O Globo
Entrevistado do podcast Flow na semana passada, o presidente apresentou sua visão da História
Na segunda-feira, o presidente Jair
Bolsonaro deu uma longa entrevista a Igor Coelho, o Igor 3K, do podcast Flow.
Durou mais de cinco horas, coisa inédita da história de Pindorama. Bolsonaro
falou bem de si e de seu governo. Aos 28 minutos da conversa, apresentou sua
visão da História e disse o seguinte:
“Quem
cassou João Goulart não foram os militares, foi o Congresso Nacional. O
Congresso, numa sessão de 2 de abril de 1964, cassou. Dia 11, o Congresso votou
no marechal Castello Branco, dia 15 ele assumiu. (...) Não houve um pé na
porta. Os golpes se dão com pé na porta, com fuzilamento, com paredão. Foi tudo
de acordo com a Constituição de 1947, ou 1946. Foi tudo de acordo. Nada fora
dessa área.”
Presidente dizendo impropriedades faz parte
da vida. Lula já disse que Napoleão foi à China e que Oswaldo Cruz criou uma
vacina para a febre amarela. Nenhuma das duas coisas aconteceu, mas a batatada
não fez mal a ninguém. Já a ideia de que a deposição de João Goulart foi coisa
do Congresso e que “foi tudo de acordo com a Constituição de 1947, ou 1946” é
tóxica, por três motivos.
Primeiro, porque em 2022 Bolsonaro desafia
o Judiciário e coloca em dúvida o sistema de coleta e totalização dos votos da
eleição vindoura. (O pedido de registro de sua candidatura está no TSE. A
decisão só sairá depois de 7 de setembro.)
Segundo, porque em quatro anos de governo o
presidente disse em diversas ocasiões que tinha ao seu lado “meu Exército”e
ameaçou descumprir decisões da Justiça.
Finalmente, porque Bolsonaro não é a única pessoa convencida de que em 1964 o presidente João Goulart foi deposto pelo Congresso.
30 e 31 de março de 1964
Um país que não conhece sua História corre
o risco de repeti-la. A maioria dos brasileiros de 2022 não havia nascido em
1964. Passaram-se 58 anos, mas os fatos continuam no mesmo lugar.
Vale a pena revisitá-los, cronologicamente:
Na manhã de 30 de março de 1964, o
presidente dos Estados Unidos, Lyndon Johnson, recebeu o briefing diário da
Central Intelligence Agency informando que havia uma “possibilidade real de
confronto entre Goulart e seus adversários”. O descontentamento militar havia
crescido e pelo menos um governador “considerava a possibilidade de uma
secessão”.
À noite, Goulart discursou numa assembleia
de sargentos, no Rio de Janeiro. Quando ele terminou, o general Olympio Mourão
Filho, em Juiz de Fora, registraria:
“Acendi meu cachimbo e pensei comigo mesmo
que dentro de três horas eu iria revoltar a 4ª Região Militar e a 4ª Divisão de
Infantaria. (...) ‘São 3h15min da manhã histórica de 31 de março, terça- feira
de 1964. (...) Vou partir para a luta às 5 horas da manhã, dentro de uma hora e
50 minutos. (...) Sei que morro, mas vou continuar a fumar como um turco. Estou
cachimbando sem parar desde as duas da madrugada.”
Mourão proclamou-se rebelado, mas sua tropa
continuou em Juiz de Fora. Deu inúmeros telefonemas, almoçou e dormiu a sesta.
Durante a manhã do dia 31, o general
Castello Branco, chefe do Estado Maior do Exército, tentou dissuadir Mourão e o
governador Magalhães Pinto, de Minas Gerais, que acompanhara a rebelião.
Pelos planos de Mourão, as tropas rebeldes
seriam comandadas por seu colega Antonio Carlos Muricy. Ele vivia no Rio, foi
acordado às sete da manhã e chegou a Juiz de Fora no início da tarde. Conhecido
pelo desassombro, ele contaria: “Eu vivi 1930 e 1932 e sabia como são os
indecisos. Nessa hora de indecisão, você pode fazer o Diabo e quanto mais Diabo
fizer, melhor.”
1º de abril de 1964
João Goulart havia estimulado a
indisciplina militar tolerando uma rebelião de marinheiros e discursando para
sargentos. Supunha-se apoiado por um dispositivo de generais palacianos e
acreditou que os indecisos defenderiam seu governo em nome da disciplina.
Enganou-se.
O marechal Cordeiro de Farias, patriarca de
todas as revoluções do século XX, definiu magistralmente a situação: “O
Exército dormiu janguista no dia 31 e acordou revolucionário no dia 1º.”
Entre a manhã de 31 de março e a tarde de
1º de abril, o dispositivo militar de Goulart esfarelou-se, sem um só tiro. Ele
foi do Rio para Brasília, e de lá seguiu para Porto Alegre.
O 2 de abril de Bolsonaro
Chega-se assim ao momento em que, segundo
Bolsonaro, “quem tornou vaga a cadeira do João Goulart foi o Congresso
Nacional”: “Foi tudo de acordo com a Constituição de 1947, ou 1946. Foi tudo de
acordo. Nada fora dessa área.”
Tudo errado. Na madrugada de 2 de abril, o
Congresso não decidiu coisa nenhuma. Seu presidente, o senador Auro de Moura
Andrade, disse o seguinte: “Comunico ao Congresso Nacional que o Sr. João
Goulart deixou, por força dos notórios acontecimentos de que a Nação é
conhecedora, o governo da República”. Em seguida, foi lido um ofício do chefe
da Casa Civil informando-o de que, para se preservar do “esbulho”, seguira para
o Rio Grande do Sul, “onde se encontra à frente das tropas militares legalistas
e no pleno exercício de seus poderes constitucionais”.
Auro prosseguiu: “Não podemos permitir que
o Brasil fique sem governo, abandonado. (...) Assim sendo, declaro vaga a
Presidência da República e, nos termos do art. 79 da Constituição, declaro
presidente da República o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli.
A sessão se encerra.”
(Do plenário, o deputado Tancredo Neves
acusava: “Canalha, canalha!”)
Não houve debate, muito menos voto.
No meio da madrugada, uma pequena comitiva
dirigiu-se ao palácio do Planalto, e lá o presidente do Supremo Tribunal
Federal, ministro Álvaro Ribeiro da Costa, deu posse ao presidente da Câmara,
deputado Ranieri Mazzilli. Pela Constituição, seria o legítimo sucessor de
Goulart, se ele tivesse abandonado o país ou se o Congresso tivesse votado seu
impedimento.
Não houve pé na porta porque elas estavam
abertas. No Rio, duas horas antes da fala de Auro, o general Arthur da Costa e
Silva havia assumido na marra as funções de “comandante em chefe do Exército
Nacional”.
Durante essa madrugada, de Washington, o
secretário de Estado assistente George Ball mandou um telegrama a Mazzilli
felicitando-o. Era o virtual reconhecimento do novo governo. Horas depois, ele
registraria que o presidente Johnson “ficou furioso comigo, acho que foi a
primeira vez que ele ficou realmente zangado comigo”. (O telegrama de Ball
sumiu.)
Às 11h, no Rio, o embaixador americano,
Lincoln Gordon, festejava o desfecho da crise, mas levantava questões que,
passados 58 anos, Bolsonaro julgou ter resolvido.
Gordon escreveu a Washington:
“Estou preocupado com a duvidosa situação
jurídica da posse de Mazzilli na Presidência. A declaração da vacância feita
pelo presidente do Congresso, senador Moura Andrade, não foi amparada pelo voto
dos parlamentares. O presidente do Supremo Tribunal presidiu o juramento de
Mazzilli, mas não estava amparado num voto do tribunal.”
Professor de Harvard, Gordon sabia que
havia ajudado a atropelar a Constituição.
Serviço
As cinco horas de Bolsonaro no Flow estão na rede, com audiência recorde.
Como sempre, Bolsonaro MENTE, MENTE, MENTE... Neste ponto, é uma perfeita imitação de Trump!
ResponderExcluirO intelectual que informa Bolsonaro é o torturador Carlos Alberto Embaçado Ustra. Bolsonaro gostou tanto do que ele fez na vida e escreveu que o contemplou com uma pensão vitalícia de Marechal(o cargo não existe mais). Dinheiro que é recebido pelas suas duas filhas. Quinze mil para cada uma.
ResponderExcluirO brilhante torturador foi recompensado por seus crimes nas Forças Armadas! Quando um genocida está no comando, a tortura e o assassinato são naturalizados e recompensados!
ResponderExcluirE conheço gente,que nem era bolsonarista,que adorou a entrevista!
ResponderExcluirEstamos perdidos.