segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Sergio Lamucci - Os problemas do Auxílio Brasil

Valor Econômico

O desenho malfeito e a expansão sem planejamento do programa têm causado problemas para a principal política de transferência de renda do país

O desenho malfeito e a expansão sem planejamento do Auxílio Brasil têm causado problemas para a principal política de transferência de renda do país, além de gerar incertezas sobre as contas públicas. O programa que sucedeu o Bolsa Família recebe críticas de especialistas principalmente pelo fato de destinar um valor fixo por família, a despeito do número de integrantes. Isso provoca estragos no Cadastro Único, o banco de dados usado numa série de programas sociais.

O governo de Jair Bolsonaro também atropelou regras fiscais para elevar o valor do benefício e o total de famílias atendidas. A mais recente manobra foi por meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Kamikaze, aprovada em julho. Com a medida, o Auxílio Brasil subiu de R$ 400 a R$ 600, além de terem sido instituídos o bolsa caminhoneiro e o auxílio taxista. A PEC foi o mais recente drible no teto de gastos, com o objetivo de tentar melhorar a qualquer custo a popularidade do presidente, afetada em especial pela inflação alta.

A mudança do Bolsa Família para o Auxílio Brasil se deu em novembro de 2021, levando a um salto do número de famílias atendidas e do volume de recursos destinados à transferência de renda. Naquele momento, o Bolsa Família chegava a cerca de 14,5 milhões de famílias. A partir do penúltimo mês do ano passado, foi substituído pelo Auxílio Brasil, ampliado inicialmente para 17 milhões de famílias. Em setembro deste ano, o programa pagou o benefício de R$ 600 para mais de 20,65 milhões de famílias, segundo números do Ministério da Cidadania.

“Um programa que custava cerca de R$ 35 bilhões aumentou para mais de R$ 150 bilhões [contando com um valor de R$ 600 para todo o ano que vem] em muito pouco tempo, sem nenhum critério”, resume Fernando Veloso, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre) - que destaca, ainda, “as mudanças frequentes, que geram enorme incerteza para as famílias”. Em 2020, para combater os efeitos da pandemia da covid-19, o extinto auxílio emergencial chegou a atender mais de 67 milhões de pessoas.

De 2008 a 2010, os gastos com o Bolsa Família equivaliam a cerca de 0,35% do PIB, número que subiu para 0,39% do PIB em 2011 e oscilou próximo a 0,45% do PIB de 2012 até o fim da década passada. Já o Auxílio Brasil deve somar aproximadamente 1,4% do PIB em 2023, considerando que o valor do benefício será de R$ 600 durante todo o próximo ano. As estimativas são do economista Bráulio Borges, da LCA Consultores e pesquisador associado do FGV Ibre.

Como o programa paga o mesmo valor por família, houve uma explosão do número de pessoas que declaram viver sozinhas. “Enquanto para toda a população brasileira a proporção de pessoas morando sozinhas está em torno de 15%, entre beneficiários do Auxílio Brasil essa proporção saltou para cerca de 25% em poucos meses”, diz a socióloga Letícia Bartholo, especialista em políticas públicas e gestão governamental. “Isso indica claramente que as pessoas estão se inscrevendo no Cadastro Único de forma isolada, e não na família em que residem”, afirma ela, ex-secretária nacional adjunta de Renda de Cidadania no governo Dilma Rousseff.

Segundo Letícia, “além de ser extremamente prejudicial à focalização da transferência de renda, esse ‘desmembramento de famílias’ no Cadastro Único prejudica toda a capacidade de o banco de dados funcionar como o orientador das políticas públicas às famílias mais vulneráveis do país”. Ela destaca que, “além do Auxílio Brasil, mais de 20 programas sociais usam o Cadastro Único para seleção ou acompanhamento de beneficiários”.

Sócio da BRCG Consultoria, Vinícius Botelho diz que esse é um problema “dificílimo de ser revertido”, porque será necessário rever “esses cadastros todos”, o que não é trivial. Ele também ressalta o crescimento do número de famílias com uma só pessoa a partir de novembro de 2021, que aumentou de 2,2 milhões naquele mês para 3,8 milhões em junho deste ano, de acordo com dados do Ministério da Cidadania. “Depois de arrumar o desenho da transferência de renda para algo que leve em conta as necessidades de cada família e a capacidade de auditoria do Estado, será preciso fazer uma agenda técnica grande de revisão desses cadastros”, afirma Botelho, ex-secretário do Ministério do Desenvolvimento Social no governo Michel Temer e ex-secretário do Ministério da Cidadania no começo do governo Bolsonaro. Para ele, pode levar “um governo inteiro para arrumar o estrago que parece ter ocorrido no Cadastro Único”.

E o programa ficou grande demais? Para Veloso, o tamanho poderia ser adequado se o desenho tivesse sido bem feito. “Eu diria que ele cresceu muito rápido, sem nenhum critério”, reitera ele, autor de uma proposta para a ampliação do Bolsa Família, feita com Botelho e o economista Marcos Mendes, chefe da assessoria especial do ministro da Fazenda de 2016 a 2018. Pelo projeto, divulgado em setembro de 2020, haveria fusão do programa com o abono salarial, o seguro defeso e o salário família, respeitando o teto de gastos, a um custo de R$ 57 bilhões. De lá para cá, o IPCA subiu quase 20%. Além da inflação, uma revisão de valores teria de levar em conta a evolução da renda e da pobreza.

Veloso lembra que havia na proposta uma simulação com um orçamento de R$ 100 bilhões, mostrando melhores resultados na redução da pobreza e aumento da cobertura dos mais vulneráveis. “Mas nós também chamamos atenção para a necessidade de financiar essa expansão do programa de forma adequada. Caso contrário, o resultado é mais inflação e instabilidade da renda, o que prejudica exatamente o público-alvo do programa”, diz Veloso. Sem isso, há uma piora da percepção sobre as contas públicas, o que tem efeitos desfavoráveis sobre a inflação, por fazer o câmbio ficar num nível mais desvalorizado e o risco país mais alto do que seria possível.

Para Letícia, um programa que destine 1,4% do PIB aos 25% mais pobres da população não é exagerado. “O problema não está na proporção do PIB dedicada ao programa, mas em como isso foi feito: sem planejamento, com um desenho péssimo, gerando problemas de focalização que fazem com que, ao mesmo tempo em que o orçamento da transferência de renda tenha crescido substantivamente, continuemos a ver pessoas passando fome”, diz ela.

Uma política de transferência de renda mais ampla é importante num país desigual e com níveis elevados de pobreza como o Brasil. Isso requer, porém, um programa bem desenhado e financiado com responsabilidade fiscal, duas pré-condições deixadas de lado pelo governo Bolsonaro.

 

2 comentários:

  1. Guedes e Bolsonaro são completamente incompetentes e desinteressados nas políticas de transferência de renda. Sempre foram contra, só mudaram de posição quando a população começou a se revoltar e a se posicionar contra Bolsonaro perto das eleições, depois que o Brasil voltou ao mapa da fome no mundo e que mais de 30 milhões de brasileiros sofrem com este drama. Queriam um novo programa, que não fosse associado ao de Lula e do PT, e precisavam mudar coisas pra poder alterar o nome. Quase todas as mudanças foram pra pior, embora os valores sejam mais altos. Ou seja, o governo gasta mais, mas a eficiência é muito menor. O programa de Lula foi sendo corrigido e aperfeiçoado, o de Guedes e Bolsonaro é só demagógico, mal planejado e mais caro. Vai durar só até a eleição...

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  2. Tudo degringolou no País de Bolsonaro.

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