domingo, 31 de julho de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

Democracia sempre

Folha de S. Paulo

Sociedade reage e expressa adesão incondicional aos valores democráticos e repúdio ao golpismo

Os manifestos em articulação na cidadania e entre associações da iniciativa privada contra as ameaças golpistas do presidente da República reforçam e renovam, na sua origem, os compromissos fundadores do pacto democrático nacional.

A carta organizada por ex-alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, endossada a esta altura por centenas de milhares de subscritores, aciona o vínculo primordial do regime das liberdades, inscrito na Carta de 1988.

"Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição." As eleições periódicas, porque cruciais para essa transferência condicionada de poder, não podem ser objeto de alteração na lei fundamental.

O texto menciona a trajetória de respeito aos resultados eleitorais e de transições ordeiras que já avança pela quarta década. Enfatiza o ganho de confiabilidade representado pela votação eletrônica, sobre a qual jamais foi comprovada fraude em mais de 25 anos de emprego.

Ao reduzir drasticamente os votos inválidos, a urna digital cumpriu na prática a promessa da Nova República de incluir no exercício rotineiro da soberania popular os brasileiros menos instruídos.

confiança no sistema de votação, segundo pesquisa do Datafolha concluída nesta quinta (28), abrange 79% dos eleitores, sendo francamente majoritária (69%) entre os eleitores do presidente Jair Bolsonaro (PL), que vilipendia as urnas e a Justiça diariamente.

Se por meio do livre escrutínio o regime democrático garante a expressão das maiorias, por meio das leis ele reprime os seus inimigos. Nessa linha a manifestação de ex-alunos da USP adverte: "São intoleráveis as ameaças aos demais Poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional".

Trata-se de trazer à lembrança os princípios civilizatórios da responsabilização e da isonomia. Quem investir contra o rochedo da democracia receberá como resposta as sanções prescritas na lei a despeito da posição que circunstancialmente ocupe na República.

Se Bolsonaro pretende patrocinar arruaças inspiradas na que culminou na invasão do Congresso dos Estados Unidos em janeiro de 2021, que preste atenção às consequências daquela insurreição para os delinquentes que a conduziram.

Mais de 840 foram presos e mais de 180 foram condenados pela Justiça. O mesmo poderá acontecer com o ex-presidente Donald Trump, se comprovada sua responsabilidade na sublevação. Nada menos se espera no Brasil para uma agressão equivalente contra as instituições.

Até a conivência de certos grupos da elite política encontra limites. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a quem Bolsonaro entregou a execução da fatia livre do Orçamento em troca de licença para barbarizar, relutou, mas acabou constrangido a declarar sua confiança no sistema eleitoral.

Que negócios não se dão a qualquer preço —e que a democracia é um valor inegociável— é também a mensagem que várias organizações empresariais e da sociedade civil estão prestes a publicar. O manifesto contará com os endossos da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo e da Federação Brasileira de Bancos, entre outras.

Disputas de visões sobre a economia encontram plena vazão no sistema constitucional vigente. Reformas normativas e mudanças de rumos administrativos, para um lado e para o outro, têm sido executadas dentro da liturgia e respeitadas ao longo das últimas décadas.

Subverter as regras do jogo democrático, além de configurar um retrocesso civil e humanitário, arruinaria o ambiente de negócios, com repercussão em menos emprego e renda para todos.

Cartas e manifestos, frise-se, fazem apenas vocalizar as convicções arraigadas da opinião pública nacional diante da audácia de um presidente que voltou a balbuciar um léxico golpista sem tradução na atual República brasileira.

Essa incrustação dos valores democráticos talvez leve a maioria, como também aponta o Datafolha, a descrer de que Bolsonaro vá tentar se manter no poder pela força.

Golpe de Estado, para o cidadão mediano do Brasil do século 21, é o inominável que jaz nas profundezas de um passado longínquo e violento. Para que continue soterrado, às vezes é preciso nomeá-lo com a estridência dos trovões. Ruptura democrática nunca mais!

A armadilha do falso conservadorismo

O Estado de S. Paulo

No Brasil não há um partido verdadeiramente conservador, mas há cidadãos conservadores genuínos. E estes devem ter coragem de denunciar impostores que falam em seu nome

Na Biblioteca Presidencial Ronald Reagan, presidente americano de inquestionáveis credenciais conservadoras, a deputada Liz Cheney fez em junho passado uma apaixonada defesa de seu partido, o Republicano, e dos valores conservadores que a agremiação historicamente representa – em especial o respeito às leis e à Constituição. 

“Sou uma republicana conservadora. Acredito profundamente no governo limitado, nos baixos impostos, na defesa nacional. Acredito na família como centro de nossa comunidade e de nossas vidas. Acredito que essas sejam as políticas certas para nossa nação”, discursou Liz Cheney, para, em seguida, referindo-se ao ex-presidente Donald Trump, fazer um grave alerta: “Neste momento, estamos enfrentando uma ameaça interna como jamais tivemos em nossa história. Essa ameaça é um ex-presidente que está tentando destruir os fundamentos de nossa República Constitucional”.

Essa ameaça, enfatizou Liz Cheney, só é possível porque há republicanos que apoiam Trump mesmo diante de seu evidente ataque à democracia americana. “Nenhum partido, nenhuma nação consegue defender uma República Constitucional se aceitar um líder que decidiu deflagrar uma guerra contra o império da lei, contra o processo democrático e contra a transição pacífica de poder”, discursou a deputada republicana.

Em resumo, nessas poucas palavras, Liz Cheney, que integra a comissão parlamentar que está desnudando a tentativa de golpe de Trump depois das eleições em 2020, fez um apaixonado chamamento a seus correligionários conservadores para que caiam em si e deixem de sustentar o discurso anticonservador e reacionário do ex-presidente.

É um chamamento que se deve fazer aqui no Brasil também. 

O presidente Jair Bolsonaro, que faz praça de sua truculência antidemocrática e de seu amor à ditadura militar, chegou ao poder dizendo-se “conservador”, e não poucos genuínos conservadores aceitaram essa impostura em nome da necessidade de impedir que o PT, com seus gritos de guerra contra a propriedade, o capital e o livre mercado, retomasse a Presidência. 

Todavia, se houve quem comprasse de boa-fé a falácia de Bolsonaro em 2018, agora, ao final de seu mandato, já não há mais qualquer dúvida de que o presidente não é liberal nem, muito menos, conservador. Bolsonaro é apenas um oportunista reacionário com evidente inclinação para o autoritarismo.

A fim de evitar que os verdadeiros conservadores caiam novamente na armadilha que o agora incumbente tenta rearmar, é preciso relembrar quais são, de fato, as ideias e os valores que o conservadorismo encerra e por que alguém como Jair Bolsonaro é a sua perfeita negação.

Ser conservador é rejeitar as transformações radicais do Estado e da sociedade, preservando as tradições construídas pela sociedade ao longo do tempo e repelindo as rupturas. Em outras palavras: ser conservador é curvar-se ao império das leis e ao Estado Democrático de Direito, é defender a estabilidade e a independência de instituições democráticas, é rejeitar governantes que incentivam a cizânia e a violência. Ora, isso é tudo o que Jair Bolsonaro, definitivamente, não representa. A desordem que ele instila vai na direção contrária do conservadorismo. Bolsonaro personifica o caos.

Por isso, é preciso que os conservadores brasileiros rejeitem o bolsonarismo como representante de seus valores. É preciso resgatar o verdadeiro conservadorismo, desvinculando-o urgentemente de Bolsonaro, líder desse simulacro mambembe de conservadorismo que, como toda farsa, faz o oposto do que apregoa – em vez de respeito pelas instituições democráticas, golpismo; em vez de reverência às leis e à Constituição, valorização de delinquentes; em vez de ordem, confusão.

Nos Estados Unidos, a deputada Liz Cheney teve coragem de liderar a luta para resgatar o Partido Republicano das garras de Trump. Aqui não temos um partido conservador nos moldes do Republicano, mas certamente há um conservadorismo a ser defendido da razia bolsonarista. Se os conservadores de verdade não querem ser confundidos com Bolsonaro e seu conservadorismo de fancaria, é hora de se manifestarem.

Bolsonaro é considerado tóxico até por aliados

O Estado de S. Paulo

Quando o partido do ministro da Casa Civil entra na Justiça para impedir que seus candidatos sejam identificados com Bolsonaro, tem-se a exata noção do tamanho da rejeição a ele

É notório o esforço do presidente Jair Bolsonaro em difundir desconfiança contra as urnas eletrônicas e as pesquisas de opinião. O objetivo é transmitir a mensagem de que teria um grande apoio popular, muito maior do que o registrado nas urnas e aquele medido pelos institutos de pesquisa. Afinal, a fantasia bolsonarista inclui alçar Jair Bolsonaro à categoria de líder de uma maioria silenciosa, que estaria incondicionalmente a seu lado.

A farsa só convence quem quiser ser convencido por ela. Jair Bolsonaro teve 57,8 milhões de votos no segundo turno das eleições de 2018, mas seu desgoverno foi capaz de produzir uma altíssima taxa de rejeição, além de ser o presidente da República candidato à reeleição mais mal avaliado desde a redemocratização. Segundo a última enquete realizada pelo Datafolha, 53% dos brasileiros afirmam que não votam em Jair Bolsonaro de jeito nenhum. Vê-se logo por que o bolsonarismo tem verdadeira ojeriza a pesquisas de opinião – afinal, estas retratam uma realidade que esse movimento fanático teima em negar.

Bolsonaristas podem continuar acreditando que seu líder é querido e admirado pela maioria do povo. Mas a farsa recebeu agora um novo capítulo, especialmente vexaminoso, a escancarar a desconexão do discurso do bolsonarismo com a realidade. Segundo informou o Estadão, os principais aliados políticos de Jair Bolsonaro, cientes do caráter tóxico da presença do presidente em suas campanhas, querem escondê-lo de sua comunicação com o eleitor.

Eis a realidade da rejeição do bolsonarismo por parte da população. Até o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), e o ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira (Progressistas-PI), vêm escondendo o presidente Jair Bolsonaro das campanhas próprias e de seus aliados no Nordeste.

Na convenção do PL que definiu Jair Bolsonaro como candidato à reeleição, Arthur Lira vestiu a camisa “Bolsonaro 22”. No entanto, isso era só para satisfazer a patota bolsonarista. Na hora de se comunicar com o eleitorado em Alagoas, o presidente da Câmara – justamente uma das pessoas que mais se beneficiam do orçamento secreto e das relações com o Palácio do Planalto – quer mostrar independência. Em vez de “Bolsonaro 22”, os marqueteiros de Arthur Lira almejam outra mensagem: a do tocador de obras independente e padrinho direto dos recursos para o Estado. Para piorar, Arthur Lira apoia para o governo de Alagoas o senador licenciado Rodrigo Cunha (União Brasil), que é contrário a Jair Bolsonaro.

Houve também o inusitado pedido do diretório estadual do Progressistas no Piauí, controlado por Ciro Nogueira, para que o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) proibisse a circulação de imagens de seus candidatos ao lado do presidente. Na ação, o partido do ministro-chefe da Casa Civil – a quem Jair Bolsonaro deu nada mais nada menos do que as chaves do Orçamento Federal – afirma que o presidente da República “possui altíssimo índice de rejeição em pesquisas mais recentes” e que o material que circula no WhatsApp de seus candidatos ao lado de Bolsonaro é fake news. Segundo o Progressistas, diante da alta impopularidade do presidente, eles serão prejudicados se aparecerem vinculados a Jair Bolsonaro.

O TRE do Piauí negou o pedido do Progressistas. “Está claramente nos limites da liberdade de expressão e comunicação”, disse a sentença, prolatada em junho deste ano. Certamente, é muito importante que o eleitor saiba, na hora de definir o seu voto, quem tem dado apoio e sustentação a Jair Bolsonaro.

As eleições são território de falsas promessas e de crescente desinformação. Mas elas também revelam muitas coisas. O processo eleitoral tem uma nota de realismo. Políticos sabem quem tem potencial de voto e quem horroriza o eleitor. Ao longo desses três anos e meio – sua primeira função na esfera do Executivo –, Jair Bolsonaro construiu e consolidou sua reputação de governante despreparado, irresponsável, conflituoso e que não é afeito ao trabalho. A alta rejeição não é fruto do acaso, mas simples consequência de seus atos.

Riscos da EAD na formação docente

O Estado de S. Paulo

Preocupa a forte ampliação da formação a distância de professores da educação básica

É muito difícil, para não dizer impossível, que o sistema de ensino de um país seja melhor que o conjunto de seus professores. De todos os fatores associados à aprendizagem dos estudantes, o corpo docente desponta como o principal. Daí ser grave e merecer especial atenção o alerta, divulgado recentemente pelo movimento Todos pela Educação, de que 6 em cada 10 professores formados no Brasil, em 2020, frequentaram cursos de pedagogia ou licenciaturas na modalidade de educação a distância, a chamada EAD. 

Não se trata aqui de condenar, a priori, a EAD − modalidade adotada internacionalmente e que, cumpridos certos requisitos de qualidade, é capaz de oferecer formação satisfatória em diversas áreas. O que está em jogo, na verdade, é uma questão mais ampla e estratégica: em que medida interessa, do ponto de vista do desenvolvimento do País, que a maior parte de seus professores de educação básica seja formada em cursos a distância?

Para responder a essa pergunta, convém levar em conta os argumentos elencados pelo Todos pela Educação na nota técnica que acompanha o referido balanço. De qualquer forma, a resposta é um rotundo não: nas atuais condições de funcionamento do ensino superior brasileiro e considerando os níveis insuficientes de aprendizagem dos alunos nas escolas de ensino fundamental e médio, não é adequado que a maioria dos professores seja formada em cursos a distância. Como corretamente disse o líder de Políticas Educacionais do Todos, Gabriel Corrêa, o que era para ser exceção virou regra. E isso é preocupante para as atuais e futuras gerações.

Uma deficiência estrutural da formação docente no Brasil, inclusive nos cursos presenciais, é a insuficiente formação prática. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Educação (CNE) avançou, em 2019, ao aprovar diretrizes que deram maior ênfase à experiência de sala de aula e às atividades práticas nos cursos de licenciatura. 

Infelizmente, no entanto, a realidade brasileira mostra que legislação e normas adequadas não bastam: é preciso garantir seu cumprimento. O que passa pela maior efetividade dos mecanismos de regulação e avaliação do ensino superior por parte do Ministério da Educação (MEC). Ainda mais que o salto de concluintes em cursos a distância foi puxado pelo setor privado, refletindo uma lógica de mercado não necessariamente pautada pela busca da qualidade. Enquanto o número de concluintes em cursos presenciais caiu pela metade nas instituições particulares, entre 2010 e 2020, o total de concluintes na modalidade EAD mais do que dobrou.

O balanço do Todos pela Educação foi feito com base no Censo da Educação Superior e revela que o porcentual de professores formados em EAD − 61,1%, em 2020 − foi mais que o dobro do registrado nos cursos das demais áreas: 24,6%. Ou seja, há uma evidente desproporção, que obviamente destoa de qualquer projeto de melhoria da formação docente e, por conseguinte, da desejada e necessária elevação dos níveis de aprendizagem das atuais e futuras gerações.

Emendas sem pertinência infestam texto constitucional

O Globo

Desde a promulgação da Constituição de 1988, nunca foram aprovadas tantas PECs quanto no atual governo

A Constituição brasileira já era considerada um monstrengo antes do governo Jair Bolsonaro. Seu texto, perto de 80 mil palavras na última versão, faz dela por algumas medidas a maior do mundo (ou a segunda maior, atrás apenas da indiana). Mas, mesmo para os padrões superlativos consagrados no Brasil, em tempos recentes tem sido incomparável, para empregar a feliz expressão de Roberto Campos, a “fúria legiferante” do Congresso para emendar a Carta.

A tentação de gravar tudo na Constituição ganhou impulso inédito no Legislativo sob a liderança do deputado Arthur Lira (PP-AL) e do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Das 125 emendas à Constituição aprovadas desde 1988, nada menos que 26 — ou mais de um quinto — foram promulgadas na atual legislatura (cuja duração corresponde a apenas um décimo da vigência do texto). Onze dessas emendas, ou 9%, foram aprovadas nos últimos seis meses.

Ainda há, de acordo com os respectivos sites, 968 Propostas de Emenda à Constituição (PECs) em tramitação na Câmara e 352 no Senado. Não é exagero afirmar que há PEC para tudo. Várias delas propõem mudanças necessárias, caso da reforma tributária ou da administrativa. Mas a vasta maioria não tem cabimento. Procura apenas introduzir no texto constitucional direitos que satisfazem a demandas específicas.

O motivo para a aberração é conhecido. Grupos de interesse se sentem mais protegidos se conseguem gravar na Carta tais direitos, aproveitando uma circunstância política favorável para garantir benesses e privilégios. Como uma mudança constitucional exige três quintos das duas Casas em duas votações, é mais difícil derrubá-la que leis ordinárias. Daí a pressão para constitucionalizar toda sorte de assunto.

Foi assim que, nos últimos meses, temas sem a menor pertinência num texto constitucional, como o piso salarial de enfermeiros ou os radioisótopos para uso médico, foram parar na Carta, em companhia de presenças ilustres que lá estavam, caso dos portos lacustres, da Polícia Ferroviária Federal e até do Colégio Pedro II.

A diligência dos líderes do Congresso para aprovar PECs de interesse do governo — como a dos Precatórios no ano passado ou a Eleitoral neste ano — acabou por distorcer o trâmite legislativo. Em vez da necessária reflexão que toda PEC deveria exigir, já que implica alterar a lei maior do país, passou a vigorar no Congresso uma espécie de via rápida para aprovar qualquer PEC.

O regimento do Legislativo faz exigências sensatas em nome da reflexão essencial para a aprovação de uma PEC: número mínimo de sessões entre as duas votações em ambas as Casas, necessidade de aprovação prévia nas comissões (entre elas uma Comissão Especial), presença física em plenário para garantir quórum, além de várias outras. Mas tudo isso tem sido ignorado de forma contumaz.

O caminho regimental pelas comissões se tornou ficção. Já houve sessão de um minuto apenas para cumprir tabela. Virou regra a aprovação em duas sessões no mesmo dia, por vezes na Câmara e no Senado — só assim se conseguem aprovar 11 PECs em seis meses. O pouco-caso da atual gestão com as normas contribui para desvalorizar o trabalho do Legislativo e para deteriorar ainda mais a qualidade da Constituição. Não é um acaso que a população tenha uma visão tão negativa do Congresso e da classe política.

Adoção da nova carteira de identidade nacional deveria ser acelerada

O Globo

Mudanças que visam a coibir fraudes são bem-vindas, mas ainda demorarão a chegar aos brasileiros

Já era hora de dar uma nova cara ao obsoleto Registro Geral (RG), documento exigido de dez entre dez brasileiros para que tenham acesso ao labirinto burocrático público e privado em qualquer parte do país. Por isso é bem-vinda a iniciativa do governo federal de lançar uma Carteira de Identidade Nacional, com o objetivo de facilitar a vida dos cidadãos e de dificultar a ação dos fraudadores que se aproveitam da estrutura pesada, lenta e ultrapassada do Estado para aplicar golpes, receber benefícios indevidos, cometer crimes ou permanecer invisíveis à Justiça.

Anunciada em fevereiro, a nova carteira de identidade começou a se tornar realidade na semana passada. O Rio Grande do Sul foi o primeiro estado a fornecer o “RG digital”. Os demais terão até 3 de março de 2023 para fazê-lo. Há diferenças marcantes em relação ao documento atual. Para começar, o número de registro é agora o Cadastro de Pessoa Física (CPF), que permite unificação em todo o país — hoje, em tese, um brasileiro pode ter 27 identidades diferentes, uma em cada unidade da Federação. Caso haja pendências com o CPF, o cidadão terá de regularizá-las. Isso é positivo, pois estimulará a atualização dos cadastros.

Outra mudança importante: a nova identidade terá um QR Code para verificar sua autenticidade e uma zona de leitura mecânica, de acordo com o padrão da Organização da Aviação Civil Internacional (OACI). A intenção é que futuramente seja usada também como documento de viagem, mas por enquanto só valerá nos países do Mercosul. Além disso, exigirá validação biométrica e biográfica antes da emissão. Naturalmente, o novo RG também terá os dados já presentes hoje: filiação, sexo, nacionalidade, local e data de nascimento, órgão expedidor, datas de expedição e validade, número da certidão de nascimento ou casamento, foto, impressão digital e assinatura.

As ideias são boas, mas se trata de um projeto para o futuro, ao passo que as demandas do presente não esperam. Para quem tem até 60 anos, o RG atual continuará válido por dez anos. Para maiores de 60, será aceito por prazo indeterminado, de acordo com o governo. Na prática, o risco é que seja criada uma confusão, com documentos antigos e novos circulando ao mesmo tempo. É compreensível que não se queira obrigar o cidadão que já dispõe de carteira de identidade a trocá-la. Mas isso equivale a mudar para não mudar.

Um dos problemas graves que o país enfrenta no pagamento de pensões e auxílios são os cadastros desatualizados ou inconsistentes, que dão margem a todo tipo de fraude. Gastam-se bilhões com pagamentos que param em mãos indevidas, deixando a descoberto quem realmente precisa de ajuda. A miríade de documentos para identificar os cidadãos no Brasil, muitos dos quais podem ser facilmente falsificados, só agrava a situação. Ter uma carteira digital unificada e nacional, mais segura e com as informações básicas cadastradas nos bancos de dados oficiais, ajudaria a coibir irregularidades. Mas, até que todos os brasileiros passem a usar o novo RG, as fraudes continuarão.

 

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