sexta-feira, 1 de julho de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

PEC aprovada no Senado é afronta à democracia

O Globo

O Senado aprovou ontem, num congraçamento raro entre governo e oposição, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que desfere um ataque frontal à democracia brasileira. Na superfície, essa PEC da Bondade permite apenas instituir um estado de emergência temporário, até o fim do ano, para ampliar o valor do Auxílio Brasil a R$ 600, beneficiar caminhoneiros, taxistas e consumidores de gás. Seriam medidas eleitoreiras, condenáveis em razão do impacto fiscal no Orçamento, mas até defensáveis diante da alta dos combustíveis e da atual calamidade social — obviamente a situação exige medidas do Congresso. Mas a PEC faz isso do jeito errado e traz consequências inaceitáveis.

Com um olhar mais atento, logo se percebe que o novo instrumento acaba com o equilíbrio na disputa eleitoral e fere, segundo juristas, princípios fundamentais da Constituição. É por isso que, se confirmada a aprovação na Câmara na semana que vem, ele precisará ser revisado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). As mudanças equivalem a anotar um gol de mão para o time da casa na final do campeonato.

Quanto à decretação do estado de emergência, ainda que ele valha apenas para 2022, terá aberto o precedente para que futuros presidentes busquem aprovar PECs semelhantes. Bastará uma justificativa qualquer para um estado de emergência — e estará liberada a criação ou aumento de benefícios, turbinando aqueles que buscam a reeleição ou candidatos vinculados à situação. Foi justamente para nivelar a disputa eleitoral e evitar abusos dessa ordem que a lei proibiu esse tipo de ação.

Como o placar quase unânime da votação de ontem deixou claríssimo, as balizas do bom senso não serão impostas pela oposição. Receosos de ser penalizados nas urnas por barrar medidas de cunho social, senadores contrários a Bolsonaro seguiram o voto dos governistas. Entre o respeito à democracia e o oportunismo, ficaram com a segunda opção. Entre eles, há até defensores do teto de gastos, atropelado pela PEC da Bondade.

Na escala dos estragos proporcionados pelo estado de emergência em ano eleitoral, o ataque à democracia é certamente o mais grave. Não quer dizer que sejam desprezíveis os efeitos deletérios nas contas públicas. Pelo cálculo do senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), relator da PEC, o impacto fiscal do que foi aprovado passa de R$ 41 bilhões. Há números divergentes. Economistas avaliam que só o reajuste do Auxílio Brasil, se mantido, consumirá metade do ganho fiscal da Reforma da Previdência em dez anos. E estará desbravado o caminho. Doravante, a cada ano de eleição com aprovação de medidas semelhantes, os brasileiros poderão esperar cifras maiores.

Entre os eleitores preocupados com a saúde da democracia, muitos são sensíveis à ideia de o governo ajudar a população que passa por emergência, mesmo em anos eleitorais. Mas não é disso que se trata. O governo federal dispõe de um arsenal de programas que poderiam ter sido ampliados. Não é a lei eleitoral que o impede de aliviar a penúria dos brasileiros. O fato de Bolsonaro ter escolhido como beneficiados caminhoneiros ou taxistas mostra que o motivo para a emergência não é ajudar os mais pobres. A PEC da Bondade é pedagógica. É uma tentativa de resolver o estado de emergência da campanha de Bolsonaro. Não passa da legalização do gol de mão.

Denúncias contra Pedro Guimarães merecem condenação firme do governo

O Globo

São estarrecedoras, repugnantes e graves as acusações de assédio e importunação sexual feitas por funcionárias da Caixa contra o então presidente do banco, Pedro Guimarães, aliado de primeira hora do presidente Jair Bolsonaro. “Pedrão”, como era tratado na intimidade do Planalto, pediu exoneração anteontem, a contragosto, depois de as denúncias terem vindo a público. Não poderia permanecer no cargo, mesmo num governo leniente com tantos escândalos.

Chama a atenção a forma como o governo tratou comportamentos inaceitáveis, possivelmente criminosos, do então presidente da Caixa. A situação exigiria posicionamento firme do Planalto, mas tudo o que se viu foi a atuação de uma força-tarefa para abafar potenciais danos na campanha de Bolsonaro à reeleição. Foi com essa preocupação que próceres do Centrão exigiram a cabeça de Guimarães. Bolsonaro hesitou por quase 24 horas. Mesmo assim, foi incapaz de demitir o amigo — ele foi exonerado “a pedido”. Em carta, disse que saía para não “prejudicar a instituição e o governo sendo um alvo para o rancor político em ano eleitoral”.

É certo que o episódio causa estragos junto a um público que resiste a Bolsonaro. Diferentes pesquisas mostram que a rejeição do presidente entre as mulheres passa de 60%, ante menos de 50% entre os homens. No eleitorado feminino, a vantagem de Lula sobre Bolsonaro passa de 20 pontos percentuais, quando no eleitorado como um todo não tem chegado a 15.

O histórico de Bolsonaro não ajuda. Nesta semana a Justiça de São Paulo condenou-o a pagar indenização de R$ 35 mil à jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo, por um insulto absurdo de cunho sexual, proferido em 2020, depois que reportagens dela revelaram um esquema de disparo de mensagens em massa contra o PT nas eleições de 2018. Quando era parlamentar, Bolsonaro ofendeu a deputada Maria do Rosário (PT-RS), afirmando que ela “não merecia ser estuprada”.

No mundo todo, o assédio e a violência contra as mulheres têm ganhado maior relevo nos últimos anos. Movimentos como #MeToo ou “Não é Não” se espalharam pelas redes sociais e incentivaram denúncias de abusos. Muitos poderosos foram desmascarados e tiveram de responder na Justiça por seus atos. A própria legislação brasileira se tornou mais rigorosa nesses casos.

As acusações de assédio sexual contra Guimarães deveriam ter sido tratadas pelo governo como o absurdo que realmente são, e não como um estorvo eleitoral para um candidato em desvantagem nas pesquisas. É sintomático que o presidente e seu governo não tenham condenado a atitude do ex-presidente da Caixa. O que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, tão preocupado em condenar o aborto legal, tem a dizer sobre o caso?

Bolsonaro pode até achar que pôs uma pedra em cima do assunto com o afastamento de Guimarães. Engano. A saída do executivo é medida óbvia. Ele precisa ser investigado por seus atos, como manda a lei. O caso não é apenas um obstáculo às pretensões eleitorais de Bolsonaro. Está só começando.

Funil paulista

Folha de S. Paulo

Datafolha mostra dianteira de Haddad, o que reforça tendência de saída de França

Pesquisa Datafolha divulgada nesta quinta (30) parece contribuir para o desenlace do principal imbróglio do cenário eleitoral paulista.

Trata-se da disputa entre o ex-prefeito paulistano Fernando Haddad e o ex-governador Márcio França, cujos partidos, PT e PSB, caminham juntos na corrida presidencial, com a chapa Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin.

De acordo com o levantamento, numa simulação em que os dois concorrem ao Bandeirantes, o petista aparece na liderança com 28% das intenções de voto, seguido do candidato do PSB, com 16%. Tarcísio de Freitas (Republicanos) teria 12% e Rodrigo Garcia (PSDB), o atual governador, 10%.

É bem duvidosa, contudo, a permanência de França na contenda. O noticiário político tem indicado que o ex-vice de Alckmin está propenso a ceder aos apelos do PT e abrir mão da candidatura.

É provável que se lance ao Senado, caminho que teria se tornado, em tese, menos nebuloso com a enésima desistência do apresentador José Luiz Datena (PSC) de participar de uma eleição.

No cenário da pesquisa sem França, Haddad mantém-se à frente, com 34%, enquanto Freitas e Garcia empatam em 13%, o que sugere uma divisão dos votos do PSB entre o petista e o governador.

No quesito rejeição, o petista, diga-se, também lidera, com 35%, seguido de França, com 20%, e dos postulantes do Republicanos e do PSDB, ambos com 16%.

Há muitos votos a serem conquistados, ademais. Sem França, nada menos que 20% declaram a intenção de não escolher nenhum candidato, enquanto 9% se dizem indecisos —num sinal de que o pleito ainda não desperta tanta atenção.

Embora divergências regionais tradicionalmente criem embaraços para composições nacionais, trata-se, no caso de Haddad e França, de uma situação especialmente espinhosa. A costura de uma inesperada chapa unindo Lula e Alckmin teve forte impacto no contexto de São Paulo, colégio estratégico para quem aspira ao governo federal.

Era natural que surgissem obstáculos para concretizar um acordo entre políticos que poderiam estar em campos antagônicos. Especulou-se, em meio às desavenças, que a manutenção dos dois postulantes poderia até ser favorável para Haddad, por supostamente aplacar uma reação antipetista.

Não há, entretanto, como escapar às evidências de que Lula tem mantido vantagem nas pesquisas nacionais e de que Haddad não dá sinais de perda de terreno na corrida eleitoral paulista, embora deva enfrentar um segundo turno difícil.

Fora da Caixa

Folha de S. Paulo

Acusações de assédio exigem apuração; tolerância à prática, felizmente, diminuiu

A permanência de Pedro Guimarães no comando da Caixa Econômica Federal tornou-se insustentável, e o executivo pediu demissão na quarta-feira (29), um dia depois de virem a público acusações de assédio sexual praticado por ele.

Reveladas pelo portal Metrópoles, tratam de toques íntimos não autorizados, abordagens inadequadas e convites inapropriados —relatos que o agora ex-dirigente da CEF classifica como falsos.

Uma funcionária ouvida pela Folha afirmou que, ao tentar sair da sala, o então presidente do banco a puxou pelo pescoço e disse: "Estou com muita vontade de você".

Segundo servidoras, os episódios ocorriam dentro e fora da instituição, na frente de outras pessoas ou de forma reservada. Comenta-se que ao componente sexual se somaria o assédio moral.

O caso, de acordo com o Metrópoles, está sob inquérito sigiloso no Ministério Público Federal, e o Ministério Público do Trabalho deu dez dias para a Caixa e Guimarães se manifestarem.

Incluir o próprio banco nas apurações faz sentido porque, segundo pessoas ouvidas pelo jornal O Globo, as denúncias vão além do ex-presidente da instituição e teriam sido recebidas internamente com um esforço para abafá-las.

É possível que essa intenção prevalecesse se não fosse a atuação da imprensa, pois poucas coisas são tão típicas do governo Jair Bolsonaro (PL) quanto as tentativas de bloquear os órgãos de controle.

Dar livre fluxo às investigações, contudo, é sempre o melhor remédio. Se as notícias estiverem equivocadas, como Guimarães alega, sua inocência restará provada ao final do exame minucioso e imparcial dos fatos. Se estiverem corretas, ele será julgado nos termos da lei.

Seja qual for o veredito, o episódio serviu para mostrar o quanto a sociedade amadureceu no repúdio ao assédio sexual, uma conduta intolerável em qualquer ambiente.

Décadas atrás, era comum que vítimas de assédio fossem transformadas em agentes de seu próprio infortúnio e silenciadas numa cultura machista.

Se o Brasil ainda está longe de ser um país no qual as mulheres possam se sentir protegidas desse tipo de comportamento, há sinais de avanço quando a justa manifestação pública força uma reação institucional —para a qual contribuiu, ressalve-se, o temor de um desgaste perto das eleições.

Há de chegar o dia, porém, em que o assédio sexual será exceção, não regra, e em que a reação institucional se dará não por simples medo das urnas, mas pelo reconhecimento do que é justo e ético.

A conivência de Bolsonaro

O Estado de S. Paulo

Acumulam-se escândalos no primeiro escalão do governo. Em nenhum deles, Bolsonaro defendeu o cumprimento da lei, facilitou a transparência ou colaborou com a Justiça

Os casos de suspeitas de crimes envolvendo o primeiro escalão do governo de Jair Bolsonaro apresentam uma grande – e preocupante – similaridade. Em todos, não foram os órgãos de controle da administração federal que trouxeram o problema à tona. Em todos, o presidente da República, sempre tão radical no discurso contra o crime, amenizou, em detrimento da defesa da lei, a conduta dos amigos. Em todos, descobriu-se que o governo sabia previamente da existência de indícios, mas optou por não agir. E sempre, entre os envolvidos nos diversos escândalos, havia gente muito próxima ao presidente da República.

O caso mais recente é escandaloso. Acusado por diversas funcionárias da Caixa Econômica Federal de todo tipo de assédio sexual, Pedro Guimarães era uma das pessoas mais vistas ao lado do presidente da República. Participou de várias lives de Bolsonaro. Acompanhou o presidente em diversas viagens. Era parte do núcleo íntimo presidencial. As suspeitas precisam ser investigadas, mas desde já dois fatos são significativos: (i) ninguém que acompanha o dia a dia do poder em Brasília ficou surpreso com as denúncias; e (ii) a Caixa já tinha conhecimento de suspeitas de crime. Conforme o próprio banco informou, o canal interno de denúncias da Caixa havia recebido relatos de assédio por parte de Pedro Guimarães.

No entanto, apesar de tudo isso, o caso tornou-se inaceitável para o governo Bolsonaro apenas quando foi revelado pela imprensa. Até então, era um não problema, com Pedro Guimarães desfrutando de toda a confiança de Bolsonaro, sendo inclusive um dos cotados para ser o vice na chapa de Bolsonaro à reeleição. Diante disso, e do silêncio de Bolsonaro, incapaz de condenar toda forma de assédio sexual e de afastar o amigão Pedro Guimarães, é lícito supor que o indigitado não teria perdido o emprego se não estivéssemos em ano eleitoral.

Esse caso, que por si só já é altamente constrangedor, não é o único em que Jair Bolsonaro adotou uma atitude de conivência com as suspeitas de crime. No ano passado, o presidente da República teve seu então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, investigado por corrupção, advocacia administrativa, prevaricação e facilitação de contrabando, em razão de suspeitas de facilitação de exportação ilegal de madeira para os Estados Unidos e a Europa. Em nenhum momento, Bolsonaro defendeu o cumprimento da lei ambiental brasileira. Limitou-se apenas, quando a permanência de Ricardo Salles se tornou politicamente inviável, a aceitar o pedido de demissão.

Durante a CPI da Pandemia, várias suspeitas de mau uso de dinheiro público no Ministério da Saúde vieram à tona. Em vez de se colocar em defesa da lei, Bolsonaro sempre se pôs ao lado dos amigos. No caso relativo às negociações para a compra da vacina Covaxin, tal foi a passividade do presidente que um inquérito foi aberto para investigar possível crime de prevaricação. Depois, a investigação foi encerrada, mas não porque se concluiu que Bolsonaro atuou na defesa da lei, e sim porque a Procuradoria-Geral da República, sempre tão camarada com Bolsonaro, entendeu que o presidente da República não tinha o dever de agir naquela situação.

No caso do Ministério da Educação, o comportamento foi o mesmo. Diante das graves suspeitas reveladas pela imprensa, em vez de assegurar condições para uma investigação isenta, Bolsonaro disse que colocava “a cara no fogo” pelo então ministro da Educação. Depois, quando a operação da Polícia Federal foi deflagrada, alegou que tinha exagerado na defesa do pastor. Mas ainda teve o descaramento de dizer que tráfico de influência, crime previsto no Código Penal pelo qual Milton Ribeiro é investigado, era algo comum, sem maior importância.

Em todos os casos, Bolsonaro teve a mesma reação. Em nenhum deles defendeu o cumprimento da lei, facilitou a transparência ou colaborou com a Justiça. Sua resposta foi sempre negar os indícios, desqualificar o trabalho de quem não se subordina a seus interesses e desviar o tema com outras pautas. Vale lembrar que, até hoje, o presidente da República não esclareceu os 21 cheques de Fabrício Queiroz na conta de sua mulher.

Não se combate a corrupção, ou qualquer outro crime, dessa forma. Agir assim é preparar o terreno para novos escândalos.

Otan de volta à guerra fria

O Estado de S. Paulo

Ainda que tardiamente, os países da Otan, ao que parece, abandonaram as ilusões e estão adotando estratégias para dissuadir nova agressões russas e enfrentar ameaças da China

Quando a Otan publicou seu último “Conceito Estratégico”, em 2010, a Europa estava em paz e falava-se em “parceria estratégica” com a Rússia. A bonança adquiriu tons de complacência. O então presidente dos EUA, Barack Obama, chegou a caçoar de preocupações dos republicanos com a Rússia: “Alô, os anos 80 estão chamando, querem sua política externa de volta”. Há pouco, o sucessor de Obama, Donald Trump, chamou a aliança militar ocidental de “obsoleta”, e o presidente francês, Emmanuel Macron, disse que ela padecia de “morte cerebral”.

Uma das consequências foi a estratégia “fio de ativação” (tripwire) após a Rússia invadir a Ucrânia em 2014 – pequenos batalhões posicionados no Leste para ativar respostas, mas sem a participação das grandes potências. Pouco antes da Cúpula da Otan, encerrada ontem, a primeira-ministra da Estônia advertiu que, com os atuais planos, as repúblicas bálticas seriam “riscadas do mapa”. O resultado da Cúpula foi o reconhecimento de que, de fato, estes planos eram insuficientes. Agora, a Otan retomou a doutrina da guerra fria.

Muitos historiadores veem a 1.ª e a 2.ª Guerras como duas cenas de um mesmo conflito separadas por uma paz frágil. Ao que parece, a 1.ª guerra fria estava separada da 2.ª por 30 anos de globalização. O retorno se traduziu em quatro anúncios: forças em estado de alerta sete vezes maiores; a primeira base permanente dos EUA no flanco Leste; o convite à Finlândia e Suécia; e um novo “Conceito Estratégico” em que a Rússia figura como “a ameaça mais significativa e direta”.

A prioridade é mostrar ao presidente russo, Vladimir Putin, que o artigo 5.º da Aliança, segundo o qual a agressão a um membro agride todos, é crível. Isso exigirá que os 30 membros cumpram o compromisso de investir 2% do seu PIB em defesa. Hoje, só 9 cumprem a meta, e 19 têm apenas “planos claros” de atingi-la em 2024 – mas a procrastinação, que até agora era a regra, precisará se tornar exceção.

Outras lições da velha guerra fria terão de ser reaprendidas. Mas a nova também traz novos desafios. A Otan adverte para a opacidade das intenções da China; suas “operações híbridas e cibernéticas maliciosas e sua retórica e desinformação confrontacionais”; o controle de setores-chave da indústria, tecnologia, infraestrutura e fornecimento; o uso da economia para criar dependências; a expansão sem transparência de arsenais nucleares; e, finalmente, “a parceria cada vez mais profunda” com a Rússia.

Diferentemente da antiga guerra fria, uma repetição da estratégia de separação entre a Rússia e a China é implausível. As ameaças na Europa e na Ásia estão cada vez mais conectadas. A participação de países do Pacífico, como Japão, Coreia do Sul ou Austrália (todos convidados para a Cúpula), em estratégias de dissuasão da Rússia é tão importante quanto a participação dos ocidentais na dissuasão da China.

As batalhas na Ucrânia são o palco desse drama global. Ironicamente, a reação defensiva da Otan pós-invasão se parece exatamente com a ação ofensiva que Putin acusava e usou como pretexto. Previsivelmente, a Cúpula servirá como um novo pretexto para que ele se vitimize – e prepare novas ameaças.

Putin buscará conquistar o máximo de territórios na Ucrânia para declarar vitória e conclamar o Ocidente a aceitar seus termos em troca de alívio para a fome, a escassez de energia e as ameaças nucleares. Mas apaziguar tiranos é má estratégia. Quanto mais sucesso ele tiver, mais beligerante se tornará. A Ucrânia enfrentará uma agressão permanente e novas agressões serão efetivadas com as mesmas armas, incluindo crimes de guerra e ameaças nucleares. A melhor maneira de evitar outras guerras é vencer esta, com a manutenção das sanções e mais armas para que a Ucrânia possa negociar uma paz condizente com a sua soberania.

Analogamente, a melhor maneira de evitar uma 3.ª guerra mundial é abandonar as ilusões e admitir que – ao menos enquanto Putin estiver no poder e não se viabilizar uma arquitetura de segurança construtiva com a China – o mundo vive uma 2.ª guerra fria.

Terrorismo eleitoral

O Estado de S. Paulo

Talvez pressentindo a derrota e para assustar eleitores, bolsonaristas anunciam o apocalipse caso percam eleição

Na entrevista que o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) concedeu ao Estadão, transpareceu o sentimento de derrota que, a esta altura, parece predominar no Palácio do Planalto.

À falta de ideias ou planos coerentes, por absoluta incapacidade, para aplacar as aflições de uma população exausta e faminta e lhe transmitir alguma esperança por dias melhores, ao presidente da República e sua prole não resta outra coisa senão apelar para o terrorismo eleitoral. Pelo que se pode depreender não apenas das falas do senador Flávio durante a entrevista, mas também das manifestações públicas de seu próprio pai, o Brasil será o inferno na Terra caso os eleitores tenham a ousadia de não reconduzir o “mito” ao cargo em outubro.

O senador, que coordena a campanha de Bolsonaro à reeleição, disse ao jornal que o presidente “não terá como controlar” seus apoiadores caso estes resolvam se insurgir com violência contra uma eventual derrota do incumbente nas urnas. “Como a gente tem controle sobre isso?”, questionou o senador, em referência à possibilidade de um levante golpista no Brasil como houve nos Estados Unidos durante a invasão do Capitólio. 

É evidente que o presidente tem como desestimular o golpismo de seus apoiadores: basta que abandone o discurso subversivo, que há anos Bolsonaro cultiva com zelo. O risco de haver confusão cairá drasticamente quando o presidente deixar de propagar mentiras sobre as urnas eletrônicas, parar de atacar a Justiça Eleitoral e condenar planos de sublevação. Ou seja, ao contrário do que sugere seu filho Flávio, o movimento golpista dos bolsonaristas não tem nada de espontâneo – originou-se no Palácio do Planalto e de lá é orquestrado, como uma forma de manter o País refém do receio de tumulto nas eleições.

A tônica do discurso de campanha do presidente não são seus planos para tirar o País do atoleiro no qual, em boa medida, ele mesmo nos colocou. São suas desabridas desqualificações do sistema de votação eletrônica, seus ataques contra a honra e a imparcialidade dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e as ameaças de insurgência contra uma eventual derrota, um resultado bastante provável tendo em vista a alta rejeição dos eleitores ao incumbente.

Nem o presidente nem seus aliados mais próximos, como denota a entrevista do senador Flávio Bolsonaro, substituirão o discurso terrorista por uma mensagem de esperança aos brasileiros. Bolsonaro é o que é e se fez na política semeando ódio ao que lhe parece diferente, estimulando conflitos e desafiando as instituições democráticas. Não é improvável que, de fato, parta para a ação e faça tudo o que tem ameaçado fazer caso entre para a história como presidente de um mandato só.

O País, contudo, dispõe de todos os instrumentos legais para cassar candidaturas que violem a lei eleitoral e, principalmente, para punir severamente todo e qualquer cidadão que atentar contra o Estado Democrático de Direito consagrado desde o preâmbulo da Constituição. Cabe à Polícia Federal, ao Ministério Público Federal e, por fim, ao Poder Judiciário ter coragem de fazer valer todo esse arcabouço jurídico.

Reuniões da Otan e dos BCs consolidam cisão geopolítica

Valor Econômico

A cisão geopolítica se consolida e dissemina aumento de custos e choques de oferta

A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que reúne as maiores potências militares ocidentais, decidiu ontem rever sua estratégia decenal e se preparar para enfrentar o que considera o maior perigo à segurança dos países que a compõem - a Rússia e, por tabela, a China. A Rússia tem o maior arsenal atômico do planeta e Pequim ascende na escalada armamentista aos primeiros lugares. No mesmo dia, em Sintra, em um fórum dos Bancos Centrais, as duas mais importantes autoridades monetárias do planeta, Jerome Powell (Fed) e Christine Lagarde (BCE), disseram que a época da inflação e dos juros baixos terminou. As duas reuniões reforçaram os sinais de uma nova ordem econômica e geopolítica.

Os pontos em comuns entre os dois eventos vão além das sugestões dos presidentes dos BCs de que parte relevante da trajetória da inflação é hoje determinada mais no campo de batalha em solo ucraniano do que nas planilhas dos técnicos que indicam os parâmetros de qual deveria ser a política monetária adequada. Ambas indicam uma cisão determinante, menos relevante em relação à Rússia e mais em relação à China, país que se tornou a segunda maior economia do mundo com base nas regras da globalização - e que estão sendo reescritas radicalmente.

A política oportunista e nacionalista do presidente Donald Trump, que elevou a China ao status de inimiga número um dos Estados Unidos - sem reparos da Rússia, hoje aliada de Pequim, e então do populista americano - revelou-se premonitória. Com a volta dos democratas à Casa Branca, a política agressiva de Trump em relação à China não mudou e até ganhou amplitude. O comunicado da Otan poderia ser tido como um resumo da política americana. Faz um apelo retórico ao diálogo com Pequim, mas adverte: “As ambições declaradas e as políticas coercitivas da China desafiam nossos interesses, valores e segurança”.

Se para a Otan a Rússia, o país mais forte da ex-URSS, é um velho inimigo, parte de um filme antigo com um enredo mais dinâmico e igualmente perigoso, a China é a novidade enigmática, uma potência ascendente em todos os sentidos. A aliança militar segue como sempre os desígnios dos interesses americanos, que, sob Joe Biden, tentam restaurar uma posição global hegemônica em um mundo que se tornou, ao que parece irreversivelmente, multipolar.

O resultado deste embate, que apenas começou e cujos desdobramentos são imprevisíveis, é, em alguns aspectos, uma volta ao passado. Os orçamentos militares crescerão mais uma vez nos países mais ricos da aliança ocidental e continuarão elevados nos Estados Unidos. As forças de deslocamento rápido da Otan deverão saltar de 40 mil para 300 mil homens, um efetivo respeitável e, também, um desperdício de dinheiro e capital humano inimaginável no século XXI.

As precauções de segurança na estratégia da Otan, porém, ratificam em outra dimensão a divisão já delineada entre as duas maiores economias do mundo. A pandemia mostrou que a dependência da China de todos os países em relação aos fármacos e equipamentos médico-hospitalares chegou a um ponto insustentável. Como coração industrial global, o papel chinês na produção de insumos básicos para a produção industrial no resto do mundo tornou-se, em vez de uma benfazeja máquina de cortar custos, um handicap logístico-político enorme.

A divisão que se consolida traz dificuldades enormes, entre outras, para a política monetária. Às voltas com o ressurgimento da inflação depois de três décadas, os bancos centrais reconhecem que o cisma das cadeias de produção globais criam novos problemas e velhos conhecidos, como aumento de custos e nacionalismo retrógrado. O fato de ser os EUA, o país que mais pregou o liberalismo e abertura de mercados, que tenha aberto e mantido uma escalada protecionista global, só agrava o problema.

Em Sintra, os presidentes dos BCs reconheceram que estão em uma encruzilhada perigosa. Não há qualquer segurança de que os preços dos alimentos e combustíveis entrarão em escala descendente ou de que as cadeias de produção, em grande parte centradas na China, voltem a operar como antes. Ou de que uma alta moderada dos juros possa repor algo parecido com a normalidade. A cisão geopolítica se consolida e dissemina aumento de custos e choques de oferta para os quais a política monetária é sabidamente menos eficiente em combater.

 

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