O Globo
Pela democracia, contra a tirania, o 11 de
Agosto de 2022 tornou-se marco da maior manifestação da sociedade organizada
brasileira desde o movimento das Diretas
‘Quero
falar de uma coisa...’ Quando Milton Nascimento pronunciou esse verso, na noite
do mesmo domingo em que Caetano Veloso completava 80 anos, todos na arena fomos
transportados a 1984. “Coração de estudante”, composição com Wagner Tiso, foi
tema da campanha Diretas Já, capítulo final de uma ditadura militar que legou
ao Brasil brutalidade, hiperinflação e um projeto de autocrata. Bituca iniciou
pelo Rio de Janeiro a turnê de despedida dos palcos. No primeiro show, em
junho, a canção não estava no repertório. Foi incluída no bis das apresentações
de agosto, finalizadas com punho erguido e o grito de “Viva a democracia” pelo
artista, outra joia nacional nascida em 1942.
Quem cantava chorou, porque nenhum brasileiro que veio ao mundo a partir da Nova República ou que, desde 1989, vota direta e regularmente para presidente, governador e prefeito, senador, deputado e vereador imaginava ter de gritar de novo por democracia. Com ataques sistemáticos e crescentes às urnas eletrônicas, ao sistema de votação, a autoridades eleitorais, Jair Bolsonaro nos empurrou quatro décadas para trás.
O amargor do retrocesso explica certa
tristeza no olhar de apoiadores da Carta às Brasileiras e aos Brasileiros. Ao
mesmo tempo, há o brilho escancarado de estar — de novo, e sempre — do lado
certo da História. Pela democracia, contra a tirania, o 11 de Agosto de 2022
tornou-se marco da maior manifestação da sociedade organizada brasileira desde
o movimento das Diretas. A gota d’água foi o presidente reunir na residência
oficial, o Palácio da Alvorada, representantes da diplomacia internacional para
atacar o sistema eleitoral que a ele rendeu, além do comando da nação, sete
mandatos como deputado.
Com a memória do texto de repúdio à
ditadura lido pelo professor Goffredo da Silva Telles Júnior no pátio da
Faculdade de Direito da USP em 1977, e ciente das ameaças que hoje rondam a
democracia, um
grupo de juristas decidiu elaborar a Carta de 2022. Esperavam não mais de 500
assinaturas. Ontem, passavam de 975 mil signatários, incluindo
presidenciáveis, professores, economistas, banqueiros, artistas, escritores,
desempregados, militares, policiais. Mais de uma centena de organizações
empresariais, centrais sindicais e ONGs subscreveram manifesto liderado pela
Fiesp.
A adesão de pessoas físicas e jurídicas do
PIB brasileiro sugere que estabilidade democrática é também ativo no mundo dos
negócios. Há mais evidências de apreço ao regime e ao sistema eleitoral. É
recorde, 156 milhões, o total de eleitores em 2022. Grupos para quem a votação
é facultativa também se habilitaram ao pleito de outubro em escala inédita: 2,1
milhões de jovens de 16 e 17 anos, quase 15 milhões de idosos com 70 ou mais de
idade. Na pesquisa Datafolha de julho, 79% dos brasileiros diziam confiar nas
urnas eletrônicas, seis pontos percentuais acima da consulta de maio.
Na onda de assinaturas, cantoras e
cantores, atrizes e atores emprestaram imagem e voz a um vídeo com a íntegra da
Carta lida ontem no Largo São Francisco, na capital paulista. Participaram
tanto os que viveram tempos de exceção e sabem do arbítrio, quanto quem nasceu
em décadas recentes e valoriza a liberdade: de Fernanda Montenegro, 92 anos, a
Luísa Sonza, 24. Diferentes gerações da cultura brasileira irmanadas na defesa
intransigente da democracia.
A Carta da USP nasceu da urgência de a
sociedade brasileira se levantar, de forma maiúscula, inequívoca, contra o
golpismo do presidente da República. Foi o ponto de convergência, o pacto de
brasileiros que pensam diferente, votam diferente, vivem diferente. O ato na
USP deixou claro que democracia é o regime que nos representa, mas há outros
quereres. Beatriz Lourenço, representante da Coalizão Negra por Direitos, leu o
manifesto que a articulação de mais de duas centenas de organizações, coletivos
e entidades do movimento negro publicou em junho de 2020, primeiro ano de
pandemia, quando Bolsonaro e seu grupo deram início aos ataques. “Enquanto
houver racismo, não haverá democracia”, destacou.
Neca Setubal, socióloga, acionista do Itaú,
articuladora da carta assinada por Fiesp e Febraban, lembrou a proteção ao meio
ambiente. Bruna Brelaz discursou como primeira negra e amazônida a se tornar
presidente da UNE. A professora Eunice de Jesus Prudente, uma das escolhidas
para ler a Carta, emocionou ao se descrever como mulher preta, de religião de
matriz africana, vestida de amarelo, cor de Oxum. Acenou à liberdade religiosa
na semana em que a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, evangélica, compartilhou
em rede social conteúdo de intolerância.
Veio da jovem Manuela Morais, 19 anos,
estudante de Direito, presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, a fala mais
visceral, comovente, precisa. Negra, ela falou por seus pares: jovens negros
periféricos. Citou estudantes da USP que tombaram no enfrentamento à ditadura:
Arno Preis, Henrique Cintra Ferreira, Wânio José de Mattos, João Leonardo da
Silva Rocha, Alexandre Vannucchi Leme. Lembrou brasileiros que o Estado
Democrático não salvou: o menino João Pedro, alvo da violência policial; Chico
Mendes, Dom Phillips e Bruno Pereira, da brutalidade contra defensores dos
direitos humanos; Marielle Franco, vítima de feminicídio político.
“Queremos a antítese da democracia que
temos hoje, em outros termos, a democracia da diversidade, a democracia dos
trabalhadores, uma democracia real. Queremos a democracia dos povos”, disse. Ao
fim, convocou os estudantes: “Estejam em alerta, preparados e fortes”.
Coração, juventude e fé.
Milton Nascimento,um gigante da nossa música.
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