O Estado de S. Paulo
É ilusão pensar que a política poderá ser conduzida como a conduzimos desde o movimento das Diretas até a captura do poder pela extrema-direita
Uma carta pela democracia será lida no dia
11 de agosto em São Paulo, e nesse dia, provavelmente, já terá 1 milhão de
assinaturas. Nada mais importante neste momento em que Jair Bolsonaro chama
embaixadores para atacar as urnas eletrônicas, numa indicação de que não
aceitará sua provável derrota.
Um dos aspectos interessantes do documento
é que, além da assinatura, ele pede uma vigília permanente pelo Estado de
Direito, e isso é fundamental diante das ameaças.
Apesar de minha total concordância,
gostaria de acrescentar algumas notas. É essencial defender o que temos de
democracia no Brasil. Mas é ilusório supor que ela tenha atingido um estágio
superior.
Em 2013, ela foi sacudida por manifestações que até hoje não conseguimos interpretar bem. Mas a intensidade e a extensão do movimento apontavam para grandes deficiências, que não foram satisfeitas; ao contrário, minha sensação é de que se agravaram com a escolha de Bolsonaro.
Nos movimentos de rua havia uma demanda por
serviços públicos decentes. De lá para cá, apesar da boa performance do SUS
durante a pandemia, nada melhorou. A educação foi para o espaço, com a escolha
de ministros dedicados à guerra cultural ou a conchavos com pastores. Mesmo a
saúde, colocada à prova, revelou indícios de corrupção e uma verdadeira batalha
para que um governo negacionista se dispusesse a comprar as vacinas.
Também as demandas de combate à corrupção
foram sepultadas. O que se viu, de lá para cá, foi um recuo em todos os níveis.
Recuo na forma de leis, como a da improbidade administrativa ou mesmo a que
desqualifica o uso de celular como prova de crimes.
O mais importante nesse campo, sem dúvida,
foi a adoção de um orçamento secreto. É o instrumento mais suspeito da história
recente do Brasil, e, no entanto, foi praticamente naturalizado. O Supremo
pouco conseguiu no sentido de trazer luz a estes gastos paroquiais que detêm a
parte do leão no orçamento nacional.
Os movimentos de rua em 2013 revelaram,
principalmente, uma grande distância entre as pessoas e seus representantes. De
um modo geral, políticos eram vaiados como uma punição por seu alheamento aos
problemas reais.
Não há dúvida de que Bolsonaro se
aproveitou do desgaste do processo, das lacunas do campo da democratização,
inclusive no campo da segurança pública, no qual se apresentou como a única
alternativa, apesar de equivocada.
O que aconteceu depois do esgotamento da
experiência de redemocratização foi apenas uma falsa renovação na política
brasileira. Com suas características populistas, Bolsonaro trouxe uma bancada
inepta para a Câmara, parlamentares que foram eleitos apenas por terem colado
sua imagem à dele.
O que era considerado a raiz do fracasso do
chamado presidencialismo de coalizão – o toma lá, dá cá – acabou se
fortalecendo com o franco domínio do Centrão, que praticamente tomou as rédeas
do governo, incluindo postos-chave, além de grande parte do dinheiro público.
Os partidos políticos, tão criticados nas
ruas de 2013, transitaram de eleições financiadas por empresários para o uso de
recursos do Estado. E não foram nada modestos ao definirem um fundo eleitoral
de R$ 4,9 bilhões para 2022.
Nada disso torna menos importante a defesa
do Estado de Direito e da democracia. Mas a neutralização dos impulsos
golpistas de Bolsonaro, assim como sua derrota eleitoral, apenas nos remetem
para aquele momento anterior em que as pessoas na rua questionavam a qualidade
da democracia brasileira.
Isso não significa que elas voltarão
imediatamente ao estado de revolta, sobretudo porque haverá uma euforia pela
superação de um governo tenebroso.
É uma ilusão pensar, entretanto, que tudo
poderá ser como antes, que a política brasileira, após o fracasso retumbante de
um falso projeto de renovação, poderá ser conduzida da mesma maneira que a
conduzimos desde o movimento das Diretas até a captura do poder pela
extrema-direita.
Nunca entendemos bem o que aconteceu em 2013.
O que não significa que deixemos de nos esforçar para compreender aquilo que
pode ser realmente um novo passo, uma defesa da estabilidade e sobrevivência da
democracia brasileira.
Não tenho a pretensão de responder em
detalhes a este desafio. Mas, para prestar serviços decentes, o Estado
brasileiro tem de se reformar; para reaproximar-se das pessoas, o sistema
político também terá de mudar.
Sepultado o golpe de Bolsonaro, garantidos
o Estado de Direito e a democracia tal como a conhecemos hoje no Brasil,
abre-se uma nova etapa na qual todos esses problemas, mais 33 milhões de
famintos e cerca de 100 milhões em insegurança alimentar, estarão nos
questionando: afinal, que democracia é esta, como poderá cumprir as promessas
nascidas com o fim da ditadura?
A resposta terá de nascer de um grande esforço social no debate sobre uma agenda para o País, na renovação, ainda que modesta, do Parlamento, na recolocação de nosso lugar no mundo como potência ambiental – enfim, inúmeros passos para realmente acordarmos do pesadelo bolsonarista.
Vivemos um pesadelo mesmo.
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