domingo, 4 de setembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

Urge repudiar e combater a violência política

O Globo

Atentado contra Cristina Kirchner traz preocupação a todo país em que cresce a polarização — como o Brasil

Pelas investigações que vieram a público até o momento, tudo leva a crer que a tentativa de assassinato da vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, tenha sido ato isolado de um brasileiro radicado em Buenos Aires, que nutria simpatias por ideologias de extrema direita. Felizmente, ela sobreviveu ilesa. Mas isso não significa que o atentado não tenha surtido efeito. Numa sociedade polarizada como a argentina, atos dessa magnitude contribuem para acirrar os ânimos.

Foi o que se viu nas manifestações que tomaram as ruas de Buenos Aires e na reação da classe política — sobretudo dos peronistas, preocupados em tirar proveito do ataque atribuindo a responsabilidade aos adversários ideológicos, à imprensa e a outros bodes expiatórios, e não ao autor do crime. É uma atitude que só agrava o clima de ódio e aumenta o risco de novos atos violentos.

A preocupação com a violência política não se restringe à Argentina. Como argumenta o colunista do GLOBO Pablo Ortellado, ela precisa se estender a toda sociedade com polarização crescente. É o caso do Brasil, que também foi palco recente de atentados de motivação política. Felizmente também foram atos isolados, segundo as autoridades, o ataque ao presidente Jair Bolsonaro em Juiz de Fora na campanha de 2018 e o assassinato de um tesoureiro petista em Foz do Iguaçu neste ano. Mas é preciso fazer o possível para que tais episódios não evoluam para a violência organizada.

É certo que não há guerrilhas nem organizações terroristas em operação no território nacional. O país enfrenta, porém, vários grupos armados com interesses políticos nítidos, como as facções criminosas que operam nos presídios ou as milícias cariocas, sobre as quais recai a suspeita de envolvimento no assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista em 2018 (cujos mandantes até hoje não foram descobertos).

Parece evidente, também, que o incentivo ao armamento da população pelo governo Bolsonaro amplia o risco de confrontos violentos. Divergências políticas que outrora se restringiam a discussões inconsequentes de botequim têm com frequência evoluído para vias de fato, fraturando famílias, grupos de amigos e colegas de trabalho. A situação chegou a tal ponto que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) teve de proibir o porte de armas nos locais de votação, para evitar o pior.

Toda violência precisa ser repudiada, não importa de onde venha. O que distingue a civilização da barbárie é a resolução pacífica dos conflitos. É fundamental, sobretudo, que os políticos tenham a sabedoria de não transformar seus adversários (que desejam derrotar) em inimigos (que gostariam de eliminar), de não substituir a rivalidade saudável (intrínseca a qualquer competição) pelo ódio cego e irracional (que nada traz de bom). É um recado que vale para os peronistas e oposicionistas argentinos, para os trumpistas e democratas americanos, para os petistas e bolsonaristas brasileiros — e para qualquer outro grupo político.

É inaceitável a intolerância contra as religiões de matriz africana

O Globo

Primeiro semestre registrou 46% mais denúncias que 2021. Autoridades têm de garantir liberdade de crença

É inaceitável qualquer intolerância religiosa, mais ainda quando vem contaminada pelo racismo, como ocorre nos ataques aos cultos de matriz africana. No primeiro semestre, houve 383 denúncias de intolerância religiosa ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 45,6% a mais que as 263 queixas no mesmo período do ano passado. No mundo digital, a Central de Denúncias da SaferNet somou 2.813 casos, também de janeiro a junho, crescimento de 654,1% em relação a 2021. Direito gravado na Constituição, a liberdade de consciência e de crença precisa ser garantida pelas autoridades. Elas têm o dever de não deixar as denúncias se esgotarem em meros registros nas delegacias policiais.

A maioria das denúncias recentes se concentra em ataques a terreiros de umbanda e candomblé. Só neste primeiro semestre, houve 81 no Rio de Janeiro, 63 em São Paulo e 29 em Minas Gerais. A perseguição a tais cultos, com frequência por parte de certas correntes evangélicas, não pode ser tratada como aceitável num país onde mais de 55% dos habitantes se declaram pretos ou pardos. A cultura e as crenças dos descendentes de africanos escravizados se misturam às de outras etnias para compor a sociedade brasileira, onde não pode haver lugar para perseguição religiosa ou de qualquer tipo.

Dificuldades práticas precisam ser superadas, como revelou reportagem do GLOBO. Numa noite de janeiro, em Vitória da Conquista, Bahia, no terreiro de candomblé Ìlé Alaketú Asé Omí T’Ogun, onde 30 fiéis celebravam um rito religioso, um carro com o volume da aparelhagem de som no máximo parou na entrada proferindo frases como: “Jesus salva”, “Jesus liberta”, “Jesus transforma”. Foi uma agressão sem sentido a uma prática religiosa que tem de ser respeitada.

A cerimônia foi suspensa, e a polícia chamada. Quando chegou, o carro de som havia ido embora. Foi aberto um inquérito pela Polícia Civil da Bahia. Pouco aconteceu desde janeiro. Uma carta precatória foi enviada à comarca de Mata Verde, em Minas, onde mora o suspeito do ataque, para que ele seja ouvido. Não houve retorno. É quase certo o engavetamento do inquérito.

A impunidade estimula novas agressões, que tendem a ficar mais violentas diante da passividade do poder público. No Rio de Janeiro, ataque semelhante atingiu em junho o terreiro de candomblé Inzo Ngunzu ia Makulundu Kavungo. Um casal de vizinhos pôs músicas em volume alto, enquanto gritava que o culto era “magia negra”. A mãe de santo Ana Privat, chamada nos cultos de Mam’etu Kavunjenan, que já havia sido vítima do preconceito contra religiões de matriz africana em 2017, diz que só se sente segura nas grandes celebrações do candomblé com a Polícia Militar na porta.

Já passou da hora de uma ação mais firme das autoridades e de campanhas de esclarecimento para promover o respeito à fé alheia. A tolerância com todas as religiões é uma característica que distingue sociedades democráticas modernas das submetidas ao tacão do autoritarismo e do arbítrio.

Velhas suspeitas

Folha de S. Paulo

Bolsonaro usa corrupção contra Lula, porém não esclarece compras de imóveis

Transações financeiras duvidosas assombram Jair Bolsonaro (PL) desde a campanha de 2018, quando se detectaram os primeiros sinais de que havia algo esquisito nas contas de Fabrício Queiroz, o ex-policial que virou uma espécie de faz-tudo da sua família.

Sabe-se desde aquela época que o hoje presidente e seus filhos multiplicaram o patrimônio pessoal enquanto avançavam em suas carreiras políticas, adquirindo 13 imóveis somente no Rio de Janeiro, de acordo com levantamentos feitos então pela Folha.

Nova apuração divulgada pelo UOL, com 107 negócios realizados por 12 membros da família em São Paulo, Rio e Brasília, sugere que metade das transações foi fechada com dinheiro vivo. O valor atualizado dos pagamentos em espécie alcançaria R$ 26 milhões.

Algumas das aquisições mais vistosas causaram estranheza recentemente, como a compra de uma mansão em Brasília por uma das ex-mulheres de Bolsonaro e de outra por seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).

Apesar do acúmulo de evidências embaraçosas, o presidente da República e seus familiares pouco oferecem para desfazer as desconfianças —e agem o tempo todo para atrapalhar os investigadores e evitar esclarecimentos.

Bolsonaro deu de ombros diante das novas revelações, lembrando que não é ilegal comprar imóveis com dinheiro vivo. É verdade, mas ele nunca declarou possuir recursos em espécie, e até outro dia dizia que pagava suas transações com transferências bancárias.

Ao reavivar velhas suspeitas a um mês do primeiro turno das eleições, o levantamento atingiu a credibilidade do mandatário justamente quando ele se empenhava em fazer acusações contra seu maior adversário na corrida eleitoral, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Como se viu no debate presidencial de domingo (28), a estratégia abalou o petista, que titubeou com respostas evasivas ao ser questionado sobre a corrupção na Petrobras e outros escândalos que marcaram sua administração.

As pesquisas de opinião mostram que o interesse dos eleitores pelo assunto é muito menor hoje do que na campanha de 2018, quando Lula estava preso em Curitiba e Bolsonaro prometia moralização.

Ainda assim, é lamentável que os candidatos à frente da disputa presidencial prefiram tergiversar quando se tornam alvo de suspeitas e só lembrem que o problema existe quando atacam o rival.

Seria melhor que oferecessem explicações para o que fizeram e propostas para combater futuros desvios de forma eficaz.

Bolsonaro enfraqueceu os órgãos de controle em seu governo. Lula buscou fortalecê-los como presidente, mas agora prefere a dubiedade em vez de assumir compromissos com a independência dos investigadores. É um mau sinal.

Ventos do Sudeste

Folha de S. Paulo

Disputas em SP, RJ e MG parecem descoladas da corrida presidencial, no Datafolha

Com as campanhas nas ruas e a propaganda partidária em cena, as pesquisas revelam novos movimentos nas disputas eleitorais. A mais recente sondagem do Datafolha registrou situações dignas de nota nos maiores colégios eleitorais do país, na região Sudeste.

Em Minas, onde não há candidaturas competitivas de esquerda, o governador Romeu Zema (Novo) tem 52% das intenções de voto, ante 22% de seu rival mais próximo, Alexandre Kalil (PSD).

Zema conta com o apoio do presidente Jair Bolsonaro (PL), enquanto Luiz Inácio Lula da Silva (PT) declara simpatias a Kalil.

As intenções de voto no estado, que sugerem possível vitória no primeiro turno, contrastam com os números da corrida presencial —entre os mineiros, Lula lidera por 47% a 30% a disputa com o atual presidente da República.

No Rio, Cláudio Castro (PL), que também é o incumbente, aparece à frente de Marcelo Freixo (PSB), o preferido de Lula. A distância entre os dois —31% a 26%— é numericamente expressiva, mas pode ser considerada como empate técnico, uma vez que a margem de erro é de três pontos percentuais para cima ou para baixo.

Castro, que concentra o voto bolsonarista, era vice na chapa de Wilson Witzel e assumiu o governo em agosto de 2020, após o impeachment do titular. No Rio, Lula tem 42% das intenções, contra 32% de Bolsonaro —Freixo, portanto, está aquém do seu aliado petista.

Em São Paulo, o quadro é mais complexo. O governador Rodrigo Garcia (PSDB), que substitui João Doria desde abril passado, mostrou algum crescimento na última pesquisa (passou de 11% a 15%), mas, diferentemente de Zema e Castro, não lidera na pesquisa.

É sintomático que até aqui o principal embate em São Paulo se dê entre o ex-prefeito Fernando Haddad (PT), com 35%, e Tarcísio de Freitas (Republicanos), com 21%. Tarcísio conta com firme apoio de Bolsonaro, de quem foi ministro. No Datafolha, demonstrou crescimento em relação à pesquisa anterior, quando estava em 16%.

Lula tem a preferência dos paulistas, mas a vantagem sobre Bolsonaro, agora de 40% a 35%, vem se estreitando. Nada, obviamente, permite vaticínios definitivos, mas no Sudeste as disputas estaduais parecem descoladas da nacional.

 A opção pela ignorância

O Estado de S. Paulo

Como havia desacreditado pesquisas sobre desmatamento e desemprego, Bolsonaro diz que não há fome no Brasil; nenhum governo toma decisões corretas ao escolher ignorar a realidade

Para ser eficiente, um governo precisa de informações de qualidade. É impossível que um presidente da República tenha domínio sobre todos os temas que lhe cabe tratar, mas um bom presidente é aquele que, antes de tomar decisões, especialmente sobre assuntos que desconhece, se esforça para se inteirar dos dados mais confiáveis. Se, contudo, um presidente escolhe deliberadamente ignorar as informações qualificadas a respeito dos problemas graves do País, baseando suas decisões no que seus seguidores dizem nas redes sociais em detrimento da opinião de especialistas e no trabalho de pesquisadores, o resultado é uma administração caótica – e nociva para a população.

Quando o presidente Jair Bolsonaro diz, por exemplo, que “fome para valer não existe (no Brasil) da forma como é falado”, sinaliza que escolheu a ignorância. Abundam informações segundo as quais a fome não apenas existe “para valer” no Brasil, como atinge brasileiros na casa dos milhões. Há alguns dias, neste espaço, destacamos o caso intolerável de um menino de 11 anos que ligou para a polícia pedindo socorro porque sua família estava havia três dias sem comer (ver o editorial Vergonha brasileira, de 23/8).

O episódio dessa criança é o lado humano de uma tragédia fartamente documentada em estatísticas, que deveriam orientar o governo na adoção de medidas urgentes para mitigar o problema. Tendo em vista, no entanto, que o presidente escolheu não levar em conta esses dados, a julgar por sua declaração, é improvável que o governo atue de maneira correta e célere. Norteado apenas por pesquisas eleitorais, o governo atropelou regras fiscais para distribuir dinheiro aos mais pobres, mas sem critérios claros nem preocupação específica com a insegurança alimentar.

Esse é apenas o caso mais recente a comprovar os efeitos deletérios do apedeutismo militante do governo Bolsonaro. Recorde-se que, no auge da pandemia de covid-19, por exemplo, o presidente trocou vários ministros da Saúde até que encontrasse um que defendesse as teses estapafúrdias defendidas nas redes sociais bolsonaristas a respeito da alegada eficácia de “tratamentos precoces” e da suposta ineficácia das vacinas.

Para a Procuradoria-Geral da República (PGR), Bolsonaro “acreditava sinceramente” no tal tratamento precoce e, por isso, não poderia ser qualificado como “charlatão”, como pretendia a CPI que investigou a atuação do governo na pandemia. Segundo a PGR, o tratamento foi “defendido por inúmeros profissionais da área médica” e, por isso, Bolsonaro não tinha como saber que era ineficaz. O que a PGR não disse é que Bolsonaro demitiu ministros da Saúde que lhe disseram que o tratamento era ineficaz – isto é, que Bolsonaro optou por estimular a população a acreditar que havia remédios eficazes contra a covid quando já tinha informações segundo as quais esses remédios não tinham efeito e que poderiam inclusive pôr em risco a saúde de quem os tomasse.

Esse elogio à ignorância talvez seja a marca mais relevante desse governo. Em 2019, poucos meses depois de tomar posse, por exemplo, Bolsonaro disse que os números sobre o avanço do desmatamento divulgados pelo Inpe não eram “condizentes com a verdade” e demitiu o diretor do instituto, reconhecido internacionalmente por sua competência.

Em 2020, quando a pandemia acelerava, o Ministério da Saúde, depois de críticas de Bolsonaro a respeito de supostos exageros na contabilidade de contaminados e mortos pelo coronavírus, decidiu alterar a divulgação dos números, tornando-os menos confiáveis ou inteiramente inúteis. Essa atitude levou vários veículos de imprensa, entre os quais este jornal, a se juntar em um consórcio cujo objetivo era coletar esses dados diretamente dos Estados.

Em 2021, depois da divulgação de números ruins sobre o emprego, o presidente Bolsonaro, em vez de admitir o problema e propor soluções, preferiu desacreditar o IBGE, que produziu a informação. Para Bolsonaro, o número do desemprego aumentou “por causa da metodologia” do instituto.

Os exemplos são muitos e indicam um padrão: Bolsonaro não gosta da realidade quando esta contraria seus devaneios ou prejudica seus interesses. Nenhum governo toma decisões corretas quando é dominado pela fabulação. 

Eleição é tempo de paz e civismo

O Estado de S. Paulo

O TSE tem atuado bem pela garantia da normalidade do processo. Cármen Lúcia bem disse: eleitores ‘precisam de sossego’

A campanha eleitoral de 2022 tem sido marcada por um clima de tensão exacerbada entre os apoiadores dos dois candidatos que ora lideram as pesquisas de intenção de voto para a Presidência da República, o petista Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro.

Lamentavelmente, esse antagonismo em patamar muito acima do que é aceitável – e até esperado – em disputas políticas democráticas já resvalou para a violência física. O caso mais terrível dessa brutalidade motivada por desavenças ideológicas foi o assassinato do guarda municipal Marcelo Arruda, tesoureiro do PT em Foz do Iguaçu (PR), pelo agente penitenciário Jorge da Rocha Guaranho, um declarado apoiador de Bolsonaro.

Nesse contexto, foi extremamente oportuna a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de proibir o porte de armas de fogo a 100 metros dos locais de votação. A Corte tem cumprido muito bem o seu papel de zelar pela normalidade do processo eleitoral.

A proibição de porte de armas nas cercanias das seções eleitorais já estava em vigor, mas era restrita aos agentes de segurança pública. Agora, nenhum cidadão poderá portá-las nos limites definidos pelo TSE, exceto quando a presença de um policial for requisitada por juízes ou mesários. Como muito bem disse o ministro Ricardo Lewandowski, “arma e voto são elementos que não se misturam”.

“A redação dos mencionados dispositivos legais (em referência à Lei Eleitoral) não deixa margem a dúvidas: é proibido aos membros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, das Polícias Federal, Civil e Militar, bem assim aos integrantes de qualquer corporação armada, aproximar-se das seções eleitorais portando armas de fogo”, decidiu Lewandowski, relator da consulta feita pelo deputado Alencar Santana (PT-SP). O ministro foi acompanhado por todos os seus pares.

A decisão veio alguns dias após a publicação de outra resolução saneadora do TSE, a proibição do uso de celulares nas cabines de votação. Decerto o chamado voto de cabresto, ao menos na escala registrada pela historiografia do País, ficou relegado à memória da República Velha, mas seria ingenuidade supor que eleitores não possam ser coagidos por variadas razões, ainda hoje, a “comprovar” os votos que depositaram nas urnas, filmando ou fotografando o ato.

Além disso, a proibição do uso de celular na cabine – o aparelho deverá ser entregue à Mesa da seção eleitoral – previne que eleitores mal-intencionados simulem fraudes por meio de vídeos manipulados. Em tempos de disseminação instantânea de mensagens, a confusão gerada por uma armadilha assim pode ser enorme, sobretudo quando estimulada pela leviandade de Bolsonaro, o maior mentiroso sobre a segurança das urnas eletrônicas.

Eleição é tempo de paz. Os eleitores “precisam de sossego”, como enfatizou a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal. Os cidadãos devem ir às urnas com tranquilidade, sabendo que não serão submetidos a ameaças ou violências, sejam físicas ou morais. Tornou-se um chavão classificar a eleição como “a festa da democracia”. Mas, afinal, é disso mesmo que se trata. 

Teto de gastos ao gosto do freguês

O Estado de S. Paulo

É para isto que tem servido o falso discurso de responsabilidade fiscal do ministro Guedes: aos amigos de Bolsonaro, tudo; à ciência, à tecnologia e à cultura, o rigor do teto de gastos

Dentro do contínuo processo de desmoralização do arcabouço fiscal, o governo Jair Bolsonaro tem deixado claro que se guia por um critério nada republicano para definir a destinação de recursos públicos do Orçamento Geral da União. Na velha política patrimonialista de dois pesos e duas medidas, a existência do teto de gastos só é lembrada para punir os “inimigos” do presidente. Quando se trata de dar calote nos precatórios, arranjar dinheiro para reajustar o Auxílio Brasil e criar benefícios para caminhoneiros e taxistas às vésperas da eleição, o teto é “retrátil”, como diz o ministro da Economia, Paulo Guedes, e pode ser furado para acomodar os interesses de Bolsonaro ao custo da perda da credibilidade fiscal. Mas o mesmo teto, mais do que um símbolo, é um mecanismo intransponível e inviolável quando se trata de políticas para o fomento da cultura, ciência e tecnologia, alvos da guerra ideológica bolsonarista.

A obstinada campanha do governo contra essas áreas avançou até mesmo sobre as prerrogativas do Congresso para a derrubada de vetos – etapa que, até então, se caracterizava como a última do longo processo legislativo, sucedida apenas pela promulgação das leis. Não é mais. O Executivo acaba de inaugurar uma nova fase: recorreu à publicação de medidas provisórias (MPs) para descumprir legislações aprovadas por ampla maioria de deputados e senadores. Com a edição de duas MPs nessa semana, o governo driblou o Legislativo e deu caráter soberano às vontades do presidente, violando o sistema de freios e contrapesos e o princípio da separação dos Poderes estabelecido na Constituição a pretexto de obedecer à inexorável responsabilidade fiscal.

Câmara e Senado haviam dado aval, no ano passado, a uma lei que proibia o contingenciamento das verbas do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDTC), principal instrumento de financiamento da área no País. O dispositivo foi alvo de veto de Bolsonaro, mas o Congresso o derrubou e garantiu o uso integral dos recursos disponíveis no fundo para projetos e pesquisas. Com a medida provisória publicada nesta semana, no entanto, o governo limitou novamente o acesso ao dinheiro do FNDTC em 2022 e até 2026. Os deputados e senadores também haviam aprovado três leis de apoio financeiro aos setores cultural e de eventos, possivelmente os mais afetados pelas inevitáveis medidas de distanciamento social ao longo de dois anos de pandemia. Duas dessas propostas foram integralmente vetadas por Bolsonaro e, posteriormente, resgatadas pelo Congresso com a rejeição dos vetos. Com a nova MP, o Executivo voltou a impedir os repasses previstos para este ano e postergou as transferências para 2023 e 2024.

Ao justificar a edição das medidas provisórias, o governo recorreu à mesma desculpa esfarrapada: mencionou a necessidade de cumprimento da regra constitucional do teto de gastos. Assinados pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, os documentos explicam que esses cortes evitarão o bloqueio de políticas públicas em andamento. De fato, diante de verbas escassas, é do Executivo a tarefa de fazer essas escolhas. O que o ministro não contou, no entanto, é que as MPs vão permitir a liberação de recursos para o Congresso, por meio das famosas emendas de relator, base do esquema de apoio político revelado pelo Estadão e que ficou conhecido como orçamento secreto.

Na última revisão bimestral, o contingenciamento de despesas anunciado pelo Ministério da Economia pela primeira vez não foi detalhado. O motivo é que ele atingia quase metade dos R$ 16,5 bilhões previstos para as emendas. Diante da revolta da base aliada, o governo buscou uma forma de liberá-las integralmente. Agora, será possível executá-las. É para isso que tem servido o falso discurso de responsabilidade fiscal apregoado pelo ministro Paulo Guedes. Aos amigos de Bolsonaro, tudo; aos inimigos, o rigor do teto de gastos. Que o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), cumpra seu dever e devolva as medidas provisórias sem apreciá-las. 

 

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