O Globo
O debate religioso, para além do consenso
sobre a liberdade de credo, só interessa às pessoas que querem nos jogar num
mundo pré-moderno
A imprensa fala de uma guerra santa, movida
pela campanha de Bolsonaro. Isso interessa a ele, que vê guerra em todos os
lugares, possivelmente porque a vive dentro de si próprio. Além do mais, não
tem nada de santa: apenas uma tática para assustar as pessoas.
Por isso que o demônio ganhou tanto peso no
discurso oficial; ele é apontado aqui e ali, como se fosse um atributo da
oposição.
O diabo é um dos grandes temas do
monumental “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa. Mas aparece com tantas
nuances na cabeça do jagunço Riobaldo que alguns intérpretes afirmam que o
escritor usa o diabo para descrever a visão do mundo da personagem: um mundo de
coisas impermanentes, transitórias, sem existência autônoma. Para alguns, o
budismo no sertão de Minas.
O diabo existe ou não existe? Riobaldo já
nos primeiros parágrafos fala de um bezerro com cara de cachorro que ria como
uma pessoa. Foi morto porque era diferente.
Mas é pela sabedoria de um compadre Quelemém que ele chega à conclusão de que o diabo “vige dentro do homem, nos crespos do homem — ou é o homem arruinado ou o homem ao avesso. Solto por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum”.
Uma das mais importantes lições de seu
compadre Quelemém é esta: o que gasta e vai gastando o diabo dentro da gente,
aos pouquinhos, é o razoável sofrer e a alegria do amor.
Infelizmente não posso falar só de Riobaldo
e dos nomes do diabo que, para ele, é um falso imaginado: Rincha-Mãe,
Sangue-d’Outro, Muitos-Beiços, Rasga-em-Baixo, Faca-Fria, Fancho-Bode,
Treciziano, o Azinhavre.
Se a sabedoria do compadre Quelemém
baixasse, de repente, na campanha presidencial, o diabo não teria papel algum.
Tudo o que se pode dizer nesse campo é afirmar a liberdade de religião. O resto
são problemas concretos que temos de enfrentar, domando o diabo dentro de nós e
nos abstendo de denunciá-lo no outro.
A fome, por exemplo. Escrevi um artigo no
fim de semana sobre uma possibilidade de combate à fome, unindo governo,
agronegócio, agricultura familiar e sociedade. Baseei-me num livro de Mariana
Mazzucato, “Mission economy”, que fala do poder de realização quando todos se
unem para realizar uma determinada tarefa. Seu exemplo inicial: a ida do homem
à Lua, o projeto Apolo.
Outra possibilidade que abordei é a redução
do abismo de acesso digital entre crianças ricas e pobres. E para completar: o
desenvolvimento sustentável da Amazônia.
Minha intenção é fugir de debates como essa
falsa guerra santa, sem cair na ilusão de que vamos discutir programas de
governo completos. Pela minha experiência, um número insignificante de pessoas
examina todo o programa dos candidatos.
Uma saída é escolher ideias-força e tentar
jogá-las no debate. O combate à fome é uma delas. Quando se fala nisso, a
tendência é reduzir a proposta à simples transferência de renda. O que é muito
pouco.
Da mesma forma, um programa de educação
detalhado talvez não tenha muito público. Mas a proposta de reduzir o abismo no
acesso digital é algo bastante inteligível, sobretudo depois da pandemia. E a
redução desse abismo não se limita às crianças, mas também às famílias mais
vulneráveis.
Finalmente, a Amazônia é a grande
oportunidade do Brasil. É a região potencialmente mais rica e mais importante
não só para nós, como para todo o planeta. O que seria do Brasil sem a Amazônia?
Para muitos, somos apenas a periferia da Amazônia.
Enquanto discutimos o diabo na rua, em
plena campanha, os grandes temas nacionais ficam na penumbra. Não somos o Irã
ou o Afeganistão, onde religião e governo são indissociáveis.
O debate religioso, para além do consenso
sobre a liberdade de credo, só interessa às pessoas que querem nos jogar num
mundo pré-moderno, cuja característica principal era exatamente a não separação
entre Estado e religião.
Vamos esquecer o diabo ou, como diz compadre Quelemém, vamos gastar com o amor o que existe dele em nós: solto por si, repito Riobaldo, cidadão, não existe diabo nenhum.
Grande Gabeira.
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