O Globo
Ao ligar para o 190, o menino Miguel estava
coberto de razão. De certa forma a fome é, sim, caso de polícia. Ou deveria ser
O jurista Lee Bollinger ocupa a presidência
da prestigiosa Universidade Columbia e pretende transmitir o cargo ao final do
ano letivo de 2022-23 no Hemisfério Norte. Terá então presidido por duas
décadas a instituição fincada em Nova York há 268 anos. Desse ciclo, ele leva
algumas certezas. Uma delas poderia se referir ao clamor brasileiro até então
entalado, mas que neste 11 de Agosto soltou a voz. “Uma universidade”, diz
Bollinger, “não consegue sobreviver numa sociedade que não leva a sério os
elementos básicos da vida cívica — o respeito à verdade, o respeito à razão
como meio de busca da verdade e o compromisso com o princípio fundamental da
igualdade humana”. Basta trocar o “universidade” por “democracia” e serve para
nós também.
A leitura da Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito foi urgente e necessária, além de ter peso histórico. O texto, repetido como coro nacional em vários sotaques e por várias gerações, embalou arcadas de inúmeras faculdades de Direito. Chegou a transbordar para a rua em algumas cidades do país, mas, por cair numa quinta-feira, portanto dia em que trabalhador trabalha, esse 11 de Agosto não pôde ser mais plural. Por autoexclusão, tampouco poderia contar com Bolsonaros de sangue ou fé política. Foi um chamamento à razão e ao direito à esperança democrática.
Nove dias antes, uma plantonista da Polícia
Militar de Santa Luzia, Região Metropolitana de Belo Horizonte, atendera uma
ligação noturna que acabou sacudindo um pouco o torpor nacional:
— Cento e Noventa. Qual sua emergência?
— Ô, senhor policial, é por causa que aqui
em casa não tem nada pra gente comer e eu tô com fome. Minha mãe só tem farinha
e fubá....
— Que idade você tem?
— 11 anos (...)
A guarnição militar se deslocou até o
endereço indicado acreditando tratar-se de um caso de maus-tratos. Encontrou o
menino Miguel, sua mãe e quatro irmãos, todos asseados. A moradia, humilde,
estava bem cuidada. Os cinco estavam havia três dias na base da água e fubá e
havia três semanas sem comprar comida. Com dinheiro do próprio bolso, os PMs
foram até um mercado e compraram alimentos.
A isso se chama fome. E onde há fome não há
vida cívica. Ao
ligar para o 190, o menino Miguel estava coberto de razão. De certa forma a
fome é, sim, caso de polícia. Ou deveria ser. Não para suprir o risco de
falência alimentar que ameaça, segundo a ONU, 36% das famílias brasileiras em
2022, como fizeram por empatia os cidadãos PMs de Santa Luzia. E sim para
apurar os pantagruélicos desvios de recursos públicos que saqueiam a nação em
proporções históricas. Nesse contexto, o escândalo do pagamento de salários
milionários a generais de pijama e oficiais próximos ao presidente, revelado
pelo jornal O Estado de S. Paulo, soa obsceno, mesmo sendo legal. O número 190
é para chamadas de segurança pública. Um país com 33 milhões de pessoas sem ter
o que comer todos os dias precisa repensar seu conceito de segurança pública.
A
fome não é silenciosa, ela grita — nós é que não ouvimos. De nada adianta
ostentar súbito impulso democrático e fazer selfie no Ato do 11 de Agosto se
quem tem funcionário doméstico jamais se interessou sinceramente em saber como
é a vida de quem há anos lhe serve a comida e limpa a casa. O fazer democrático
precisa ser coletivo.
A meros 49 dias das eleições (e outras
quatro semanas para um eventual segundo turno), vivemos na incerteza cambiante
do resultado. Essa expectativa, recheada de ansiedade, é um baita privilégio
por atestar a crucial diferença entre democracias eleitorais e autocracias
eleitorais. Dependendo do resultado, trata-se de um privilégio que pode não ser
permanente, como foi dito às vésperas da tentativa de reeleição de Donald
Trump.
Por isso convém não confundir. A saudável
incerteza quanto ao resultado da vontade popular tem no Ato do 11 de Agosto seu
melhor parceiro. O próximo ato com data nacional histórica, o 7 de Setembro,
foi sequestrado pelo presidente da República em 2021 para sua reeleição — com
insurreição contra a urna eletrônica, se necessário.
Para quem não tem o que comer, nenhum dia é melhor que o outro.
Muito triste!
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