Folha de S. Paulo
'Sul global' é fantasia acadêmica, tardia
flor ideológica do terceiro-mundismo
Putin e Zelenski são
igualmente responsáveis pela invasão russa
da Ucrânia. O diagnóstico neutralista de Lula encontra sua
teorização na réplica à minha última
coluna, assinada por um grupo de
professores universitários (Folha, 2/8).
O "conflito é multicausal", explicam, atribuindo-o em partes iguais ao "expansionismo da Otan" e à "deriva nacionalista do regime de Vladimir Putin". A ordem dos fatores não é casual: fazendo eco a Lula, e ignorando as evidências factuais, o primeiro surge como raiz da tragédia e, implicitamente, como fonte do segundo. O conjunto do texto desdobra o argumento inicial e, nesse passo, descortina os fundamentos da política externa do provável futuro governo. Por isso, merece exame.
O Brasil deve "trabalhar pelo
multilateralismo", dizem os autores, enquanto criticam as ações
multilaterais destinadas a enfrentar a agressão russa. A ONU, principal
instituição multilateral, votou duas resoluções de condenação à invasão, uma no
Conselho de Segurança (vetada por Moscou) e outra na Assembleia-Geral. As
sanções à Rússia assentam-se nessas resoluções —e são, elas mesmas, iniciativas
multilaterais adotadas por dezenas de países.
As sanções não atingiram "o objetivo
de acabar com a guerra", escrevem os professores, inventando uma meta
maximalista impossível. De fato, embora as exportações da Rússia tenham sido
pouco afetadas, suas importações sofreram golpes profundos, o que provocou
recuo generalizado na produção industrial russa, como explica Paul Krugman. As sanções reduzem, a longo prazo, as capacidades
militares de Putin. Mas o governo Bolsonaro as condena --e Lula também.
O fornecimento de armas à Ucrânia ampara-se
no princípio multilateralista da autodefesa coletiva, consagrado na Carta da
ONU. Os autores dizem que "a sobrevivência de Kiev será um abalo para a
visão do mundo de Putin", como se tal "sobrevivência" fosse uma
dádiva da natureza, não um fruto do auxílio militar. Bolsonaro e Lula pedem,
juntos, o fim desse suporte bélico. Não é preciso excessiva perspicácia para
concluir que a "visão do mundo de Putin" prevaleceria e a Ucrânia deixaria
de existir caso imperasse a posição compartilhada pelos dois.
No texto de réplica, curiosamente, sanções
e ajuda militar são excluídas do conceito de multilateralismo. Para os autores,
multilateralismo parece só se aplicar a iniciativas de um certo "sul
global", que faria contraponto à "posição ocidental". Aí, emerge
uma noção organizadora da concepção de política externa lulista.
"Sul global" é um herdeiro
imaginário do antigo Terceiro Mundo e, mais nitidamente, do Movimento dos
Países Não Alinhados (NAM). Nascido da Carta de Bandung (1955), o NAM adotou
posições coletivas que refletiam o ciclo da descolonização afro-asiática.
Depois, tornou-se um campo de concorrência diplomática entre China e Índia, até
perder relevância. Já o "Sul global" não passa de uma fantasia
acadêmica.
Quem estrutura o "Sul global"? A
China, engajada no jogo de poder mundial com os EUA? A Índia, cuja rivalidade
com a China produz alinhamentos duais, com os EUA e a Rússia? A Turquia,
integrante da Otan que, para preservar sua influência geopolítica regional,
mantém uma parceria limitada com a Rússia?
A autonomia brasileira no sistema
internacional exige a rejeição da Guerra Fria 2.0 entre EUA e China e solicita
a edificação de parcerias flexíveis baseadas no interesse nacional. Nossa
política externa certamente não deve buscar "alinhamentos automáticos com
grandes potências" –mas a condenação efetiva da guerra imperial russa não
equivale a nenhum "alinhamento automático".
"Sul global" é uma tardia flor
ideológica do terceiro-mundismo. No atual discurso lulista, funciona como
pretexto sofisticado para a reiteração da política bolsonarista de
solidariedade com Putin.
A esquerda precisa condenar Putin e ponto final.
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