sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Maria Cristina Fernandes - O principal cabo eleitoral de Bolsonaro

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Presidente precisa camuflar facetas do governo. Este é o papel de Michelle, tirar o foco do essencial. Pesquisa revela que primeira-dama influencia positivamente 29% dos eleitores do presidente

 “Geralmente as pessoas mais importantes é que falam por último. A pessoa mais importante deste momento não é o presidente da República, não é o candidato, é a senhora Michelle Bolsonaro”. O presidente da República poucas vezes esteve tão próximo da verdade quanto ao discursar no início oficial de sua campanha, em Juiz de Fora, no dia 16 de agosto. “Que Deus dê sabedoria e discernimento ao nosso povo brasileiro, para que não entregue o nosso país, a nossa nação tão amada por Deus, na mão dos nossos inimigos”, disse uma ovacionada primeira-dama.

Os dois únicos presidentes casados a disputar uma reeleição, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, tiveram as companhias diametralmente opostas, mas igualmente discretas, de Ruth Cardoso e Marisa Letícia. O que estava em jogo, tanto em 1998 quanto em 2006, era o julgamento do eleitor sobre seus mandatos. Se Bolsonaro colocou sua mulher para magnetizar seu palanque é justamente para conseguir o inverso. Tirar do foco do eleitor o que o governo fez. Por isso não exagera ao sublinhar sua importância.

Na primeira pesquisa destinada a aquilatar a importância da primeira-dama para a disputa eleitoral, feita com exclusividade para o Valor, a Quaest colheu que 34% dos eleitores têm uma imagem positiva da primeira-dama e 10%, de Rosângela Silva, mulher de Lula. Entre os evangélicos, os que avaliam positivamente a imagem de Michelle chega a 52% (27% entre os católicos). Entre os eleitores de Bolsonaro, a primeira-dama influencia positivamente o voto de 29%.

Quando Michelle surgiu no dia 24 de julho de macacão longo de seda verde para hipnotizar um Maracanãzinho semilotado, não seria a primeira vez que a disputa eleitoral seria definida como uma luta do bem contra o mal. Em 2018, Jair Bolsonaro valeu-se fartamente dos arautos evangélicos. Agora emerge uma primeira-dama, num papel misto de dona de casa e pastora, capaz de colocar “Paulinho Gogó” e a “luta contra potestades e principados” numa mesma oração.

Sai a condução criminosa da pandemia, entra a busca pela reeleição “por um propósito de libertação, de cura para nosso país”. Sai a liberalização irresponsável de armas, entra o homem “meio sem noção com o celular”. Sai o golpista inveterado, entra o presidente que é guiado pelo divino para ocupar a cadeira que era do demônio. É com expressões como “feliz é a nação cujo Deus é o senhor” ou “o senhor tem o controle de todas as coisas”, além do verbo no imperativo (“Jair Messias Bolsonaro, sê forte e corajoso”), que Michelle “normaliza” o marido, o “perdoa” e convoca o eleitor que o rejeita a fazer o mesmo.

Professora na Universidade Federal de São Paulo, Esther Solano tem conduzido pesquisas qualitativas com evangélicos que votaram em Bolsonaro em 2018, se desiludiram e hoje estão indecisos entre reprisar o voto ou migrar para Lula. Tem colhido, nesses grupos, um reconhecimento cada vez maior sobre o papel de uma primeira-dama que passou a discursar nos eventos públicos e tem uma agenda própria, como na madrugada em que reuniu evangélicos para orar no gabinete presidencial.

Reconhece, na percepção sobre a primeira-dama, três características a ela imputadas: é uma evangélica legítima, ao contrário do marido, que posou num batismo no rio Jordão ao se filiar ao PSC, em 2016, mas nunca se disse convertido. O carimbo evangélico é reconhecido no léxico, que usa com espontaneidade. A segunda característica atribuída à primeira- dama é a suavidade, que adoça a virulência do marido.

E, finalmente, a terceira característica de Michelle a aparecer nessas entrevistas é o protagonismo feminino num universo político dominado por homens. Nos comentários colhidos por Solano, Michelle trafega entre os princípios evangélicos da demonização e os da compaixão e cuidado com a família, passando pelo empoderamento feminino destinado a mostrar que Bolsonaro não se limita a ver a mulher como fruto de uma fraquejada.

A entrada de Michelle na campanha inundou as redes sociais. Entre junho e julho, quando a primeira-dama estreou com o discurso no Maracanãzinho, as visualizações de vídeos a ela relacionados mais do que duplicaram por parte de usuários com perfil de direita no YouTube. Em levantamento, a pesquisadora Letícia Capone, da PUC do Rio, a visualização de vídeos de conteúdo jornalístico cujo tema é a primeira-dama multiplicou-se por 26.

Uma semana depois, o tom prosseguiu na convenção que sacramentou a candidatura do ex-ministro da infraestrutura, Tarcísio Freitas, em São Paulo. Na ocasião, Michelle voltou a atuar como pastora da cerimônia, subvertendo a tradição clerical do pentecostalismo de dominância masculina. “Tarcisão do asfalto”, como o chamou, caiu em prantos depois da bênção da primeira-dama - “Gente, o homem chora, que lindo”.

A consultoria Bites identificou, nos últimos 30 dias, a conquista de 160 mil novos seguidores no perfil da primeira-dama no Instagram nos últimos 30 dias, o que é mais do que a soma do que Simone Tebet (MDB) e Ciro Gomes (PDT) arrebanharam no período em quatro redes sociais (Twitter, Facebook, Instagram e YouTube). Na taxa de engajamento, Michelle chega a superar Lula.

O sucesso da estreia transbordou a autoconfiança da primeira-dama e provocou seus dois primeiros tropeços. O primeiro, quando acompanhou Bolsonaro na Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte, na qual Guilherme de Pádua é pastor, e posou abraçada à mulher do assassino confesso da atriz Daniella Perez.

O segundo tropeço aconteceu quando compartilhou vídeo em que Lula recebe um banho de pipoca, ritual de purificação do candomblé, numa visita à Assembleia Legislativa da Bahia. Michelle, ecoando preconceitos seculares de evangélicos com religiões de matriz africana, comentou no vídeo: “Isso pode, né! Eu falar de Deus, não”.

A campanha correu atrás do prejuízo com o perfil de Michelle no Instagram respondendo a uma homenagem da dramaturga Gloria Perez à filha com um emoji de choro e outro de coração. Àquela altura, porém, toda a família Bolsonaro já tinha se incorporado ao esforço de desfazer, nas redes, a imagem de uma primeira-dama que, depois de tanto espantar o demônio do Palácio do Planalto, tinha ido ao seu encontro na igreja de BH.

Os deslizes aumentaram a reação crítica nas redes. Até o dia 10 de agosto, Leticia Capone constatou que as visualizações de conteúdos relacionados a Michelle por perfis relacionados à esquerda no YouTube já tinham sido 55% superiores à totalidade daquelas registradas no mês anterior. A reação da oposição foi puxada pelo tuíte de Rosângela Silva: “Aprendi que Deus é sinônimo de amor, compaixão e, sobretudo, de paz e de respeito. Não importa qual a religião e qual o credo”. Lula, porém, concluiu que a parada é para ele. “Se tem alguém possuído pelo demônio, é Bolsonaro”, disse em São Bernardo do Campo.

A quase totalidade das críticas a Michelle nas redes é uma reação à sua entrada na campanha. É quase nula a exploração sobre fatos pregressos, a começar pelos cheques totalizando R$ 89 mil do ex-assessor Fabrício Queiroz na sua conta.

Corroborou para isso a decisão do Supremo Tribunal Federal, por dez votos a um (Edson Fachin), de arquivar, em julho de 2021, a ação relativa aos cheques. Os ministros seguiram o relator, Marco Aurélio Mello, que recusou o foro, não os indícios: “A rigor, a notícia da prática criminosa deveria ser dada ou à autoridade policial ou ao Ministério Público Federal, titular de uma possível ação penal pública incondicionada. Mas parece que repercute mais vir ao Supremo”.

O caso dos cheques não aparece nos grupos evangélicos monitorados por Esther. São pessoas que se informam em redes controladas pelas igrejas. Quando alguém se lembra da história, a retomada do tema aparece como uma perseguição contra a primeira-dama.

Sua entrada na campanha no papel de pastora reforça a blindagem. De Bolsonaro e de si mesma. Aos 40 anos, trabalhou como modelo, secretária parlamentar e tradutora de libras antes de se tornar a terceira mulher do presidente, com quem tem uma filha, Laura, de 12 anos. Também é mãe de Letícia Marianna, 19 anos, filha de um relacionamento com Marcos Santos da Silva. Os divórcios de cada um não colidem com a pregação conservadora porque, na percepção dos grupos acompanhados, o que importa é que ambos defendem a família evangélica.

O perfil de pastora incorporado por Michelle também a blinda da exploração sobre sua família. O assunto está ausente das redes sociais, mas já foi fartamente explorado por “Veja”, “Metrópoles” e pela “Folha de S. Paulo”. Em resumo, trata-se de uma família egressa de uma comunidade de Ceilândia, cidade-satélite do Distrito Federal, que acumula uma prisão por tráfico de drogas da avó da primeira-dama, morta em 2020 por complicações da covid-19, depois de perambular por hospitais públicos; um indiciamento, por falsidade ideológica, da mãe; e a prisão de dois tios maternos.

Um foi denunciado por duas sobrinhas e condenado a 14 anos de prisão por estupro. O outro, um dos poucos familiares presentes à posse, foi condenado a dez anos de prisão por grilagem de terras em Ceilândia. Na única vez que falou sobre a história, Bolsonaro não negou as informações, mas disse que ela ficou “abatida e arrasada”. Sua entrada em cena como pastora associa sua filiação evangélica a uma história de superação pessoal.

Se o passado de Michelle se manterá blindado, o mesmo não se pode dizer dos deslizes que protagoniza no presente. A sustentação desse conto de fadas já trincou em duas oportunidades o preconceito contra as religiões de matriz africana e a associação com um assassino confesso. Se os deslizes contêm o avanço de Bolsonaro sobre o eleitorado feminino de outras religiões, parece ter cumprido parte do objetivo a que se destina a modelagem de Michelle: evitar a reconversão em peso das mulheres evangélicas ao candidato que elegeram Lula em 2002 e 2006.

Um comentário:

  1. Michelle ainda não explicou a origem daquele cheque,e até ela é largada do primeiro marido,não sabia.Família tradicional estranha,não?

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