sexta-feira, 12 de agosto de 2022

César Felício - Ato precisa ser um ponto de partida

Valor Econômico

A partidarização da defesa da democracia

O ato pela democracia na manhã fria de 11 de agosto em São Paulo, que lotou a Faculdade de Direito no Largo São Francisco, é a reação social mais efetiva desde o início do governo Bolsonaro contra uma ofensiva golpista. Participantes que se destacam por uma leitura pessimista da resiliência da democracia brasileira anotaram que “finalmente se formou uma frente”, como disse o filósofo Marcos Nobre, presidente do Cebrap. Mas não há por que se inferir que o risco de ruptura, ainda que inibido, está neutralizado.

“A possibilidade de ruptura não baixou”, disse Antônio Augusto de Arruda Botelho, advogado membro do grupo Prerrogativas e candidato a deputado pelo PSB. Ex-ministro do Trabalho no governo Collor e hoje dirigente sindical da UGT, Antônio Rogério Magri teme pela própria realização das eleições. Deputado petista, Paulo Teixeira é cauteloso ao responder se o ato de ontem neutralizou a ameaça: não, “mas ajudou bastante”.

O ato de ontem poderia ter ajudado muito mais se a classe política presente a ele tivesse a mesma variedade da paleta de cores da sociedade civil, que lá colocou um espectro que ia de defensores de direitos dos animais fantasiados de arara até o presidente da Fiesp.

Com a quase solitária exceção da deputada Joice Hasselmann (PSDB), só compareceram políticos eleitores de Lula: os candidatos a governador de São Paulo, Fernando Haddad (PT) e a senador, Márcio França (PSB), o coordenador de programa do governo de Lula, Aloizio Mercadante (PT), a candidata a deputada e ex-ministra Marina Silva (Rede), e vários outros sócio-atletas do mesmo time.

Ainda que fosse impossível impedir o coro de “olê, olê, olá, Lula, Lula”, puxado pela militância ao fim da jornada, nada impediria que comparecessem dirigentes partidários do MDB, PSDB, União Brasil, Novo, Cidadania, PSD e PDT, apenas para citar alguns partidos cujas cúpulas fizeram um compromisso com a democracia. Teria sido minorado o risco de manifestações como a de ontem serem capturadas pela campanha eleitoral. Mas lá eles não estavam. Os que estavam no ato e não têm comprometimento com Lula não participam diretamente do jogo político.

“A polarização, a redução de qualquer debate a uma escolha política, não interessa apenas a Bolsonaro, interessa a Lula também”, comentou um eleitor de Simone Tebet, o ex-presidente da Sociedade Rural Brasileira Pedro de Camargo Neto.

A apropriação do ato de ontem pelos defensores da candidatura de Lula é um óbvio risco para o movimento, já que confunde uma causa maior e transversal, que é a defesa da democracia como valor social fundamental, à uma questão conjuntural, como é a volta ao poder de um grupo que deixou o comando do país de forma traumática.

A carta lida ontem merece um lugar na história muito maior do que esse. Atos como o de ontem são importantes como linha divisória a ser traçada para o futuro. Os acontecimentos recentes mostram que autocratas chegaram ao poder e se reelegeram em eleições consideradas limpas, como foi o caso da Hungria e Turquia, para citar dois exemplos recentes. O caminho da chamada “democracia iliberal” tem sido mais comum como rota para o autoritarismo do que o de um golpe de estado promovido por governantes impopulares. E para combater essa possibilidade é preciso estar atento e forte, parafraseando o agora octogenário Caetano.

Ilusionismo

O antigo presidente Itamar Franco gostava de repetir que “os números não mentem, mas os mentirosos fabricam números”. É uma frase que inevitavelmente vem à lembrança ao se ler os programas de governo registrados pelos candidatos a presidente este ano.

Um exemplo, já que promove uma catadupa de citações de estatísticas e cifras, é o documento de diretrizes de governo da campanha de reeleição do presidente Jair Bolsonaro.

Menciona-se lá que a pobreza caiu no Brasil entre 2003 e 2016, período que corresponde à integralidade dos governos Lula e Dilma, ao passo que no resto do mundo a pobreza diminuiu. “Dados comprovam que entre 2003 e 2016 a pobreza no mundo caiu 53,5%, mas no Brasil aumentou 11%”.

Não está errado, mas não chega a estar certo quando o propósito é fazer uma comparação entre os governos de Bolsonaro e Lula, este último misturado no mesmo balaio da sua sucessora e afilhada política Dilma Rousseff. Sobretudo na parte que toca a Bolsonaro.

De acordo com dados disponíveis na página do Banco Mundial na internet, o percentual da população brasileira que vivia com menos do equivalente a US$ 1,90 por pessoa ao dia era de 11% em 2003. Isto caiu para 2,9% em 2014, ano de reeleição de Dilma e momento em que há não uma continuidade, mas uma ruptura na política econômica. Entre 2014 e 2016, quando o governo petista é afastado pelo impeachment, a faixa de população com ganhos abaixo dessa cifra de fato cresce para 4,1%. Este resultado piora até 4,7% em 2018, último ano do governo Temer, e escala para 4,9% ao fim do primeiro ano de governo Bolsonaro. Ainda assim menos da metade do que era em 2003.

Em 2020, fruto do auxílio emergencial surgido durante a pandemia, algo que está longe de ser estruturante, este percentual cai para 1,7%. O resultado de 2020 é destoante de qualquer curva. Aquele ano é incomparável com qualquer outro que tenhamos vivido. Esse corte da pobreza extrema não está disponível para o ano de 2021, mas há sinais em abundância de que no ano passado o avanço da miséria que vem sendo registrado desde 2014 se aprofundou.

De acordo com a nona edição do Boletim de Desigualdade nas Metrópoles, divulgado pelo Observatório Nacional das Metrópoles, um grupo de 380 pesquisadores que trabalha com dados da Pnad contínua do IBGE, em 2021 houve um salto de 4,5% para 6,3% da população metropolitana em situação de extrema pobreza, em relação ao ano anterior, e de 19,3% para 23,7% na população em situação de pobreza.

Neste 2022 é provável que os indicadores melhorem, graças à bolha de renda proporcionada pelos benefícios, com duração até dezembro. O zig zag de um Bolsonaro generoso nos anos pares e indiferente nos ímpares não configura uma política coerente.

 

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