quarta-feira, 6 de julho de 2022

Ricardo José de Azevedo Marinho*: História da Roleta

Onde a roda da fortuna vai parar? Essa é uma permanente dúvida. Mas como entender ela? Claro que ela implica numa suspensão voluntária e temporária do juízo para dar espaço e tempo a alma para que ela coordene todas as suas ideias e todo o seu conhecimento.

A dúvida estimula o discernimento e a reflexão sobre a reação visceral, imprudente e impulsiva.

Victoria Camps, a filósofa espanhola nos diz em seu livro Elogio da Dúvida (Edições 70, Coimbra, 2021) que duvidar como diz Montaigne (1553-1592) é dar um passo atrás, distanciar-se de si mesmo, não ceder à espontaneidade do primeiro impulso. É uma atitude reflexiva e prudente. A regra do intelecto que busca a resposta mais justa em cada circunstância.

Há aqueles que têm grandes suspeitas das virtudes da dúvida, principalmente na política, veem um divórcio entre a dúvida e a ação que consideram tarefa própria do político. Torcem o nariz diante dela e acreditam que ela está destinada a provocar ações sempre marcadas pela moderação e lentidão, quando não pela paralisia total da ação.

Eles preferem a reação emocional repentina, instantânea, a resposta forte e clara, mesmo que seja grossa e grosseira. A abordagem categórica que se baseia em dizer “ao pão, pão e vinho, vinho”, mesmo quando não é (e não há) pão nem vinho.

A dúvida não significa paralisia da ação, ela abre a possibilidade de realizar uma ação fundamentada que não elimina os erros, algo que não é fácil neste mundo onde todos buscam certezas, mas que ajuda a reduzi-los.

Imagino que, ao contrário, Vladimir Putin despreza a dúvida na política e seu desejo é recuperar o espaço da Rússia Imperial. A única linguagem que faz sentido para ele é a força, destruição e morte. Ele declarou que a Ucrânia não existia e depois a invadiu. Mas a realidade é teimosa, a Ucrânia tem uma história antiga e sofrida, é composta de diversos povos, de diversas línguas, passou por grandezas e tristezas. Kiev que foi o berço da Rússia, a que mais tarde foi submetida, mas acabou por optar por ser, no final do século XX, voluntariamente um Estado-Nação. Uma estrutura democrática foi estabelecida e, contra todas as probabilidades, resisti ao que deveria ter sido uma ocupação relâmpago. O que os une, o que lhes deu essa tremenda força? Claro, sua longa existência histórica.

A Ucrânia é uma democracia perfeita ou mesmo bem-sucedida? Não! Basta ver seus números, tem muitos problemas e iniquidades, mas estão unidos pelo desejo de liberdade e democracia.

Vejamos o debate (ou seria a ausência dele?) até agora sobre o bicentenário do Brasil. Praticamente ele se encontra com pouquíssimo espaço para o pluralismo, substitui a dúvida por convicções identitárias e ideológicas que se apegam a um único eixo discursivo de acordo com a conveniência. O evento envolvendo a Medalha Biblioteca Nacional - Ordem do Mérito do Livro, em alusão ao Bicentenário da Independência do Brasil (1822-2022), constituiu, lamentavelmente, mais um triste episódio.

Ler a história do Brasil de forma tendenciosa, onde apenas dominação, abuso e humilhação parecem ter existido é negar o que de melhor a historiografia produziu. É claro que isso, dolorosamente, existiu e está nela, mas também nesses duzentos anos foi criado um tecido social extremamente complexo e mestiço. De tudo isso, surgiu uma poderosa miscigenação, que moldou o nosso Estado-Nação com um valioso poder sincrético cultural.

Tivemos a vantagem histórica da emancipação numa "revolução sem revolução" no rico conceito de Gramsci (1891-1937) e da criação de um Estado laico, em que, embora subsistisse o patrimonialismo, ao mesmo tempo e de forma sobreposta, as ideias do Iluminismo e da Ilustração tiveram seu reconhecimento.

Os povos originários graças a eles e aos intelectuais se juntaram a eles como o Marechal Rondon (1865-1958), Darcy Ribeiro (1922-1997) e tantos outros persistem no Brasil, aliás, com seus direitos, suas línguas, seus costumes, seu valor cultural e seus próprios espaços de desenvolvimento que seguem sendo reconhecidos. Mas o processo de miscigenação foi enorme, foi reforçado pela migração de várias latitudes planetárias nos séculos XIX e XX, e continua sendo reforçado pela migração ibero-americana e de outras paragens no século XXI. Não há cidades puras no Brasil. Ninguém pode reivindicar pureza em nosso país.

Então temos algumas dúvidas, mas não devemos ter, porém, sobre a existência de multiculturalismo e multietnicidade neste país mestiço.

Não estamos no caminho certo, é preciso duvidar, refletir e dar espaço aos interesses gerais democráticos para termos um caminho que nos ajude a conviver e reforce aquele “nós” que Ernest Renan (1823–1892) exigiu de uma Nação, e que Norbert Elias (1897-1990) reconfigurou, pois como nos mostrou Pascal (1623-1662), antecipando Dostoievski (1821-1881), não devemos apostar a nossa integridade a roleta que aí está.

*Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

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