quinta-feira, 7 de julho de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

Desespero, improviso

Folha de S. Paulo

Bolsonaro tenta compensar em 90 dias o que sua inépcia produziu em 3 anos e meio

O presidente da República corre para tentar compensar em menos de 90 dias o que a sua incompetência produziu em três anos e meio de mandato. A energia com que agora cobra empenho de ministros pela reeleição contrasta com a indolência de suas longas folgas no litoral e o desleixo na escolha de prioridades e quadros para a gestão.

Os berros e os palavrões típicos de suas conversas entre quatro paredes não terão o condão milagroso de transformar a realidade de dezenas de milhões de cidadãos que irão às urnas em outubro preocupados sobretudo com a economia.

Ações, como a de despejar bilhões de reais em cortes de impostos e aumentos de gastos no curtíssimo prazo, poderão melhorar a competitividade do candidato Jair Bolsonaro (PL). Mas, como toda atitude desesperada, essa que leva a maioria do Congresso a alterar a Constituição como quem troca de roupa também implica custos.

Parte da conta será assumida pelos próximos mandatários e paga após as eleições pelo contribuinte e pelos que mais dependem de serviços públicos, pois as prestidigitações populistas são fugazes. Mas uma outra parcela do fardo já pesa nas costas de seus patrocinadores.

O terremoto produzido nas últimas semanas sob as regras elementares da condução fiscal e do regime de preços alimenta uma violenta deterioração dos indicadores financeiros. Disparam a cotação do dólar e a percepção de risco de calote do Brasil. Os juros em todas as modalidades se elevam, e o patrimônio em reais se deprecia.

Decerto há uma variável internacional —o temor de uma reviravolta recessiva na economia global— a impulsionar a degringolada. A Argentina em nova agonia política e inflacionária também ajuda a piorar a reputação regional.

Não seria o momento recomendado, portanto, para o Brasil atirar-se a aventuras de irresponsabilidade fiscal. Tivesse Bolsonaro se portado condignamente ao longo do mandato, reforçando a credibilidade das instituições políticas e econômicas ao invés de erodi-la, as defesas do país contra a ressaca global estariam mais sólidas.

O presidente dificilmente teria atingido seus atuais níveis de impopularidade, inauditos para um postulante à reeleição. A boa governança do Congresso teria evitado os saques oligárquicos ao Orçamento, e o Bolsa Família teria sido desde a eclosão da pandemia ampliado e melhorado para amparar a metade mais pobre da população.

Como Jair Bolsonaro preocupou-se mais com passear de motocicleta, imprecar contra instituições da democracia e patrocinar agendas exóticas ditas conservadoras, deixou de governar para a maioria e tem sido punido por isso. Só lhe restaram desespero e improviso.

Pela divergência

Folha de S. Paulo

Hostilizada pelo bolsonarismo, academia só tem a perder com atos de intolerância

Na noite de 29 de junho, quarta-feira, protestos de um grupo de estudantes de esquerda da Unicamp impediram que se realizasse no auditório da instituição paulista uma palestra sobre cotas e financiamento de universidades públicas.

A exposição caberia a três futuros candidatos do Partido Novo, Fernando Holiday, que pretende disputar vaga na Câmara dos Deputados, e Leo Siqueira e Lucas Pavanato, que deverão concorrer à Assembleia Legislativa.

Conflitos ideológicos no ambiente universitário não são nenhuma novidade. Os movimentos estudantis organizados refletem visões variadas do espectro político, e embates agressivos se dão até entre grupos que disputam preeminência num mesmo campo.

O que chama a atenção neste e em outros casos recentes são as tentativas, tanto à direita quanto à esquerda, de simplesmente silenciar adversários, impedindo-os de expressar suas opiniões.

Situações análogas de intolerância já ocorreram e continuam ocorrendo em universidades de diversos países, caso notório dos EUA, onde esse tipo de intervenção tem um histórico estridente.

Os confrontos se inscrevem num contexto de crescente polarização ideológica fomentado pela ascensão internacional de um ideário conservador não apenas na política institucional mas na chamada guerra cultural, que também envolve temas como racismo, feminismo e ambientalismo.

No Brasil, a vitória de Jair Bolsonaro, em 2018, deu impulso a uma onda de ataques às universidades públicas, tratadas pelo governo como "antros de esquerdistas".

A investida oficial para manietar professores e controlar conteúdos, aliada à aversão bolsonarista à cultura e à agenda liberal de costumes, colaborou —como ocorreu no período de Donald Trump nos EUA— para aguçar as hostilidades e fomentar o radicalismo.

Recorde-se que em anos recentes registraram-se tumultos e protestos em universidades contra a exibição do documentário "O Jardim das Aflições", sobre o ideólogo de direita Olavo de Carvalho (1947-2022). Agora, com a proximidade das eleições, os ânimos tendem a se mostrar mais exaltados.

Tradicionalmente mais propenso a perspectivas de esquerda, o meio estudantil tornou-se palco de disputas em que lamentavelmente se busca interditar a divergência. A intolerância de um lado alimenta naturalmente a do outro.

A incrível CPI que já começa em pizza

O Estado de S. Paulo

Além de desrespeitar o eleitor e descumprir a Constituição,adiara CPI do MEC para depois das eleições condena Senadoà irrelevância. A transparência e a democracia se ressentem

No Brasil, costuma-se dizer que Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) quase sempre “acabam em pizza” – uma expressão popular que traduz o ceticismo sobre a punição dos responsáveis pelos malfeitos investigados. Pois desta vez o Senado se superou: criou uma CPI que já começa em pizza.

Na terça-feira passada, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), anunciou que a CPI para investigar as denúncias de corrupção envolvendo o Ministério da Educação (MEC) só será instalada após as eleições. O anúncio é um deboche. Rodrigo Pacheco reconhece que os requisitos constitucionais para a abertura da investigação foram preenchidos, mas considera que o País só deve ter acesso ao que de fato acontece no governo de Jair Bolsonaro depois das eleições.

São tempos realmente estranhos. O presidente do Senado, que deveria defender as prerrogativas da Casa Legislativa, faz de tudo para tornar irrelevantes os trabalhos investigativos da própria Casa que preside. A importância da CPI do MEC está precisamente em expor ao País o que acontece na administração federal antes das eleições, para que o eleitor possa dispor de mais elementos na hora de decidir o voto.

Pelo que se vê, há no Senado uma grande incompreensão a respeito do funcionamento de um Estado Democrático de Direito. A função investigativa do Poder Legislativo não é uma tarefa burocrática que pode ser adiada sem maiores consequências. O regime democrático demanda transparência sobre os atos públicos. Caso contrário, a escolha do eleitor é feita a partir de informações limitadas e parciais, o que contradiz radicalmente a ideia de democracia.

Assim, transparência e controle são fundamentais para o bom funcionamento do regime democrático. E é precisamente por isso que as Constituições democráticas atribuem ao Poder Legislativo não apenas a tarefa de fazer leis, mas também a de investigar. Trata-se do reconhecimento de que, numa democracia, o trabalho de investigação tem uma dimensão política essencial: desvelar ao público o que está oculto nas entranhas do poder estatal. No entanto, Rodrigo Pacheco quer despir os trabalhos do Senado dessa dimensão democrática, postergando-os para depois das eleições. Deseja que esses trabalhos sejam rigorosamente um zero à esquerda para o eleitor.

A decisão de postergar a CPI do MEC é, portanto, afronta ao próprio Senado, envolvendo não apenas a omissão de suas atribuições constitucionais, mas a deliberada escolha pela irrelevância da Casa Legislativa num assunto de importância decisiva para o País. Não há como ignorar: o País já tomou conhecimento, por meio do trabalho da imprensa, das graves suspeitas envolvendo o mau uso de recursos públicos destinados à educação. O adiamento da CPI não tira o tema de pauta. Apenas apequena a Casa Legislativa.

Além disso, ao não instaurar uma CPI cujos requisitos constitucionais foram preenchidos, Rodrigo Pacheco descumpre o art. 58, § 3.º da Constituição e a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o assunto. No ano passado, o plenário da Corte, ante a recalcitrância de Pacheco, mandou instalar a CPI da Covid. Agora, o presidente do Senado tenta uma manobra. “Os requerimentos serão lidos em plenário por dever constitucional e questões procedimentais serão decididas”, disse Pacheco em sua conta no Twitter, mas alertou que nada além disso será feito. Parece até que a Constituição se ocupa de passos burocráticos, e não da efetiva instauração da investigação.

Tudo isso é sumamente constrangedor. Dispondo de todas as condições para ser autônoma, a Casa Legislativa escolheu ser servil ao Palácio do Planalto, sob a desculpa esfarrapada de que, nas palavras de Pacheco, a investigação da CPI pode ser “contaminada” pela disputa eleitoral. Ora, esse mesmo Senado não viu problema nenhum em aprovar, a menos de cem dias das eleições, a “PEC do Desespero”, uma Proposta de Emenda Constitucional escandalosamente inconstitucional e eleitoreira desenhada para permitir que o presidente Bolsonaro compre votos para tentar reverter sua situação difícil nas pesquisas. O Senado, definitivamente, já teve dias melhores.

Mercado cobra caro pela irresponsabilidade

O Estado de S. Paulo

Bondades eleitoreiras criam insegurança, aumentam os custos financeiros do setor público, fazem o dólar disparar, comprometem a economia e pioram as condições de vida

Devastado pela baderna fiscal promovida pelo presidente Jair Bolsonaro e por seus aliados, o Tesouro Nacional ainda tem de pagar ao mercado o custo da insegurança causada pela gastança eleitoreira e por aberrações como o orçamento secreto. Financiar as contas públicas ficou tão caro quanto no fim do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff, quando sinais de enorme desarranjo financeiro já eram visíveis. Para vender papéis de 40 anos atrelados ao IPCA, o Ministério da Economia teve de se comprometer, nesta semana, com uma taxa real de 6,17% ao ano. O custo estava em 4,76% no início do mandato, em janeiro de 2019, e chegou perto de 3% quando foi aprovada a reforma da Previdência. Ruim para o Tesouro, a desconfiança do mercado é desastrosa para a economia e para a maior parte dos brasileiros, principalmente para os mais pobres.

Fora dos padrões internacionais, a dívida pública brasileira, incluídos os três níveis de governo, é próxima de 80% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo dados de Brasília, e tende a crescer, em termos proporcionais, nos próximos anos. Na maior parte das economias de renda média, o endividamento do governo geral é bem menor e raramente equivale a 60% do PIB. Além de muito endividado, principalmente em nível federal, o setor público do Brasil paga juros elevados e seus padrões de gestão têm sido, com frequência, alarmantes para o mercado.

Sinais de alerta se repetem, agora, com a manobra do presidente Jair Bolsonaro, apoiado pelo Centrão, para distribuir bondades eleitorais e novamente pôr em risco o teto de gastos. O risco foi percebido dentro e fora do País e o alarme já disparou em todo o mercado.

O Brasil afrouxa a política fiscal com a aproximação das eleições de outubro, registrou na terça-feira o boletim do Instituto de Finanças Internacionais editado em Washington e divulgado para todo o mundo. Depois de cortar impostos sobre energia, como se fez em muitos países, o governo brasileiro passou a pressionar por um pacote de gastos emergenciais, assinalou o boletim, apontando o risco de mais uma violação do teto de gastos. Os cortes de impostos e as novas despesas podem equivaler a 1,2% do PIB, “uma cifra nada desprezível para um país em posição fiscal frágil”, segundo o informe.

O aumento da receita pública pode atenuar o efeito dessas medidas em 2022, mas o próximo governo, acrescenta o boletim, poderá ter dificuldade, em 2023, para corrigir o afrouxamento e retomar a observância do teto de gastos. No cenário mais provável, continua a análise, o presidente, seja Bolsonaro ou Lula, mudará de novo o teto como parte da política orçamentária e isso mais uma vez incomodará o mercado.

O presidente Bolsonaro e seus aliados podem pensar e agir como se os efeitos de seus atos ficassem circunscritos a um joguinho político. Muitos podem até conceber esse joguinho como limitado a uma dimensão paroquial, suficiente para garantir a reeleição e os dividendos da participação no esquema brasiliense.

O chefe de governo deve pensar, por necessidade, num eleitorado maior. Sua percepção do papel e das obrigações presidenciais, no entanto, deve ser, como indica o balanço de seu mandato, pouco mais ampla do que foi durante sua longa carreira como deputado irrelevante. Mas o Brasil, apesar de tudo, ainda é uma grande economia, um mercado respeitável e com enorme potencial. As ações de suas autoridades ainda valem a atenção de quem acompanha as condições econômicas e políticas nos mercados com alguma importância.

O presidente pode ter dificuldade para perceber o alcance de suas palavras e manobras. Mas as consequências aparecem nos custos do Tesouro, na redução do dinheiro disponível para funções de governo, na degradação das condições sociais, na inflação acelerada, no dólar supervalorizado e nos juros sufocantes para os negócios e para a gestão pública. Talvez um pouco menos sufocantes, é preciso admitir, para uma gestão ineficiente, sem plano e desvalorizada por quem negligencia ou simplesmente ignora o sentido de governar.

Revés na guerra cultural bolsonarista

O Estado de S. Paulo

Ao derrubar veto de Bolsonaro a leis de apoio às artes, Congresso lembra que há limites ao revanchismo do presidente

Em campanha permanente à reeleição, o presidente Jair Bolsonaro decidiu abrir um cofre que não é dele para comprar votos. Não há limites – nem legais nem morais – quando se trata de distribuir benefícios para taxistas e caminhoneiros e caraminguás para pobres. Mas, quando se trata de prejudicar aqueles que o bolsonarismo considera como “inimigos”, eis que Bolsonaro subitamente invoca impedimentos constitucionais e fiscais. Para justificar o veto a duas propostas que garantiam recursos para o setor cultural – considerado pelos bolsonaristas um valhacouto de comunistas –, o presidente usou o descarado argumento de que devia respeito a dispositivos que o próprio governo desmoraliza quando lhe é conveniente, como o teto de gastos, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei de Diretrizes Orçamentárias.

A Lei Aldir Blanc 2, uma homenagem ao compositor que morreu em decorrência da covid-19, previa repasses de R$ 3 bilhões para Estados e municípios apoiarem atividades culturais nos próximos cinco anos. Já a Lei Paulo Gustavo, tributo ao ator também vítima do novo coronavírus, autorizava transferências de R$ 3,86 bilhões a Estados e municípios para o fomento do setor audiovisual neste ano. Não satisfeito em desmontar as bases da Lei Rouanet, único marco de incentivo à cultura no País, Bolsonaro nem sequer se propôs a avaliar o conteúdo das duas propostas legislativas recém-aprovadas. Imbuído do espírito de revanchismo que marca todas as suas ações, preferiu impor o veto integral.

Se a pandemia afetou profundamente as cadeias produtivas no mundo todo, não há dúvidas de que o setor cultural foi um dos mais prejudicados. Shows, concertos, espetáculos, festivais, festas populares, mostras e exposições foram suspensos por quase dois anos; salas de cinema ficaram às moscas e a produção cinematográfica foi paralisada. O avanço da ciência garantiu a redução no número de casos e óbitos associados à covid-19, de modo que incentivar a reabertura das atividades culturais seria prioridade para qualquer governo – menos, é claro, para a administração Bolsonaro.

Na disputa ideológica deflagrada pelo presidente, cultura não passa de futilidade e irrelevância, quando não instrumento de propagação do discurso da esquerda. A sanha bolsonarista não poupa nem mesmo um legado de décadas, reconhecido no exterior e que representa a verdadeira expressão da identidade nacional. Não importa se investimentos estruturais no setor cultural são capazes de mudar o rumo de uma nação nem que ele ofereça oportunidades a parcelas da população tradicionalmente excluídas. 

Felizmente, ao derrubar os vetos presidenciais às duas leis, o Congresso Nacional, ultimamente indiferente aos interesses nacionais, atuou como barreira institucional e demonstrou um raro senso de prioridade, dignidade e respeito com o futuro do País. Afinal, o Executivo provou ter dinheiro para, literalmente, comprar votos com programas improvisados, sem qualquer preocupação com seu custo e resultados efetivos. Deve, portanto, dispor de recursos mais do que suficientes para resgatar um setor punido por se negar a bater palmas para o desastre.

Supremo precisa retomar julgamento sobre armas

O Globo

STF tem dever de fazer valer o Estatuto do Desarmamento e deter riscos para a segurança pública

Logo no início do governo, em 2019, o presidente Jair Bolsonaro começou a baixar decretos para desidratar o Estatuto do Desarmamento, em vigor desde dezembro de 2003. O governo fez o que estava a seu alcance para facilitar a venda e o porte de armas e munições. Quando recuou, foi por temer as consequências jurídicas.

Não é acaso que tenham sido ajuizadas no Supremo Tribunal Federal (STF) 14 ações de todo tipo em reação a essa política armamentista. Em setembro passado, o julgamento do pacote de processos — sob relatoria dos ministros Rosa Weber, Edson Fachin e Alexandre de Moraes — foi interrompido por um pedido de vista do ministro Nunes Marques, indicado à Corte por Bolsonaro. Já passou da hora de ele devolvê-los ao plenário.

Mesmo que os relatores tenham baixado liminares contrárias ao espírito dos decretos, na prática a profusão de normas baixadas pelo governo tem feito o volume de armas vendidas crescer como nunca. Apenas os registros de caçadores, atiradores esportivos e colecionadores (CACs) quase sextuplicou de 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, a 1° de junho último, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (foi de 117,5 mil para 673,8 mil). Os registros de posse no Sistema Nacional de Armas (Sinarm), da Polícia Federal, cresceram 135% entre 2017 e 2021, para 1,5 milhão.

O incentivo às armas no governo Bolsonaro põe em risco as conquistas recentes nos indicadores de segurança pública. Basta dizer que, entre os CACs, o atirador dito esportivo pode comprar até 60 armamentos, entre eles 30 fuzis, e até 180 mil balas por ano. É preocupante o desvio por furto ou roubo da arma legalizada.

Pesquisadores calculam que em mãos da população haja um total de 4,4 milhões de armas, das quais 1,5 milhão com licença expirada. Significa dizer que uma em cada três está em situação irregular. Supõe-se que parte esteja nas mãos de bandidos. Parte da enxurrada de armas que a política de Bolsonaro libera será, portanto, usada contra a população, que não terá a mínima chance de se defender contra um marginal acostumado a puxar o gatilho.

É uma temeridade armar a população num país que teve no ano passado 41 mil assassinatos. O Brasil continua na liderança mundial em números absolutos e tem 30 cidades com taxas de homicídios acima de 100 por grupo de 100 mil habitantes, índice superior ao de qualquer país no mundo e quase cinco vezes a média brasileira.

É verdade que houve queda em relação aos 44 mil homicídios verificados em 2020. Mas é um erro grave atribuí-la ao armamentismo. Entre todos os motivos para a retração — como demografia ou mudanças na operação do crime organizado —, não está a facilitação ao acesso a armas. “A tentativa de atribuir a redução de homicídios à maior circulação de armas não se sustenta”, afirma a gerente de Advocacy do Instituto Igarapé, Michele dos Ramos. A queda verificada nos homicídios começou em 2018, antes da posse de Bolsonaro. Entre 2019 e 2020, quando o armamentismo já vigorava, houve aumento na proporção de mortes violentas cometidas com armas de fogo, de 70% para 78%.

Por tudo isso, é um desatino a liberação de armas. O STF tem o dever de fazer valer os termos do Estatuto do Desarmamento aprovado no Congresso Nacional, dando um basta na absurda escalada armamentista no Brasil.

Protesto que censurou vereador em universidade causa repulsa

O Globo

É uma lástima que a ‘cultura do cancelamento’ que assombra outros países ganhe força no Brasil

Foi um absurdo — e antidemocrático — o protesto de setores da esquerda que impediram o vereador paulistano Fernando Holiday (Novo) e pré-candidatos do mesmo partido de falar em evento na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) no final de junho. Aos gritos de “recua, fascista, recua, a Unicamp nunca vai ser sua”, integrantes da União da Juventude Comunista tumultuaram o evento até que fosse cancelado. As outrora denominadas “patrulhas ideológicas” passaram pela transmutação que levou à atual “cultura do cancelamento”. A essência continua a mesma do passado. São manifestações de obscurantismo, intolerância e autoritarismo que precisam ser rebatidas com veemência.

O liberalismo, a corrente política baseada na liberdade, confere direitos aos indivíduos. O mais fundamental deles é a autonomia, a possibilidade de fazer escolhas individuais nos campos da religião, associação, opinião e vida política. Esses direitos foram arduamente conquistados pelos brasileiros. Quem os ataca deve ser prontamente rechaçado, independentemente do lugar que ocupe no espectro político.

Por isso causa repulsa o discurso que espalha por universidades brasileiras tentando censurar vozes discordantes da opinião majoritariamente de esquerda que predomina nelas. O histórico do vereador paulistano no Movimento Brasil Livre, sua defesa do “neoliberalismo”, até os abusos do presidente Jair Bolsonaro são usados como argumentos para justificar o injustificável. É esperado que o pequeno grupo de jovens comunistas acredite nas suas crenças fantasiosas. Muito pior é quem dissemina a ideia de que haja razão defensável para censurar um debate em universidades e outros lugares públicos. Não há.

Nos Estados Unidos, o terror imposto pela “cultura do cancelamento” transformou reitores e chefes de departamento em policiais do pensamento. Decisões sobre demissões e eventos são tomadas com base no que tal acadêmico disse ou escreveu sobre temas muitas vezes alheios a sua atuação.

Em 2021, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) convidou um renomado geofísico da Universidade de Chicago para proferir uma palestra. Quando vieram a público críticas dele às ações afirmativas, foi desconvidado. O título da palestra? Clima e o Potencial da Vida em Outros Planetas. Diferentes pesquisas de opinião demonstram que a censura se alastrou pela sociedade americana. Num levantamento recente, 46% dos pesquisados disseram se sentir menos livres para falar de política do que há uma década.

É uma lástima que as mesmas patrulhas estejam ativas no Brasil. Para que o país supere suas mazelas históricas, é imprescindível continuar contando com uma sociedade plural. É num ambiente livre que as melhores ideias florescem, e as piores perdem força. Há, sim, limites para a liberdade de expressão, mas quem os impõe são a lei e a Justiça — não quem se considera no mais alto nível do pedestal da moralidade. Numa conjuntura em que as ameaças vêm da extrema esquerda e da extrema direita, a vigilância precisa ser maior.

Fed age para evitar que a inflação fique resistente

Valor Econômico

Processo de aperto monetário será penoso não só para os Estados Unidos, mas também para o resto do mundo

O Federal Reserve (Fed) está disposto a promover um aperto monetário maior, caso se mostre necessário, para evitar que a inflação se torne resistente e mais difícil de baixar - uma preocupação que, corriqueiramente, costuma tirar o sono de banqueiros centrais de países emergentes.

Nas últimas semanas, o mercado financeiro internacional teve quedas expressivas, diante de uma possível recessão na maior economia mundial. Havia, em muitos dos operadores, uma certa esperança de que o Fed poderia aliviar o aperto monetário. Toda uma geração está acostumada a ver o BC dos Estados Unidos atribuir, nas suas decisões, um grande peso aos riscos do lado da atividade.

Mas a ata do Fomc, divulgada ontem, coloca em primeiro plano as preocupações com a inflação. Muitos membros do comitê entendem que o risco diante do Fed, agora, é a inflação se tornar mais persistente, caso os agentes econômicos comecem a questionar a sua disposição em apertar a política monetária aos patamares necessários.

“Diante de pressões inflacionárias elevadas e de sinais de deterioração em algumas medidas de expectativas de inflação, todos os participantes reafirmaram o seu compromisso em retornar a inflação para a meta de 2%”, diz a ata do Fomc.

Esse é um risco conhecido aqui no Brasil. Quando o Banco Central sinalizou pouca disposição em fazer o que era preciso, ou quando os mercados suspeitaram que não tinha autonomia para tal, a inércia inflacionária aumentou. Foi o que ocorreu, por exemplo, no governo Dilma Rousseff. No fim das contas, o esforço para desinflacionar ficou ainda maior, com um alto preço pago com a perda de atividade econômica.

O consenso dos membros do Fomc é que será preciso mover as taxas de juros para o campo restritivo até o fim do ano. Isso significa que os “fed funds”, que na última reunião foram fixados na faixa de 1,5% a 1,75% ao ano, devem subir para perto ou acima do patamar nominal de cerca de 2,5% ao ano. Essa é a mediana das estimativas dos integrantes do comitê para a taxa neutra, ou seja, aquela que não acelera nem desacelera a inflação e que é consistente com a economia estável em pleno emprego.

Aparentemente, a taxa de juros ao redor de 2,5% ao ano não é suficientemente alta. Os debates dentro do Fomc estão sendo feitos em torno dos juros nominais, num momento que a inflação muito alta faz com que a economia americana opere com juros reais negativos. A projeção mediana dos membros do Fed para a variação de preços da economia é de 4,3% em 2022 e de 2,6% em 2023. Talvez por isso, o comitê admite discutir, mais adiante, se será necessário seguir subindo. Chegará o momento, certamente, de testar na prática a tese de que os juros neutros caíram para patamares reais muito baixos, em virtude da chamada estagnação secular.

O cenário descrito pelo corpo técnico do Fed é de desequilíbrio entre demanda e oferta, ocasionado não apenas pelas restrições do lado da oferta, mas também pelo excesso de demanda. O aperto monetário recente feito pelo Fed e as condições financeiras mais restritivas, que antecipam novas altas de juros, reduziram a perspectivas de expansão da economia, mas aparentemente não o suficiente.

De fato, a mediana das projeções dos membros do Fomc para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de 2022 a 2024 está por volta de 1,7% a 1,8%, grosso modo dentro do PIB potencial estimado. Ou seja, sem uma desaceleração mais forte do PIB, seria muito difícil criar um nível de ociosidade na economia suficiente para baixar a inflação para a meta.

O Fomc volta a falar, na ata, sobre a “administração de riscos” da política monetária, usando um vocabulário muito popular quando Alan Greenspan era o chairman do comitê. No entanto, naquele período, a administração de riscos pesava, de um lado, a atividade e, de outro, a inflação. Agora, o Fed diz que a boa administração de riscos recomenda posicionar a política monetária no campo restritivo para, se necessário, seguir apertando mais. A preocupação pesa mais o lado da inflação.

Esse processo de aperto monetário será penoso não só para os Estados Unidos, mas também para o resto do mundo. As condições de financiamento para economias emergentes já ficaram bem menos favoráveis, o que significa uma leniência menor dos mercados internacionais com os nossos riscos fiscais durante as eleições.

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