O Globo
O que diria José Bonifácio, considerado o
Patriarca da Independência, da política de destruição da Amazônia levada a cabo
por Bolsonaro?
Nestes 200 anos de independência do Brasil,
a grande ideia do governo foi trazer o coração de Dom Pedro I para uma
exposição no país.
Não sei bem o que isso revela sobre nós.
Poderia ser o cérebro, as amígdalas, o pomo de adão, não importa, certamente um
debate mais amplo cumpriria melhor o papel de entender o que se passou por aqui
e em Portugal no momento da independência.
Um coração transportado numa urna de mogno,
madeira que, por sinal, foi quase extinta pela civilização luso-brasileira,
dificilmente aumentará a compreensão dos brasileiros sobre sua história.
Na semana passada foi lançado um livro, “Adeus, Senhor Portugal”*, em que os autores defendem a tese de que a conjuntura econômica teve um grande papel no surgimento do Brasil como país soberano. Eles não negam a importância das ideias iluministas que foram o pano de fundo da crise do absolutismo. Mas, ainda assim, afirmam nas primeiras linhas: “O Brasil nasceu de uma crise fiscal. Seu pai foi o déficit. Sua mãe, a inflação”.
É delicado discutir o nascimento do Brasil
sob esse prisma, pois corremos o risco de concluir que não aprendemos nada em
dois séculos. A inflação continua sendo um problema sério, e o rombo no
Orçamento cada vez maior, sobretudo com a proximidade das eleições.
O mais interessante nessa história é que
tanto a revolta do Porto em 1820 como a rebelião no ano seguinte no Brasil
tinham em seu ideário algum controle social do Orçamento, enfeixado nas mãos do
governo joanino.
Duzentos anos depois, avançamos pouco nesse
quesito. O que os rebeldes queriam, a fiscalização parlamentar do Orçamento,
acabou se tornando um pesadelo aqui deste lado do Atlântico. Estamos às voltas
com uma luta contra o orçamento secreto, produto do casamento entre Bolsonaro e
o Centrão.
É um tema que o país ainda não considerou
adequadamente, porque os escândalos começam a pipocar em estados distantes:
Alagoas, Maranhão. Quando o Brasil se der conta de que quase R$ 20 bilhões
escoam pelo ralo, talvez nos reunamos de novo na Praça Tiradentes, como em fevereiro
de 1821.
Há um dado adicional: Bolsonaro não revela
seus gastos pessoais pagos pelo Tesouro. Alega questões de segurança.
Muita coisa mudou na forma. O desespero
inflacionário atingia na época o consumo de farinha de mandioca e carne-seca.
Hoje, carne e leite estão se tornando proibitivos.
A propensão para gastar acima das
possibilidades continua sendo uma caraterística insuperável. No tempo de Dom
João VI, ainda se podia propor a venda das joias da coroa; hoje, essa proposta
se estende às grandes empresas estatais. Mas o que adianta vender, se a
propensão a gastar muito nunca é saciada?
Na crise do absolutismo, havia um fator
inexistente hoje: os soldados se rebelavam também por falta de pagamento de
seus soldos. Os militares de hoje ganham melhor e recebem em dia. Alguns mais
de R$ 100 mil por mês, e um grupo seleto de generais alcançou a cifra de R$ 1
milhão mensal, o equivalente ao que ganham craques de futebol, pagos pela
iniciativa privada.
Nada disso se expressa num coração guardado
numa urna de mogno. E tantas outras histórias mereciam ser contadas nestes 200
anos. O que diria José Bonifácio, considerado o Patriarca da Independência, da
política de destruição da Amazônia levada a cabo por Bolsonaro e apoiada numa
superada visão de defesa nacional formulada pelo general Golbery? Em José
Bonifácio aliavam-se a preocupação com o meio ambiente e o combate ao
despotismo. Duzentos anos depois, talvez fosse um deslocado no seu país,
triturado por gabinetes do ódio nas redes sociais.
Creio que Ruy Guerra e Chico Buarque talvez
descrevam em seu “Fado tropical” a saga desse coração ambulante: “Mesmo quando
minhas mãos estão ocupadas em/torturar, esganar, trucidar/Meu coração fecha os
olhos e, sinceramente, chora”.
*“Adeus,
Senhor Portugal”
Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira
Companhia das Letras
Fernando Gabeira e sua lucidez.
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