Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Modelo de documento em defesa do Estado
Democrático de Direito precisa ser expandido para outros temas
A organização da sociedade civil brasileira
foi fundamental para evitar qualquer tipo de golpe contra as eleições
presidenciais de 2022. O primeiro round pela democracia foi vencido, graças à
utilização de um modelo de cartas de princípios que firmam compromissos entre
os grupos mais diversos, como UNE, Febraban, centrais sindicais, intelectuais,
advogados, Fiesp e outros, a fim de definir o que é prioritário para o futuro
do país. Esse modelo deve ser expandido para outros temas porque salvar o
regime democrático é apenas o ponto inicial a partir do qual juntaremos as
peças necessárias ao desenvolvimento do Brasil.
A “Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito”, documento-síntese da mobilização contra o golpismo, somou-se à pressão internacional (principalmente dos EUA), permitindo que o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, ganhasse o apoio necessário para que a Justiça não ficasse mais sozinha na luta contra os autoritários. Ainda há riscos democráticos caso Bolsonaro vença e tente o plano Orbán de expandir os poderes presidenciais e aumentar o número de ministros do Supremo Tribunal Federal. Será preciso criar instrumentos de monitoramento, com suporte social amplo e diverso, para acompanhar e evitar que a democracia se quebre sem que haja um golpe de Estado clássico.
Mantida a institucionalidade democrático-liberal, serão necessários outros passos para reconstruir políticas públicas destruídas nos últimos anos e colocar o país nos trilhos do século XXI. Esse processo exigirá diagnósticos técnicos sólidos sobre os principais temas nacionais, pois o custo do amadorismo e do negacionismo científico já foi muito alto e tende a se intensificar com a competição internacional e com a complexificação dos problemas em todo o mundo. Nessa linha de solução, documentos vindos de diversas áreas e com grande qualidade apareceram nos últimos meses. Eles deveriam ser lidos e discutidos obrigatoriamente por todos os candidatos e pelas pessoas preocupadas em melhorar o país.
Um exemplo disso é o “Educação Já”,
documento preparado pelo Todos Pela Educação. Nele há um diagnóstico sistêmico
da política educacional, mostrando que não há uma bala de prata para resolver
as mazelas do ensino brasileiro e que, ao contrário, é preciso atuar em várias
frentes. Essa proposta não se baseia apenas em estudos e evidências empíricas
robustas. Ela se alimentou da experiência prática de um conjunto seleto de
gestores que conhecem as enormes dificuldades para fazer reformas e construir
políticas públicas efetivas. Assim, não basta saber o que fazer; é essencial
saber como fazer.
O “Educação Já” está sendo apresentado para
candidatos em todo o país e também será discutido com diversos setores sociais.
O debate educacional é urgente porque os estudos revelam o desastre recente do
país nessa área, com um retrocesso gigantesco durante a pandemia. O fato é que
o governo Bolsonaro não apenas escolheu mal os seus diversos e inexpressivos
ministros da Educação. O MEC, como estrutura de gestão, esteve trancado nos
últimos anos e deixou o país à deriva. O resultado disso é condenar uma geração
a ter menos oportunidades de vida, particularmente os mais pobres, e o país a
ter menos produtividade e pior cidadania no futuro.
Iniciativas como a do Todos Pela Educação
têm pipocado noutros setores e estão sendo apresentadas à sociedade e aos
políticos. Com certeza, é um processo essencial para que o Brasil adote um
caminho condizente com os desafios de nosso tempo. Porém, o alcance dessas
excelentes propostas pode ser bem menor, ou nem se efetivar, se não houver uma
mobilização ampla da sociedade em torno delas, gritando a todos, em praça
pública e com cobertura maciça da mídia, quais são as prioridades inadiáveis. E
aqui entra a ideia de expandir o modelo das recentes cartas em defesa da
democracia para alguns temas e ações centrais que nenhum governo pode
abandonar.
A primeira característica dessa forma de
mobilização social é dizer um “não” rotundo a certas práticas e ideias. São
coisas que devem ser feitas obrigatoriamente e, se não forem, a sociedade vai
às ruas, juntando da Febraban à UNE, da CUT à Fiesp. Claro que isso leva a ter
um acordo básico em relação a menos pontos que os documentos de especialistas,
que são mais detalhados e profundos. Mas, se houver o compromisso sobre o
básico, mais chances haverá de as propostas mais sistêmicas e bem elaboradas
serem adotadas em algum grau, provavelmente por um modelo incremental de
mudanças.
O básico é definir que não se pode escolher
um ministro da Educação sem experiência efetiva em políticas educacionais e que
não defenda a escola pública, pois é preciso defender as crianças e jovens em
situação mais vulnerável. Os últimos comandantes do MEC tinham horror à
população mais pobre. Outro exemplo: se o ministro do Meio Ambiente não tiver
um compromisso contra o desmatamento e pela proteção dos principais biomas, bem
como pela defesa do Ibama, é preciso ler uma carta contrária a ele por vários
dias até que seja demitido. Essa leitura deve ocorrer diariamente nos mais
variados locais: no Congresso Nacional, nas praias mais lotadas do país, na
Bolsa de Valores, no início de cada jogo do futebol brasileiro e nas
universidades antes de qualquer aula.
No fundo, só é possível fazer uma
mobilização social constante sobre poucos pontos. Eles devem ser acordados de
forma bem ampla, para serem defendidos por políticos de diversos partidos e por
muita gente com diferentes lugares na escala social. O espaço público,
presencial ou virtual, será mais ocupado pelo grito contra qualquer barbaridade
se não deixarmos que o essencial se torne banal.
Expandir o modelo de cartas mobilizadoras
da sociedade tem um outro ganho: mostrar que as eleições são o ponto de partida
da legitimidade política dos governantes, mas o processo democrático não pode
parar aí. É preciso ter alarmes de incêndio que acendam mais rápido a cada
decisão que fuja do mínimo indispensável para o país ser mais justo e
civilizado. Não é aceitável ter um presidente da Fundação Palmares que
cotidianamente coloque em questão a defesa dos direitos dos negros, fazendo
troça da enorme desigualdade racial que há no país, como se ele fosse um senhor
de engenho do século XIX. Não é possível ter um comandante da política cultural
que transforme seu ofício numa forma de desmoralizar a classe artística. É
inconcebível que a política ambiental seja liderada por quem quer acelerar o
desmatamento e não acredita na mudança climática. É o fim do mundo ter um
ministro do MEC que diga que nem todos podem ter o direito ao ensino superior,
condenando assim os mais pobres a demorarem mais gerações para terem uma vida
mais digna.
Em suma, não se pode ter gente no comando
do país que não acredite nos consensos básicos das políticas públicas. Isso é o
caminho para a barbárie, para a ridicularização do Brasil nos fóruns
internacionais e para o retrocesso para a realidade pré-Constituição de 1988,
quando efetivamente se garantiu que os brasileiros eram iguais entre si. Assim,
todos deveriam se importar com a democracia e a economia, mas não podem deixar
de lado o restante da ação governamental que é essencial para o desenvolvimento
mais amplo do país. O futuro de nossos filhos e netos será melhor se tivermos
refeições para todos, empregos e direito a voto, só que as pessoas querem mais
do que isso. Como diria a icônica música dos Titãs: “a gente não quer só
comida, a gente quer comida, diversão e arte”.
A escolha pelos temas dessas Cartas
mobilizadoras cabe à sociedade, a partir de um amplo debate e aproveitando o
momento eleitoral. O cardápio de problemas é grande, mas é possível pensar em
três questões essenciais para que o país tenha o mínimo indispensável ao
desenvolvimento justo e sustentável. O primeiro é o combate a todas as formas
de desigualdade (de renda, regional, racial e de gênero), principal empecilho
para sermos uma nação minimamente decente, utilizando-se de políticas sociais
bem geridas e voltadas a aumentar a equidade entre as pessoas e as famílias. O
segundo é a defesa da questão ambiental como o principal ativo do Brasil para
se produzir um novo ciclo de desenvolvimento, beneficiando as próximas gerações
e melhorando a posição geopolítica brasileira. E, por fim, deve-se reforçar a
tolerância e a diversidade como qualidades culturais e políticas que permitam o
respeito mútuo e façam com que convivamos com nossas divergências sem perder o
sentido comum de sermos brasileiros.
Os consensos básicos não apagam o fato de
que há mais de uma maneira de combater a desigualdade ou alcançar a
responsabilidade fiscal. Ademais, nem sempre sabemos de todas as soluções para
os problemas públicos, de maneira que só com avaliações, debates e aprendizado
com os erros nos tornamos mais capazes de avançar nas políticas públicas. De
todo modo, cartas mobilizadoras da sociedade que partam do mais prioritário
podem evitar que adotemos um caminho sem volta que nos afaste da resolução dos
desafios do século XXI. Defender as eleições foi o primeiro passo; agora urge
montar uma agenda mínima para gritarmos e evitarmos a criação de um país sem
futuro.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Apoiado,excelente artigo.
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