pesquisa científica; empresas de jornalismo profissional e seus canais de divulgação. Inicialmente, viram a internet com otimismo ingênuo. Agora se voltam contra ela como a uma terrível ameaça.

A imprensa mecânica, em seu tempo, além da nova divisão religiosa, permitiu a revolução científica, assim como o florescimento da superstição, da magia e da caça às bruxas. Quem só olhou para os abusos e excessos perdeu de vista o enorme progresso cultural e intelectual. Os tempos mudaram, e a autoridade automática que vinha do controle da informação não vai mais voltar. Não adianta tentar travar o progresso.

2 comentários:

  1. Anônimo5/7/22 09:47

    Universidades, escolas e institutos de pesquisa científica não se voltam contra a internet, até porque também a usam intensamente! Porém, é natural que tenham uma postura crítica, diante dos problemas que ela também traz, já que nem tudo são flores na internet... O colunista é favorável a que estas instituições ignorem os problemas trazidos pela internet?
    Apesar desta discordância, parabenizo o colunista pela excelente análise!

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  2. Os vídeos criminosos e fak news precisam ser criminalizados sim.

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