O Estado de S. Paulo
Uma nova relação entre Estado e empresas, junto com o esforço dos cidadãos, pode ser uma novidade num ambiente estagnado e sem esperanças
Um fato importante dos últimos dias foi a
aprovação do pacote ambiental de Joe Biden no Congresso americano: US$ 430
bilhões. O objetivo é transitar para uma economia de baixo carbono e adaptar os
EUA às transformações produzidas pelo aquecimento global.
Esta grande vitória de Biden me fez pensar
no Programa Apollo, que levou dois homens à Lua e custou, a preços de 2020, US$
283 bilhões. O programa recuperou minha atenção pois é descrito pela economista
Mariana Mazzucato, no seu livro Mission Economy (HarperCollins Publishers),
como um exemplo de sucesso que pode inspirar uma nova fase do capitalismo, a
economia de missão.
Segundo ela, existe um grande caminho para
projetos em que governo e iniciativa privada se unam com possibilidades de
grandes triunfos, como o programa anunciado por Kennedy em 1962 como a mais
arriscada e perigosa aventura em que o ser humano embarcou.
Naturalmente, a proposta de Mariana
Mazzucato prevê um Estado eficiente e empresas com alto sentido social, algo
que, de forma pioneira, Larry Fink, da BlackRock, enunciou em 2018: sem um
senso de propósito, nenhuma empresa pública ou privada consegue atingir seu
pleno potencial.
Trabalhar com essas ideias no Brasil ainda é um pouco difícil. A tendência, aqui, é pensar no Estado como ineficaz e sonolento; e nas empresas como devoradora dos recursos públicos. Na verdade, o liberalismo mais radical só vê no Estado a função de normalizar, regulamentar, uma vez que trabalha também com a tese de que é intrinsecamente improdutivo.
Esta ideia de um capitalismo de missão,
baseado no desenho claro de uma grande tarefa, de certa maneira, guardadas as
proporções, já existiu no Brasil com a construção da capital Brasília. Sem
entrar no mérito das consequências inflacionárias, das desigualdades entre
plano-piloto e cidades satélites, enfim, sem discutir se foi ou não positiva, a
verdade é que a gigantesca missão foi concluída.
Nos dias de hoje, muita coisa deveria mudar
para que uma missão conjunta fosse realizada. Em primeiro lugar, no interior do
Estado, onde setores de excelência precisam florescer; e, em segundo lugar, no
interior das empresas, que precisam adotar novos rumos, como a visão de uma
governança ecológica e social.
A julgar pelo livro de Mazzucato, isso
apenas não bastaria. Seriam necessários, também, novos contratos, bem
formulados, que garantissem no mínimo que não se pagasse por obra não concluída
ou que se evitassem situações parasitárias, nas quais o Estado investe em
pesquisas e a empresa lucra no mercado.
Minha intenção não é resenhar o livro, mas
apenas sugerir que grandes missões ainda podem ser realizadas envolvendo Estado
e empresas.
Selecionei duas, uma vez que estamos em
campanha eleitoral. A primeira delas é o combate à fome.
De um modo geral, os candidatos pretendem
abordar este tema com transferência de renda, mas há um campo maior a ser
explorado. Podem-se formar estoques reguladores em sintonia com o agronegócio,
desenvolver novos projetos com a agricultura familiar e envolver a sociedade
numa grande campanha, pois em muitos lares brasileiros sobra comida.
Outra grande missão no horizonte seria
estreitar o abismo que existe entre ensino público e particular no Brasil,
começando por reduzir as desigualdades de acesso digital.
Atravessamos uma pandemia e grande parte
dos alunos brasileiros ficou sem aulas e sem chances de estudar. A distância
que existia entre crianças pobres e as outras foi brutalmente ampliada.
Não vou entrar no mérito das tentativas de
facilitar o acesso, inclusive sobre como se usou o fundo de universalização
como aprovamos junto com a queda do monopólio estatal nas telecomunicações. A
tarefa não foi concluída e a ampliação do acesso não se limita a superar o
atraso apenas na educação; ela contribui também para a renda de pessoas mais
vulneráveis.
Neste momento em que discutimos nossos
candidatos, precisamos reconhecer que apenas uma minoria insignificante lê um
programa de governo. Mas o grosso dos eleitores pode ser atingido por
ideias-força. E o enfoque de missão envolvendo Estado, iniciativa privada e
sociedade pode ser realmente algo novo, sobretudo se superarmos nossos
conhecidos e resilientes problemas.
Toquei apenas em duas possibilidades: o
combate à fome e a redução do abismo no acesso digital.
O tema que iniciou este artigo, o pacote
ambiental de Biden, supera em valor o próprio Programa Apollo. É também um
caminho, pois a missão é clara, diante do aquecimento global.
Um projeto que se destinasse a proteger e
desenvolver a Amazônia de forma sustentável seria uma espécie de missão
perfeita para acionar empresas com senso de propósito e a própria sociedade.
Num país onde há tanta carência, projetos não faltam; missões inadiáveis, também não. A proposta de uma nova relação entre Estado e empresas, a possibilidade de incluir o esforço dos cidadãos, tudo isso pode funcionar como uma novidade num ambiente estagnado e sem esperanças, como o nosso.
Gabeira sabe das coisas.
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