Folha de S. Paulo
O processo eleitoral promete muita ameaça e
pouco debate
A disputa eleitoral se
anuncia como confronto embalado por intimidações e tambores. Existe o receio de
que os disparates não fiquem restritos às palavras de ordem.
Nos dias que se seguiram ao 7
de Setembro do ano passado, ocorreram ameaças de bloqueios de estrada
e esboços de manifestações violentas. Houve quem temesse o descontrole. Naquele
momento, o STF (Supremo
Tribunal Federal) declarou, com sua autoridade constitucional, que não
compactuaria com a ruptura. Foi eficaz.
Desde então, o Judiciário tem
sido conivente com a ruptura de práticas institucionais que garantem a
concorrência eleitoral. Parlamentares aprovam gastos
públicos insustentáveis para beneficiar suas paróquias nos meses que
antecedem as eleições.
Em países desenvolvidos, as Forças Armadas
ficam à margem da deliberação dos processos eleitorais. Elas têm acesso a
instrumentos de coerção e por isso devem se submeter aos poderes civis, que
foram eleitos. Militares são pagos para proteger fronteiras, não para se ocupar
de urnas eletrônicas.
O mesmo vale para forças policiais. Elas
são zeladoras do bem comum, não seus síndicos. Cabe-lhes obedecer às ordens,
não ditá-las, muito menos delimitar a escolha de seus chefes, com propõe
projeto de lei no Congresso.
O STF de setembro de 2021 não se parece com o STF dos últimos meses. O orçamento secreto continua secreto. Os fundos eleitoral e partidário permanecem instrumentos de poucos mandantes. As denúncias de malfeitos com verbas públicas não têm maiores consequências. E, em meio a todas as dificuldades econômicas que vive a população, o STF se autoconcede um reajuste salarial de dois dígitos.
O Legislativo de 2022, por sua vez,
continua sua obra de usurpar funções do Executivo. Congressistas determinam a
servidores que executem gastos para atender a interesses paroquiais, pois são
"emendas impositivas" ou parte do acordo do que cabe às emendas do
relator. A PEC Kamikaze atropelou o rito do Legislativo e princípios básicos do
processo eleitoral.
As campanhas pouco
discutem como enfrentar esses temas. Governo e parlamentares são sócios das
verbas que privilegiam os congressistas e aliados das cúpulas partidárias em
detrimento dos demais. O governo descobriu o "teto retrátil". A
oposição com mandato igualmente se beneficia das emendas e do fundo eleitoral.
Existes diferenças relevantes. Os
apoiadores do governo preocupam pela brutalidade e reiteradas ameaças às
instituições. A principal oposição, por outro lado, aceita as regras
elementares da democracia. Mas há também semelhanças perturbadoras.
As seguidas intervenções nas agências
reguladoras começaram há duas décadas. Houve a ameaça de expulsão de um
jornalista estrangeiro e os pedidos de demissão de analistas do setor privado
que criticavam o governo.
Refugiados cubanos pediram exílio, mas
foram deportados. Houve complacência com regimes autoritários, como o da Venezuela. O
valor fundamental da democracia, que agora se utiliza para congregar a
oposição, não era tão relevante naquele momento.
A troca de favores com os grupos de
interesse e o fortalecimento dos partidos do centrão passaram a liderar a
política há mais de uma década. A Lava
Jato atropelou o Estado de Direito. O mesmo fez, contudo, a corrupção
disseminada que a antecedeu.
FHC transmitiu uma faixa presidencial e um
legado de instituições de Estado, com procedimentos para administrar conflitos,
como a Lei de Responsabilidade Fiscal ou as agências reguladoras.
Seus sucessores, contudo, legaram uma
economia corroída pela distribuição de subsídios e de favores ao setor privado.
Houve uma paulatina fragilização dos procedimentos de controles cruzados da
política pública. No começo da década passada, o governo se utilizou de
inúmeros artifícios para mascarar as suas contas e promover gastos
insustentáveis.
O presidente aparenta preferir não
participar de debates. O mesmo ocorre com seu oponente. Ambos defendem medidas
similares em diversos temas, como no controle de preços dos combustíveis. Os
partidos governistas e da oposição são cúmplices na banalização das emendas à
Constituição.
Tudo indica que a economia continuará
estagnada nos próximos anos. As distorções microeconômicas, decorrentes de
intervenções públicas mal desenhadas, prejudicam o aumento da produtividade e
da renda. O descontrole fiscal foi camuflado pela inflação elevada, talvez a
forma mais perversa de ajustar as contas públicas.
A evidência aponta que parte relevante da
pobreza de muitos países decorre do desenho e da gestão das políticas sociais e
da proteção de empresas ineficientes. Vale ler o livro "Making Social
Spending Work", de Peter Lindert, e o artigo "The Facts of Economic
Growth", de Chad Jones. No entanto, a campanha avança como se bastassem o
voluntarismo e a intenção para superar nossos problemas.
A política importa, mas a técnica também. O
detalhamento da gestão pública, seja no desenho de programas de transferência
de renda, seja na complexa relação com o setor privado, requer cuidado técnico,
governança e análise da evidência. Intervenções tecnicamente mal concebidas têm
efeitos colaterais inversos aos pretendidos.
O Estado de Direito se fortalece com a
garantia ao contraditório e o sistema de freios e contrapesos para a gestão
pública. Não se tratam de temas abstratos. Eles se desdobram nas práticas do
governo em países desenvolvidos, como a não retaliação da imprensa que o
critica, por mais injusta que seja, e o não favorecimento daquela que o apoia.
As democracias maduras construíram
mecanismos que limitam a discricionaridade da gestão pública para favorecer
grupos de interesse pelo receio de corrupção. Existe outro risco. Políticas
baseadas em subsídios muitas vezes fracassam em seus objetivos. Entretanto,
elas criam castas que se beneficiam desses privilégios e que se entrincheiram
para evitar sua remoção (Mancur Olson, "The Logic of Collective
Action").
Gestores, públicos e privados, costumam
esconder seus fracassos ou malfeitos. Por vezes, adotam medidas oportunistas,
com benefícios imediatos em troca de custos bem mais altos no futuro. Daí a
importância de uma governança, incluindo agências reguladoras, com mandato e
alçadas, que garanta a transparência dos procedimentos e a avaliação dos
resultados.
Nas últimas duas décadas, fomos na
contramão dessa agenda e assistimos à fragilização das regras e das
instituições de controle. O resultado foi a maior captura da política pública
por grupos de interesse, tornando, por exemplo, ainda mais complexo o sistema
tributário e a multiplicidade de benefícios concedidos.
O discurso eleitoral se omite sobre nossos
problemas, inclusive muitos que fragilizam as práticas e instituições da
democracia. Haverá compromissos públicos para garantir que desta vez será
diferente, ou teremos apenas mais do mesmo que nos trouxe até aqui?
*Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.
Perfeito.
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