domingo, 24 de julho de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

Caixa de problemas

Folha de S. Paulo

Novos depoimentos e investigações reiteram sofríveis práticas de gestão no banco estatal

Banco estatal que se notabilizou por servir de aparelho político a sucessivos governos, a Caixa Econômica Federal tem sido marcada por uma série de despautérios que reiteram suas sofríveis práticas de gestão e sugerem um ambiente empresarial turvo e propício a irregularidades.

Desde junho, quando se conheceram as acusações de abuso sexual contra o então presidente da instituição, Pedro Guimarães, multiplicam-se os depoimentos sobre condutas inaceitáveis do dirigente, relatos de ameaças internas e indícios de desvios envolvendo despesas custeadas pelo banco.

Como esta Folha noticiou, Guimarães, além dos assédios, beneficiou-se de recursos da Caixa para reformar sua residência e fez turismo de luxo com aluguel de carros blindados e hospedagem em resorts durante viagens de trabalho.

Em outra frente, o Ministério Público do Trabalho investiga os motivos pelos quais diversos funcionários em topo da carreira foram lotados em agências bancárias e estão sendo subaproveitados.

Só em Brasília, a empresa admite que ocorreram 123 transferências num intervalo de 90 dias entre o final de 2020 e o começo de 2021. Reservadamente, funcionários dizem que são alvo de retaliação por terem ocupado funções de destaque em governos petistas ou por divergências com a diretoria.

Alguns deles, com salários na faixa de R$ 45 mil, foram designados para organizar filas de clientes. A tarefa, aliás, deixa a nu uma característica perversa do banco, que é o tratamento vergonhoso e ineficiente dispensado a seus correntistas e aos que necessitam de serviços ligados ao FGTS, PIS, habitação ou benefícios do governo federal.

Uma demonstração das humilhações impostas a clientes de baixa renda foi vista na distribuição tumultuada do auxílio emergencial na pandemia, sob monopólio da Caixa, em sinal de uso político.

De positivo, diante dos percalços, mencione-se o anúncio de que a corregedoria do banco deixará de ser subordinada à sua presidência e passará a ser ligada ao conselho de administração —que reúne, entre outros membros, um representante dos empregados. A mudança procura contornar as hesitações de funcionários em buscar o órgão por receio de represálias.

Toda medida adotada com vistas a modernizar a Caixa merece, obviamente, ser saudada. A questão é saber até que ponto é possível transformar uma estatal vinculada ao Ministério da Economia, que é usada por governantes como cabide de emprego para apaniguados políticos e tem servido de abrigo para esquemas de corrupção.

Não é aceitável que a sociedade continue a manter uma instituição pública com esse perfil.

Apreensão global

Folha de S. Paulo

Com risco de recessão nos EUA e na Europa, Brasil terá de lidar com quadro de descontrole fiscal

Com a escalada da inflação e dos juros nos Estados Unidos e na Europa, num contexto de tensões geopolíticas em ascensão, crescem os riscos de uma recessão global. Em paralelo, há dúvidas sobre a atividade na China, que passa por um momento de desaceleração e crise no mercado imobiliário.

A combinação de fatores negativos nos três principais motores do mundo torna o cenário especialmente incerto. No tema inflacionário, as pressões se comparam às da década de 1970, ocasionadas por duas crises de oferta de petróleo.

No caso americano, que dá o tom para o mercado financeiro mundial, a inflação acumulada nos doze meses encerrados em junho chegou a 9,1%, resultado dos choques da pandemia e dos inéditos estímulos fiscais e monetários, que impulsionaram a demanda além da capacidade de produção.

Com o desemprego próximo das mínimas históricas nas duas regiões e altas dos salários acima da produtividade, tem-se pela primeira vez em décadas o risco de uma espiral inflacionária de difícil controle. Daí a resposta rápida, ainda que tardia, dos bancos centrais. Combater a inflação o quanto antes é crucial para evitar uma recessão mais profunda adiante.

Mas o processo não é indolor. Desde que o Fed iniciou o ciclo de aperto na política monetária, a expectativa para os juros disparou, de pouco mais de 1% para 3,5% no final de 2022, com forte queda dos mercados de títulos públicos, crédito privado e ações —uma perda de capital de US$ 20 trilhões.

No caso da China, as restrições de combate à pandemia levaram a um crescimento de apenas 0,4% no segundo trimestre e parece inalcançável a meta do governo de expandir o PIB em 5,5% neste ano.

Acumulam-se sinais de desaceleração do consumo e da atividade global. A despeito da guerra, os preços das commodities já começam a cair. As cotações de metais industriais e alimentos já recuaram para o patamar do início do ano e até o petróleo caiu sensivelmente, sinal de menor demanda global.

A combinação de temores recessivos e queda nos preços das commodities afugenta capital de países emergentes, inclusive o Brasil.

Neste quadro, o dano na credibilidade da política econômica ocasionado pela intervenção eleitoreira de Jair Bolsonaro poderia ter sido evitado. Os preços de combustíveis cairiam de qualquer forma, mas o país agora terá que lidar com o legado do descontrole fiscal.

Desemprego requer um presidente que trabalhe

O Estado de S. Paulo

Jair Bolsonaro diz que não é sua tarefa criar empregos. Mas cabe ao presidente liderar projeto que rompa o ciclo de baixo crescimento, gerando oportunidades

Em uma conversa com apoiadores no Palácio da Alvorada, o presidente Jair Bolsonaro tentou se livrar de mais uma das várias responsabilidades inerentes ao cargo que ocupa. Em um país que apresenta um crescimento pífio há anos e um nível de qualidade na educação que deixa a desejar, Bolsonaro disse que cabe aos jovens “correr atrás” de emprego. “Você tem que correr atrás. Eu não crio emprego. Quem cria emprego é a iniciativa privada. Eu não atrapalho o empreendedor”, disse. A declaração do presidente, longe de causar surpresa, segue a linha bolsonarista segundo a qual a culpa por qualquer problema nunca é dele, sempre dos outros – seja das administrações petistas, dos governadores ou do Supremo Tribunal Federal (STF). O que chama a atenção nesse caso em específico é a concepção deformada do presidente sobre o papel de um governante na construção do futuro do País.

Poucas coisas revelam mais sobre a profundidade da crise de um país sobre a falta de perspectivas do que o comportamento dos mais jovens diante do mercado de trabalho. A taxa de desemprego das pessoas com idade entre 18 a 24 anos atingiu 22,8% no primeiro trimestre deste ano, o dobro da média da população, de 11,1% no mesmo período, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No segundo trimestre de 2021, 12,3 milhões de brasileiros de até 29 anos não estudavam nem trabalhavam, de acordo com estudo da consultoria IDados com base na Pnad Contínua do IBGE. Buscar um diagnóstico sobre as razões por trás desse fenômeno crônico e atacar suas dimensões de forma articulada com Estados, municípios e o setor privado seria uma tarefa urgente para qualquer presidente.

Historicamente, a indústria sempre foi o setor que mais gerou vagas e que pagou os salários mais altos. Nos últimos anos, no entanto, o País oscilou entre a fracassada escolha de campeões nacionais do lulopetismo e a ausência completa de uma política industrial da administração bolsonarista. Essa ciclotimia, naturalmente, gerou reflexos no mercado de trabalho. Desde 2011 a indústria acumula o fechamento de 1 milhão de empregos, segundo a Pesquisa Industrial Anual (PIA) – Empresa 2020, divulgada pelo IBGE. Mais da metade das vagas fechadas se deu nos setores que mais empregavam, como vestuário, calçados e produtos de metal. Em contrapartida, setores dinâmicos e que sobrevivem sem ajuda do governo, como o de tecnologia da informação, não conseguem encontrar mão de obra especializada. A digitalização da economia em todos os segmentos da sociedade só aumentou desde a pandemia de covid-19 e atinge até atividades mais simples ligadas à agricultura e serviços. Diante da ausência do Estado, muitas empresas têm tomado para si a tarefa de formar e treinar seus próprios empregados. Nada disso exime o governo de oferecer aos jovens uma educação de qualidade desde o ensino básico.

Romper o ciclo de baixo crescimento da economia demandará uma política que interrompa o processo de desindustrialização do País e que, em paralelo, priorize a educação e qualificação dos mais jovens para que os empregos de qualidade a serem gerados possam ser devidamente ocupados. O empreendedorismo mencionado por Bolsonaro não salvará a juventude nem o desempenho do PIB, sobretudo um conceito distorcido sustentado à base de incentivos fiscais, caso da figura do microempreendedor individual (MEI). 

Várias são as responsabilidades de um governante, e elas são ainda mais desafiadoras em um país tão desigual e com carências históricas como o Brasil. Chegar à Presidência da República talvez seja a maior honra para quem escolhe seguir o caminho da vida pública. A recusa de Bolsonaro em assumir a responsabilidade de governar levanta dúvidas sobre os reais motivos que o levam a fazer tudo por sua reeleição. Não é por acaso que os piores índices de aprovação de sua administração estejam justamente entre mulheres, jovens de baixa renda e menor grau de escolaridade. São elas, também, as maiores vítimas do desemprego e da falta de perspectivas. 

Democracia se ensina na escola

O Estado de S. Paulo

Em contraponto ao avanço do populismo e de lideranças autoritárias no Brasil e no mundo, é preciso que as redes de ensino, mais que nunca, promovam os valores da cidadania

A função da escola vai muito além do ensino de língua portuguesa, matemática e demais áreas do saber. Em tempos de tentações autoritárias e de crescente populismo, formar as novas gerações para o exercício da cidadania passou a ser um renovado desafio nas sociedades democráticas. No Brasil e no mundo, educadores têm se debruçado sobre o tema, no esforço de compreender − e de desconstruir − discursos irresponsáveis contra o Estado Democrático de Direito, além, é claro, de reagir a essa verdadeira marcha da insensatez. 

Em sua coluna do último domingo no Estadão, a jornalista Renata Cafardo tratou da recente contribuição de um grupo de professores de universidades europeias. Após analisarem os currículos de 14 países, eles não apenas constataram a necessidade do ensino de cidadania nas escolas, como sugeriram a criação de uma disciplina específica, com carga horária própria, a exemplo dos demais componentes curriculares. O objetivo seria abordar temas como o próprio conceito de democracia, o processo político e a participação da sociedade civil na definição dos rumos de cada país.

Os referidos professores integram o projeto Demos − sigla, em inglês, para Democratic Efficacy and the Varieties of Populism in Europe (Eficácia democrática e as variedades do populismo na Europa, em tradução livre). Vale notar que a pesquisa analisou currículos de países como Finlândia, Estônia, França e Bélgica, que têm alto desempenho no exame internacional da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Pisa, que avalia a aprendizagem de ciências, matemática e da respectiva língua dos estudantes.

Valorizar a cidadania é uma necessidade imperiosa nos dias de hoje, seja em países em desenvolvimento, como o Brasil, seja no chamado mundo desenvolvido. “O resultado dessa educação cívica são jovens com mais interesse por política, menos propensos a ideias populistas e com fortes valores de equidade, tolerância e autonomia”, escreveu Renata Cafardo a respeito das conclusões a que chegaram os professores do projeto Demos.

Infelizmente, noções elementares de organização das sociedades, bem como o pressuposto de que são os governantes que devem se submeter à lei e não o contrário, vêm sendo questionadas por líderes populistas e autoritários em diferentes regiões do planeta. É nesse contexto que ganha força a proposta de que as escolas promovam a cidadania − entendida aqui como os direitos e os deveres dos indivíduos perante o Estado, incluindo o direito de participação política, o que pressupõe a liberdade de expressão e a observância de regras, por todos, para a disputa do poder.

Em outra pesquisa, os professores ligados ao projeto Demos analisaram os sistemas de ensino de 18 países, destacando a importância do ambiente escolar para o fortalecimento de valores democráticos. Nesse sentido, é imperioso que prevaleçam atitudes de acolhimento e cooperação em contraponto a práticas de bullying e discriminação. Ou seja, a escola precisa ser um local onde o aluno não apenas se sinta seguro, mas acolhido em suas diferenças e especificidades. Isso requer o enfrentamento de todo tipo de preconceito, em razão da origem geográfica, da orientação sexual, da religião, da cor da pele ou de outras características físicas. 

Falar de cidadania nas escolas está longe de ser novidade. A atual Constituição já definiu, em seu Artigo 205, que a educação visa “ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Antes dela, gerações de brasileiros tiveram aulas de moral e cívica. Nesta terceira década do século 21, o que se pretende é que as redes de ensino não apenas consigam transformar o texto constitucional em realidade, mas que façam isso em sintonia com o rol de competências que se espera ver nas atuais e futuras gerações de estudantes: autonomia, pensamento crítico e habilidades socioemocionais, juntamente com os conhecimentos tradicionais de que a formação escolar não pode abrir mão. Sim, a tarefa é gigantesca. Mais que nunca, porém, o futuro da democracia passa pela sala de aula. 

Cadáveres em série no Rio

O Estado de S. Paulo

Nova operação policial que deixa vários mortos em favela sugere um inaceitável padrão de violência do Estado

Terminou com pelo menos 19 mortos a mais recente operação policial em favelas do Rio de Janeiro, na última quinta-feira. Desta vez, os tiros e o cenário de guerra tiveram lugar no Complexo do Alemão, na zona norte da cidade. Em maio, outra ação policial já havia resultado em 25 mortes, na Vila Cruzeiro, também na zona norte. Um ano antes, em maio de 2021, a mais letal das incursões policiais de que se tem notícia no Rio tirou a vida de outras 28 pessoas no Jacarezinho, igualmente na zona norte.

As chocantes cenas de violência se repetem: disparos de fuzil para todo lado, moradores (incluindo crianças) apavorados dentro de casa e, ao final, corpos e mais corpos sendo carregados morro abaixo. Em comum, divulgada pela polícia, a informação de que a respectiva operação buscava combater criminosos que estavam em vias de praticar novos delitos.

Ninguém ignora que facções do crime organizado espalham-se pelas grandes cidades do País, em especial pelo Rio de Janeiro, nem que dispõem de armamento pesado, entrincheirando-se em áreas densamente povoadas com o claro intuito de dificultar a atuação das forças policiais. Basta dizer que, na última quinta-feira, no Complexo do Alemão, a polícia informou ter apreendido uma metralhadora .50, arma de guerra capaz de derrubar helicópteros. 

Ora, uma vez que as autoridades, policiais ou não, estão cientes disso, cabe perguntar: por que as polícias do Rio repetem, a ponto de tornar quase corriqueiro, um modo de atuação que acaba por transformar “suspeitos” em cadáveres e, não raro, tira a vida também de policiais e de moradores inocentes? Não há como ignorar a frequência com que as ações policiais têm resultado em um elevado número de mortes em diferentes favelas do Rio. Então, é preciso que se diga: não é papel das polícias subir o morro e sair matando “suspeitos”. Ainda mais em áreas urbanas onde vivem milhares de pessoas sem relação com os crimes investigados.

Infelizmente, porém, parece haver uma cultura que considera aceitável esse modus operandi − e que ecoa o bordão de que “bandido bom é bandido morto”. Nada mais equivocado. Tal afirmação, tão ou mais criminosa do que os crimes que diz querer combater, aponta como solução algo que não apenas não resolve o problema da falta de segurança, como o agrava. Ninguém se iluda: fora da lei, não há solução para o problema da criminalidade. E o papel das polícias, por óbvio, não é matar bandidos em operações açodadas, e sim garantir que a lei seja cumprida. Nesse sentido, a Polícia Militar (PM) do Rio de Janeiro daria um passo à frente se incorporasse o uso de câmeras na farda dos policiais, a exemplo da PM de São Paulo.

As posições defendidas aqui não implicam, de maneira alguma, um milímetro de complacência com criminosos de qualquer espécie nem defesa da impunidade para quem age fora da lei. Pelo contrário. As forças de segurança, no Rio e no País inteiro, têm que atuar com o máximo rigor no combate ao crime, reunindo informações e valendo-se da inteligência policial para dar maior efetividade à sua missão de proteger a sociedade. Com operações que desarticulem quadrilhas e prendam os criminosos. Dentro da lei.

Lei de Cotas nas universidades tem de ser renovada

O Globo

Sociedade brasileira se convenceu de que ela é uma arma essencial no combate ao racismo e à desigualdade

Em agosto, dez anos depois de aprovada, expira a lei que estabeleceu cotas para ingresso nas universidades e institutos federais, reservando 50% das vagas a alunos de escolas públicas (metade delas aos de famílias com renda de até 1,5 salário mínimo per capita). Ela instaurou ainda outro filtro: pretos, pardos, indígenas e deficientes passaram a ter, entre esses cotistas, uma fatia proporcional à participação na população. Antes de 2012, já havia políticas de ação afirmativa em diversos formatos. Ao disseminar a prática no país, a Lei de Cotas foi um marco. Agora, será missão do Congresso avaliar seus resultados — e já tramita um projeto que posterga a expiração da lei.

O primeiro dever dos congressistas é verificar se ela cumpriu seu objetivo principal: ampliar o acesso de grupos sub-representados ao ensino superior. A discussão será naturalmente contaminada por paixões. As cotas foram um dos motivos por que a sociedade brasileira se tornou mais sensível à questão identitária. Na década anterior à lei, houve debate intenso, sobretudo em relação às cotas baseadas em critérios raciais. Havia dúvidas sobre sua eficácia como mecanismo de inclusão e sobre a reação que despertariam, ao tornar mais saliente a chaga do racismo e, indiretamente, retroalimentá-la.

Em que pesem as ressalvas, o debate de 20 anos atrás está superado. O racismo precisa ser combatido sempre, com vigor e energia. E a sociedade brasileira se convenceu da relevância das cotas como arma nessa luta. Diferentes pesquisas mostram que metade dos brasileiros apoia as cotas raciais nas universidades. Ainda que haja opositores, a maioria fez sua escolha por meio de instituições legítimas. Cotas raciais foram aprovadas no Congresso e referendadas em votação unânime no Supremo Tribunal Federal (STF). Tornaram-se primordiais para trazer às melhores universidades quem não é da elite e para enfrentar a desigualdade com a arma mais eficaz: acesso à educação.

São fartas as evidências de que elas atingiram a meta principal. Os egressos de escolas públicas nas instituições contempladas foram de 55% em 2012 a 63% quatro anos depois. Pretos, pardos e indígenas, de 27% a 38%. A diversidade maior entre o 1,1 milhão de graduandos nas universidades públicas é visível a quem anda por qualquer campus. “Os programas de ação afirmativa transformaram as universidades e tiveram impacto profundo na vida de muitos cotistas”, afirma a economista Fernanda Estevan, da Fundação Getulio Vargas.

Os cursos mais impactados foram os mais concorridos. Alunos de escolas públicas começaram a sonhar alto e a prestar vestibular para carreiras de prestígio. Uma pesquisa da Unicamp revelou aumento de 10% na escolha por medicina e por outros quatro cursos concorridos. Isso contribuiu para a mobilidade social, como demonstra estudo com alunos do Direito da Uerj. Entre os cotistas, 80% completaram o ensino superior, 70% passaram no exame da OAB e 30% foram trabalhar como advogados. Nas federais, houve impacto positivo também nos cursos em que oriundos de escolas públicas já eram mais da metade. O percentual cresceu, mostrando que havia demanda reprimida. Pesquisas também demonstraram o efeito específico das cotas raciais. “Sua adoção foi quase cinco vezes mais eficaz para o aumento nas matrículas de estudantes pretos, pardos e indígenas oriundos de escolas públicas que num cenário sem elas”, diz a economista Ursula Mello, da Barcelona School of Economics.

Em duas áreas, os congressistas deveriam promover melhorias: acesso e retenção. Na primeira, será importante examinar a eficácia da regra que reserva vagas aos com renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo. Esse valor põe o aluno na metade superior da pirâmide social (numa família de quatro, a renda pode chegar a R$ 7.272). Se o objetivo é abrir portas aos pobres, o crivo precisa ser mais rígido. Nas federais, a lei aumentou em apenas 2,4 pontos percentuais as matrículas de alunos com renda familiar de até um salário mínimo. Outra questão relevante está ligada às cotas raciais. A lei determina que os percentuais destinados a pretos, pardos e indígenas sejam definidos pela proporção de cada grupo no Censo. Como ele só ocorre de dez em dez anos, deveriam ser levados em conta levantamentos mais frequentes.

O maior desafio dos congressistas é melhorar a retenção. Parte considerável dos cotistas não termina o curso. Uma análise da USP revela desistência de 25% entre pretos, pardos e indígenas (entre não cotistas brancos, 17,6%). É possível que a realidade seja pior. Alunos ricos, quando saem da faculdade, costumam trocar de curso. Cotistas são obrigados a abandonar o sonho da graduação. “Atacar o problema da evasão requer pensar nas causas da desistência”, diz o economista Michael França, do Insper. Se a questão é financeira, é preciso ter um amplo programa de bolsas de estudos. Se o problema é acompanhar as disciplinas devido a deficiências no ensino médio público, o recomendável são programas de reforço. Medir de forma sistemática o desempenho acadêmico dos cotistas é chave para evitar o abandono.

Como as razões que levaram à criação da Lei de Cotas persistem no Brasil, ela deveria ser prorrogada, com tais melhorias, para ser reavaliada mais adiante. Na discussão sobre a nova lei, os parlamentares deveriam manter o foco nas questões objetivas e evitar a contaminação ideológica do tema. O país conta com pesquisadores sérios, dispostos a examinar cada ponto sem paixão. São esses que o Congresso deve ouvir para que o Brasil avance ainda mais no combate ao racismo e à desigualdade.

 

 

 

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