terça-feira, 6 de setembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

Piso da enfermagem exige que se aponte fonte dos recursos

O Globo

Supremo fez bem em suspender a nova lei até que se analisem seus impactos nos setores público e privado

No afã de conquistar votos, o governo e o Congresso se lançaram com sofreguidão a uma fúria legiferante sem paralelo na História recente. Nunca se aprovaram tantas Propostas de Emenda à Constituição (PECs) quanto no primeiro semestre deste ano. E não ficou por aí. A maratona legislativa trouxe agrados a toda sorte de público em que o presidente Jair Bolsonaro e seus aliados do Centrão viam perspectiva eleitoral, como beneficiários de programas sociais, taxistas ou caminhoneiros.

Na negociação para obter apoio da oposição à PEC Eleitoral, cujas medidas estouravam o teto de gastos, as lideranças da Câmara e do Senado aceitaram a demanda para agradar outro público. Aceleraram a aprovação de uma lei que estabelece o piso salarial de R$ 4.750 para enfermeiros em todo o país (além de 70% disso para técnicos em enfermagem e 50% para auxiliares e parteiras). De acordo com um estudo da Câmara, a medida afeta 1,3 milhão de profissionais. Entidades sindicais estimam que 54% dos enfermeiros, 82% dos técnicos e 52% dos auxiliares recebem abaixo desse piso.

O argumento de oferecer “remuneração justa” a profissionais que ganharam destaque pela atuação recente na pandemia bastou para seduzir parlamentares ávidos por votos às vésperas da eleição. Infelizmente, eles se esqueceram de dizer de onde sairia o dinheiro. A medida tem impacto tanto nos cofres públicos quanto nas empresas do setor de saúde. No caso do dinheiro público, a obrigação legal de apontar a origem dos recursos orçamentários não foi cumprida pelo Congresso. Criou-se apenas um remendo para abrir espaço nas contas deste ano.

A Confederação Nacional dos Municípios estima que o novo piso acarretará despesas adicionais de R$ 9,4 bilhões apenas às prefeituras (elas empregam cerca de metade dos profissionais afetados). Associações das empresas de saúde foram em romaria ao Supremo Tribunal Federal (STF) recorrer da medida, que de uma hora para outra desequilibrou seus orçamentos, trazendo o risco iminente de cortes, demissões e deterioração nos serviços.

O ministro Luís Roberto Barroso teve o bom senso de emitir uma liminar suspendendo a aplicação da lei por 60 dias, até que Câmara e Senado resolvam as duas questões essenciais: 1) de onde sairá o dinheiro para arcar com o custo dos reajustes no setor público; 2) qual o plano para evitar, no setor privado, a quebradeira, ondas de demissão e consequente prejuízo à saúde da população em virtude dos reajustes.

Os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), saíram em defesa da lei aprovada. Pura demagogia, resultante da percepção comum entre os parlamentares de que recursos brotam por geração espontânea. Enquanto distribuía bondades com dinheiro dos outros — em especial dos contribuintes — para ganhar votos, subvertendo a um só tempo as regras fiscais e o equilíbrio de mercado, o Congresso mais uma vez empurrava com a barriga reformas essenciais ao ambiente de negócios, como a administrativa e a tributária. Elas é que trariam maior produtividade à economia, permitindo mais crescimento, com reajustes e ganhos na qualidade de trabalho, não apenas ao setor de enfermagem, mas a todas as categorias profissionais.

Chilenos acertaram ao rejeitar nova Constituição repleta de absurdos

O Globo

Em vez de recair na mística de ‘refundar o país’, Chile deveria adotar abordagem reformista mais gradual

Os chilenos acertaram ao rejeitar por ampla maioria no domingo a absurda proposta de uma nova Constituição. Os votos contrários ultrapassaram os 60%. Agora a classe política tem pela frente a árdua tarefa de chegar a um acordo sobre o que fazer. Não estão descartadas novas ondas de protestos nas ruas, como as que desaguaram na convocação da Constituinte em 2019. Neste momento, porém, o mais importante é que os chilenos evitaram um retrocesso.

É verdade que a Convenção Nacional responsável pela redação da proposta, com maioria de representantes de esquerda e independentes, não errou em tudo. Previa a manutenção da independência do banco central e a ampliação do poder regional. Ideias contraproducentes, como a nacionalização dos recursos naturais, ficaram pelo caminho. Mas eram poucos os pontos positivos num texto repleto de equívocos, em que grupos militantes conseguiram gravar um sem-número de direitos vagos ou sem cabimento.

A mística de “refundar o país”, comum na América Latina, estava por todos os lados. Um artigo previa o “pluralismo jurídico” e reconhecia sistemas jurídicos dos povos indígenas, fonte potencial de atrito no cumprimento da lei. Sindicatos passariam a ter o direito de fazer greve por qualquer motivo, caminho aberto para abusos. Empresas correriam mais riscos de ser alvos de ações trabalhistas infundadas.

Artigos bem-intencionados estavam condenados a virar letra morta. Os cidadãos teriam direito assegurado pelo Estado a moradia “digna” e em “localização apropriada”. Um dos infindáveis 388 artigos ainda dizia que o Estado deveria promover uma educação baseada na empatia e respeito pelos animais.

No plebiscito do domingo, ao contrário das votações dos últimos 13 anos, o voto foi obrigatório. Não há, portanto, dúvida a respeito da vontade popular, por mais que os partidários do texto possam espernear. É compreensível o desejo de ter uma Constituição diferente da vigente desde a época de Augusto Pinochet. Mas falta consenso sobre o caminho a seguir. Desde o início, o mais sensato teria sido promover reformas que garantissem mais direitos sociais, sem jogar fora o arcabouço jurídico liberal, que garantiu ao Chile o posto de economia de maior sucesso na América Latina.

O presidente Gabriel Boric, o ex-líder estudantil eleito neste ano, era favorável à proposta da Convenção Nacional. Agora convocou os partidos políticos a promover “um espaço para o diálogo transversal sobre os desafios que devemos enfrentar como país para dar continuidade ao processo constituinte”. Palavras que traduzem sua perplexidade e indecisão.

As coalizões tradicionais, que dominaram a política chilena por anos, não chegaram ao segundo turno da eleição no ano passado, tal a crise de representatividade. Agora, a derrota da esquerda e dos independentes mostra que o pêndulo foi demais para o outro lado. O desafio de Boric é construir, com todos os partidos, uma resposta política capaz de encontrar um novo equilíbrio.

Não à Carta

Folha de S. Paulo

Eleitor do Chile rejeita proposta de Constituição com mudanças amplas em demasia

À primeira vista, a ampla rejeição popular à proposta de nova Constituição no Chile parece um desfecho amargo para um processo que consumiu enorme energia política ao longo de três anos. Todavia é possível que os chilenos, donos da maior renda per capita da vizinhança, tenham se livrado de atribulações mais graves a longo prazo.

A saga teve início na onda de protestos populares de 2019 —que, a exemplo do que ocorrera no Brasil seis anos antes, levaram às ruas uma insatisfação clara, direcionada ao governo do direitista Sebastián Piñera, e demandas difusas.

Em resposta, as forças partidárias do país aceitaram propor uma assembleia destinada a produzir uma nova Carta, substituindo a herdada dos tempos da ditadura militar. Naquele contexto, o colegiado eleito para a tarefa mostrou acentuada propensão à esquerda.

Da mesma forma, o pleito presidencial de 2021 teve como vitorioso o jovem esquerdista Gabriel Boric, então com 35 anos, oriundo de movimentos estudantis. Rompia-se ali a preferência por nomes moderados que marcava três décadas de redemocratização no país.

Os humores chilenos mudaram mais uma vez, no entanto. Agora, é o governo de Boric que se desgasta com as dificuldades econômicas pós-pandemia, em particular a escalada global da inflação. A nova Constituição se tornou mais vulnerável a ataques ideológicos —e, como não faltaria nos tempos atuais, campanhas de fake news.

O longo texto apresentado aos eleitores é, de fato, problemático. Pretende-se com ele revirar o ordenamento político, econômico e social do país, de normas eleitorais ao aborto, de gastos do governo aos direitos de indígenas, além de ambiciosas normas ambientais. Reviravolta tão ampla é difícil de explicar, defender e executar.

O Chile democrático é um caso de sucesso econômico, embora seus serviços públicos deixem a desejar. Na OCDE, entidade que reúne os países mais desenvolvidos, apresenta um dos melhores desempenhos fiscais, mas ao mesmo tempo a menor despesa em proteção social. Seu sistema previdenciário também é motivo de grande insatisfação entre os usuários.

Há boa margem para expandir os programas de seguridade sem sacrificar o equilíbrio orçamentário nem elevar em demasia a carga tributária. Esse pode ser o foco de um debate constitucional a ser retomado no país —e um tema já espinhoso o bastante.

Tido como derrotado na consulta popular, Boric fez o certo ao aceitar com serenidade o resultado das urnas. Há pela frente negociações complexas e desgastantes, mas próprias da democracia, num Chile que tem erros a corrigir e avanços a preservar.

Um agosto pior que outro

Folha de S. Paulo

Números de queimadas avançam na Amazônia, marca que não espanta sob Bolsonaro

Em quatro anos de antiambientalismo do governo Jair Bolsonaro (PL), o país infelizmente se acostumou a colecionar recordes de destruição da floresta amazônica.

Nessa galeria da devastação, o mês de agosto, que marca o início do período mais crítico de estiagem no bioma, ocupa um inglório lugar de destaque.

De 2019 em diante, passaram a ser registrados os maiores números de queimadas desde 2010. Não foi diferente neste ano.

Seus 31 dias contabilizaram nada menos que 33.116 focos de fogo, segundo o Inpe, perfazendo a pior marca em 12 anos.

Uma comparação ajuda a dar a magnitude do descalabro atual. Os quatro agostos da administração Bolsonaro somaram 121.383 pontos de queimada na Amazônia, ao passo que, nos oito anos de 2011 a 2018, esse mesmo mês totalizou 128.722 incêndios.

Prenúncios não faltaram. No dia 22, o Inpe detectou a ominosa marca de 3.358 focos de calor, o maior número de queimadas em um único dia de agosto desde 2002 —superando a cifra registrada no famigerado "dia do fogo", em 10 de agosto de 2019, convocado por ruralistas na área conflagrada de Novo Progresso, no Pará.

Num bioma úmido como o amazônico, tais incêndios, cumpre lembrar, não surgem de forma espontânea, sendo necessária a intervenção humana —e, não raro, criminosa— para ocorrer.

Tudo começa com o desmatamento. Grileiros e invasores promovem a destruição da floresta para depois, no período seco, empreender a queima dos resíduos.

Nesse sentido, os seguidos recordes de queimadas não chegam a surpreender, já que, durante os anos Bolsonaro, o corte raso tem-se mantido nos patamares mais altos da última década.

Além dos números, o avanço das queimadas preocupa também pelos locais onde vem se dando.

De acordo com a ONG Greenpeace, quase metade das chamas de agosto concentraram-se em somente dez municípios, cinco dos quais localizados na região conhecida como Amacro (partes de Amazonas, Acre e Rondônia), onde o governo apoia a criação de uma nova frente de expansão agrícola.

Essa região, que até pouco tempo ostentava um dos maciços vegetais mais preservados da Amazônia, acumulou no ano passado cerca de 20% de todo o desmatamento do bioma. Mais um feito infeliz do governo de turno.

A ‘mamata’ como método

O Estado de S. Paulo

Bolsonaro entrega cargos aos apadrinhados do Centrão, como o ‘analista sensorial de cachaça’ indicado para a Funasa, responsável por ações de saneamento

Em um país onde 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada e cerca de 100 milhões de brasileiros (45% da população) convivem com esgoto sanitário a céu aberto em pleno século 21, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), vinculada ao Ministério da Saúde, deveria ser administrada com mais seriedade. Trata-se de um órgão de importância capital para o desenvolvimento humano dos brasileiros, cuja missão precípua é justamente “promover a saúde pública e a inclusão social por meio de ações de saneamento e saúde ambiental”. Entretanto, no governo de Jair Bolsonaro, a Funasa foi reduzida à condição de mercadoria nesse degenerado contubérnio que o presidente da República estabeleceu com o Centrão em prol de sua permanência no cargo.

O Estadão revelou que mais da metade das superintendências da Funasa no País (em pelo menos 18 Estados), além de diretorias do órgão, está sob controle de apaniguados de parlamentares do Centrão. Muitos deles não têm qualificação profissional para ocupar os cargos. No caso mais estarrecedor, que seria anedótico, não fosse trágico para quem depende dos serviços da Funasa, a superintendência no Espírito Santo foi entregue ao dono de um restaurante self-service que afirma ser “especialista em análise sensorial de cachaça”. O currículo do superintendente Ayrton Silveira Júnior, pasme o leitor, assim é descrito no próprio portal da instituição.

O deputado Neucimar Fraga (PP-ES), padrinho da indicação do sommelier de cachaça para a chefia da Funasa em seu Estado, afirma categoricamente que toda a experiência do pupilo em administração de restaurantes, além de sua especialização em “boas práticas na fabricação da bebida”, contribui para que Ayrton Silveira Júnior realize um “bom trabalho” à frente da superintendência estadual do órgão. “Ele tem organizado a Funasa aqui, tem destravado projetos que estavam parados há muitos anos no Espírito Santo. O problema da Funasa aqui era de gestão”, justificou o parlamentar ao Estadão.

Outros indicados por parlamentares do PL, partido de Bolsonaro, do PP e do Republicanos, legendas que compõem o núcleo duro da atual conformação do Centrão, além do PSD, colonizam diretorias e superintendências da Funasa País afora, de olho num orçamento de quase R$ 3 bilhões. Em comum entre os apadrinhados, a incongruência de suas trajetórias profissionais em relação aos objetivos da Funasa e a proximidade deles com políticos que ocuparam o vácuo de poder deixado pela incompetência de Bolsonaro e por sua insensibilidade às aflições de tantos de seus governados.

Quando candidato em 2018, Bolsonaro prometera “acabar com a mamata” da ocupação política de Ministérios, empresas estatais, agências reguladoras e outros órgãos técnicos. Como presidente da República, ao contrário, Bolsonaro entregou nacos da administração a parlamentares famintos por orçamentos bilionários em troca de sua permanência no cargo, a despeito do rol de crimes de responsabilidade que cometeu – e segue cometendo impunemente. Nunca a debilidade moral, política e administrativa do chefe do Poder Executivo federal foi tão custosa para a Nação.

O aparelhamento da Funasa já seria escandaloso se fosse um caso isolado. Mas não é. Como a Hidra, o Centrão já se apoderou do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) e da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). Bilhões de reais têm sido desviados por meio de emendas do “orçamento secreto” destinadas a esses órgãos.

Tal é o desassombro dos cupins da República que mais parece que o País não é regido por uma Constituição que impõe a impessoalidade e a transparência como princípios da administração pública. É como se o Brasil não dispusesse de leis que demandam lisura e competência na gestão do Estado. Onde estão a Controladoria-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República?

Eis o retrato de um governo liderado por um presidente que só é capaz de enxergar as necessidades de seus governados sob a ótica de seus interesses particulares mais imediatos. A “mamata” não só não acabou, como se tornou um método de governo.

Freio na irresponsabilidade

O Estado de S. Paulo

Projeto do piso da enfermagem atropelou ritos, omitiu-se sobre fonte de financiamento e abriu a porteira para outras categorias; suspensão por liminar do STF era, pois, esperada

Em liminar dada no último domingo, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), atendeu a um pedido da Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços (CNSaúde) e suspendeu a vigência do novo piso nacional da enfermagem. A medida cautelar gerou revolta entre os profissionais da área e os parlamentares que aprovaram o projeto, mas sua concessão pelo ministro era mais do que esperada. Trata-se de uma consequência natural do debate público sobre o tema, marcado pela superficialidade do Legislativo e pela omissão do Executivo – agravada, neste caso, pelo desespero eleitoral de Jair Bolsonaro. Independentemente do incontestável mérito da categoria ao longo da pandemia de covid-19, o assunto jamais poderia ter sido tratado da forma irresponsável como foi, sobretudo quando envolve o setor público, entidades filantrópicas e mais de 2,7 milhões de profissionais.

Desde a apresentação até a sanção de tal projeto de lei, passaram-se pouco mais de dois anos, um tempo expresso no processo legislativo. A proposta nasceu com um insanável vício de iniciativa – foi apresentada por um senador, quando a proposição de pisos salariais é prerrogativa do Executivo. Não poderia, portanto, nem mesmo ter tramitado, e, uma vez aprovada, obrigatoriamente deveria ser vetada. Mas o Congresso inovou: não só deu aval ao projeto, como atrasou seu envio à sanção presidencial. Dentro de um espaço de dois meses, o Legislativo apresentou e promulgou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para retirar do governo a exclusividade na proposição do piso, eliminando, de forma retroativa, a natureza inconstitucional do projeto de lei que havia sido aprovado semanas antes – somente então ele foi enviado à sanção. Em segundo lugar nas pesquisas, Bolsonaro acatou a proposta, não por concordar com seus termos, mas para não perder votos de uma categoria majoritariamente feminina. Chamada a se manifestar na ação, a Advocacia-Geral da União (AGU) se manifestou pela constitucionalidade do piso – incentivando o avanço de quase 200 projetos de lei que visam a regulamentar a remuneração de profissionais como fisioterapeutas, guardas municipais, policiais e conselheiros tutelares, já em tramitação na Câmara e no Senado.

A tentativa de usar a Constituição para impedir um veto presidencial já seria suficiente para condenar a atuação conjunta do Congresso e do governo. Mas, unidos, eles foram muito além. A despeito do impacto que a majoração dos salários da enfermagem teria nas contas públicas, fizeram a legítima cortesia com o chapéu alheio e aprovaram o piso sem fixar uma fonte de recursos para custeá-lo. O projeto se limitou a deixar as indefinidas possibilidades de financiamento em aberto – entre elas a arrecadação oriunda da legalização dos jogos de azar e a inclusão do setor de saúde entre os que fazem jus à desoneração da folha. Um grupo de trabalho da Câmara calculou que a política salarial exigiria R$ 16,3 bilhões extras, dos quais R$ 4,1 bilhões do setor público municipal e R$ 5 bilhões de entidades sem fins lucrativos.

Diante da negligência do Executivo e do Legislativo, restou ao ministro Luís Roberto Barroso chamá-los a assumir as responsabilidades que deixaram em segundo plano. Em sua decisão, o ministro deu 60 dias para que seja esclarecido o impacto financeiro do piso nacional da enfermagem, bem como suas consequências sobre a empregabilidade e a qualidade dos serviços de saúde. Nas palavras de Barroso, ao aprovar e sancionar o projeto sem cuidar das providências para viabilizar sua execução, governo e Congresso “teriam querido ter o bônus da benesse sem o ônus do aumento das próprias despesas, terceirizando a conta”. É apenas mais uma história a ilustrar o pensamento mágico predominante no que diz respeito ao orçamento público, de forma geral, e ao financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS), em particular. Em um ano eleitoral, e considerando os resultados das pesquisas, tudo indica que lamentavelmente não será a última.

O Chile em busca de equilíbrio

O Estado de S. Paulo

Rechaço a Carta irresponsável mostra maturidade política; demandas legítimas ainda podem ser satisfeitas

Os chilenos estão certos em desejar uma renovação constitucional. Os chilenos estão certos em rejeitar a Carta proposta pela Assembleia Constituinte. A aprovação da Constituinte em 2020, por 80% dos eleitores, foi uma vitória da democracia; o rechaço a seu texto, por 62%, foi uma vitória da democracia. A chave para elucidar o paradoxo está nas distorções políticas entre uma e outra; a chave para superá-lo, na correção dessas distorções.

Tracionada pelos protestos de 2019, tensionada pela pandemia, em 2020, a eleição dos constituintes mesclou o anseio pela renovação da Constituição herdada da ditadura de Pinochet com retaliações às classes políticas e ao governo direitista de turno. A Assembleia foi dominada por independentes e esquerdistas radicais que não refletiam o equilíbrio do Chile entre direita e esquerda e sua aversão aos extremos.

Inebriada pelo utopismo latino-americano, a Carta, inicialmente motivada pela demanda de igualdade social da velha esquerda, tornou-se uma lista de desejos das esquerdas identitárias pós-modernas. Seus 388 artigos e mais de 100 “direitos fundamentais” resultariam numa das maiores e mais prolixas constituições do mundo.

Freios e contrapesos seriam desmantelados se o Senado fosse substituído por uma “Câmara das Regiões”; se um “Conselho de Justiça” tivesse poder sobre as nomeações e procedimentos da Suprema Corte; ou se etnias se tornassem “nações” com Justiças paralelas. O Judiciário, o sistema de saúde e as eleições teriam de operar sob uma “perspectiva de gênero”.

Somem-se aos riscos à governabilidade os riscos à economia, se sindicatos tivessem direitos irrestritos de greve; fazendeiros perdessem direitos sobre suas águas; ou expropriações fossem pautadas não pelos preços de mercado, mas pelos que os políticos considerassem “justos”. Economistas estimaram que os gastos públicos aumentariam entre 9% e 14% do PIB.

Pretendendo produzir mais autonomia regional, representatividade das minorias e inclusão social, a Carta destruiria as condições para tanto: o crescimento, a redução da pobreza e a estabilidade institucional que o Chile vem galgando a taxas superiores às da América Latina.

A Caixa de Pandora foi fechada, mas as demandas originais seguem legítimas. Como outros povos em desenvolvimento, o chileno anseia acrescentar aos direitos civis e políticos os direitos sociais. O Congresso decidirá se o caminho é uma nova Constituinte ou reformas na atual Constituição.

Se o experimento fracassou ou não, depende das lições aprendidas. Uma é que uma Constituição deve ser clara e sucinta, fixando regras gerais para o funcionamento do Estado e deixando o resto às negociações políticas. A outra é que as disputas devem ser pautadas pela rejeição a populismos e sectarismos e pela busca de consensos. O modo pacífico e democrático com que a Constituinte foi aberta e encerrada é alvissareiro. O bom senso prevaleceu. A seguir assim, é provável que o Chile consiga acrescentar conquistas sociais às econômicas e políticas, sendo, mais uma vez, um exemplo para a América Latina.

Rejeição fulmina proposta de nova Constituição no Chile

Valor Econômico

Governo chileno irá se recompor para agregar mais forças políticas

A maioria esmagadora dos chilenos quer uma nova Constituição, mas rejeitou a Constituição proposta por 154 delegados eleitos para esse fim em Assembleia Constituinte. No domingo, 12,7 milhões de chilenos foram as urnas, 80% dos aptos a votar - voto obrigatório - para dizerem em massa não à proposta. Foram 61,9% pela rejeição e 38,1% pela aprovação, um resultado que não deixa margem a interpretações. O presidente Gabriel Boric, defensor da proposta, foi derrotado e iniciou uma rodada de negociações com partidos políticos e movimentos sociais para traçar um “novo itinerário constituinte”.

O processo para mudar a carta magna deixada pela ditadura de Augusto Pinochet foi inovador. A escolha foi feita nas urnas, na qual participaram 42% da população apta a votar, sem a participação de líderes políticos dos partidos tradicionais, e composta paritariamente por homens e mulheres, com representação de povos indígenas. Sua composição, porém, refletiu uma correlação de forças diferente daquela desenhada pelas eleições tradicionais para o parlamento. Esse foi um dos problemas para que suas propostas obtivessem aceitação massiva.

Na Constituinte, dois terços dos membros pertenciam aos vários matizes da esquerda. A direita, com direção renovada pelo radical José Antonio Kast, da Frente Social Cristã, que venceu Boric por pequena vantagem no primeiro turno, mal chegou a um terço dos participantes. Nas eleições para o Congresso, no ano passado, o perfil político foi marcadamente diferente. A direita conquistou metade do Senado, antes nas mãos de agremiações de centro-esquerda, e praticamente metade da Câmara, sem um partido com maioria.

A direita obteve 68 votos, mais 6 de um candidato que ficou em terceiro lugar no primeiro turno, Franco Parisi, também direitista, e elegeu 6 deputados. As legendas de esquerda somaram 74 deputados. O Aprovo Dignidade, de Boric, elegeu 37 deputados e quatro senadores.

Os resultados das eleições de 2020 refletiram os violentos protestos de 2019, como prova a ascensão à Presidência de Gabriel Boric, de um movimento que guarda diferenças com os partidos tradicionais, inclusive os da esquerda. De outro lado, houve avanço da direita, em um precário equilíbrio que forçou Boric, como forçaria Kast, a ter de ampliar suas alianças para governar. A predominância majoritária da esquerda na Constituinte pareceu um ponto fora da curva em um país com marcado viés conservador.

Se a Constituição de Pinochet, já modificada, garantia o amplo predomínio do setor privado no campo social e econômico, produto de uma feroz ditadura, a nova Constituição virava o leme em direção radicalmente oposta, e desagradou a maioria do país.

A proposta constituinte estendeu como poucas no mundo os direitos sociais. Reconheceu o Chile como Estado plurinacional, com autonomia dos povos indígenas, com direito a sistema judicial próprio. O Estado assumiria o papel de protagonista principal, tornando educação, saúde e previdência bens públicos que têm a obrigação de prover. O preenchimento de cargos públicos deveria ser paritário. O direito ao aborto seria ampliado. Os direitos ambientais teriam a primazia na Constituição. Seus 388 artigos enfeixam todo o ideário ambientalista, estatista e de defesa dos direitos populares da esquerda, enquanto centristas e direitistas viram nessa espécie de utopia a versão gauche do populismo.

As mineradoras, no país que mais produz cobre no mundo, e no segundo que mais produz lítio, teriam seus impostos aumentados, controle ambiental mais severo e poder reduzido - povos indígenas poderiam vetar projetos em seus territórios.

Ao empurrar o pêndulo político muito à esquerda, os constituintes alargaram o campo no qual algumas de suas propostas podem ser aceitas. Ninguém quer a permanência do texto pinochetista e o que ocorrerá agora é uma incógnita. O processo de mudança de Constituição provavelmente, retornará ao leito político tradicional. Os partidos conservadores preferem abrigá-lo no Congresso, entregue a uma comissão de notáveis. Em posição de fraqueza com a rejeição, Boric pode ter de mudar de ideia e envolver-se em negociações parlamentares para aprovar o maior número possível de propostas viáveis inscritas na Constituição rejeitada. Seu governo deve passar por uma recomposição, agregando mais forças políticas, e buscar passos possíveis num ambiente onde ninguém tem a maioria.

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