Folha de S. Paulo
Nessa competição, só a urna eletrônica permanece
íntegra
Eleições são
tão essenciais à democracia quanto à autocracia. Eleições distintas, mas nem
sempre se percebe como: livres e justas, de um lado; um simulacro mais ou menos
disfarçado, de outro. Todo autocrata gosta de brincar de se eleger sem risco.
Precisa exibir musculatura. Putin, Chávez, Maduro, Ortega, Orbán, Erdogan,
Lukashenko: Bolsonaro joga nessa superliga e as eleições de 2022 já avançam
nessa direção.
Eleições podem apresentar graus de autoritarismo quando se tornam jogo assimétrico. Regras são violadas sem consequência e um lado dispõe e usa de recursos de poder incomparáveis ao outro. A ciência política dá contribuições analíticas à avaliação do autoritarismo eleitoral contemporâneo. São lentes para se observar cada variável do processo.
Garantir eleições justas depende da livre
formação e expressão da escolha do eleitor. Requer informações públicas
confiáveis e ausência de medo. Depende da distribuição transparente e
equilibrada de dinheiro de campanha, sujeito à fiscalização, e de instituição
de estado imparcial para arbitrar esse jogo.
Sabemos que a reeleição traz problemas para
o fair play democrático. O incumbente, que está na cadeira e tenta se reeleger,
leva sempre alguma vantagem. A vantagem dada pela máquina de governo, ou pelo
"governismo", mesmo sem violar regras eleitorais, é difícil de se
neutralizar. Mas aceitamos conviver com essa anomalia. Com esse "fator
desequilibrante", diria Tite.
A eleição presidencial de 2022, contudo,
não é mais um exemplo da vantagem do governismo. Curiosamente, é a primeira em
que o incumbente sai
atrás nas pesquisas e é derrotado
no primeiro turno. Ao mesmo tempo, a campanha bolsonarista tem cometido
violação estrutural e não ordinária das regras do jogo. Descumpre a lei
massivamente e desafia instituições de controle. Por fadiga e hesitação, elas
não dão conta. Não é governismo, mas bolsonarismo.
Os exemplos de abuso de poder (político,
econômico, religioso e midiático) na campanha de Bolsonaro são inéditos e
vastos em escala. A utilização do aparato do estado, de recursos orçamentários,
de notícia falsa travestida de liberdade de expressão e do pânico moral
travestido de liberdade religiosa deveria resultar em sanções como
inelegibilidade e cassação de mandato.
Nessa Blitzkrieg, Jair Bolsonaro se utiliza
de armas pesadas. A começar pelo assédio institucional permanente às
instituições de justiça, sobretudo
ao STF e ao TSE; ao envolvimento das Forças Armadas na certificação do
pleito, como se fosse atribuição constitucional; a ameaça periódica de golpe; a
campanha antecipada e permanente por meio de performances e comícios pelo país;
a instrumentalização de feriados nacionais.
Ou a construção de propulsor mastodôntico
de corrupção coronelista, que se chamou de "orçamento secreto"; ou o
conjunto de auxílios financeiros criados para o período eleitoral, sob o ardil
jurídico do estado de emergência; ou o perdão de dívidas. O gasto eleitoreiro,
vestido de gasto social, constrói um ambiente econômico artificial
insustentável.
A disseminação de notícias falsas e
escatológicas, e a transformação de culto religioso em ritual de estelionato
espiritual de igreja com partido, completam o arsenal.
O tempo judicial, somado aos remédios
modestos que juízes eleitorais dispõem, não acompanha o tempo eleitoral na era
da comunicação instantânea. A Justiça Eleitoral continua a perder esse jogo.
Não voltaremos a ter pleitos equilibrados sem repensar esse desenho
regulatório.
O país não está dando passos para trás. Dá
passos para o desconhecido. Um desconhecido onde a vida é descartável, a mulher
é servil, o diferente é violentado, a criança não tem proteção social, laços
são precários e regidos por ódio e medo. Onde Deus é cruel e a lei é a do homem
armado que atira primeiro. Hoje ele mata, amanhã ele morre.
Eventos climáticos extremos, pobreza
extrema e riqueza extrema, protegida em bunkers físicos e simbólicos, compõem a
distopia que Ignácio de Loyola Brandão foi capaz de imaginar em "Não verás
país nenhum", 40 anos atrás. Bolsonaro vende essa vida perigosa e
miserável como "vida livre".
Esse ritual visceralmente comprometido pela
delinquência política, Bolsonaro chama de "eleições livres". E,
apesar de tudo, ainda pode perder, pois a urna eletrônica segue funcionando. Se
perder, chamará de "eleições fraudadas". Sua derrota é o fio que
resta para um futuro menos bruto, seco e aquecido. Mas não verás eleição democrática
nenhuma.
*Professor de direito constitucional da
USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa,
Ciência e Liberdade - SBPC
Texto brilhante do colunista! Parabéns a ele e ao blog que divulga seu trabalho! "Estelionato espiritual de igreja com partido"... E tem gente que não acredita na capacidade inovadora do GENOCIDA... A "delinquência política" de Jair Bolsonaro ainda não foi bem estudada e nem entendida! Democracia já é coisa do passado por aqui! Lula poderá tentar retornar a ela, mas não é garantido que consiga.
ResponderExcluirParabéns, articulista!
ResponderExcluirÓtimo texto.
Sua descrição é bem exata. A melhor q vi.
Preferiria uma receita prática pra temos uma "eleição democrática" na sua acepção. Eu não a tenho.
Continuemos buscando. Por enquanto, o único caminho na direção democrática é Lula.
Construo em cima do texto do autor "é a primeira em que o incumbente sai atrás nas pesquisas e é derrotado no primeiro turno".
1a vez.
Quem antecedeu bolsonaro, se reelegeu. Lula se reelegeu e elegeu seu sucessor. Que eu saiba, nenhum deles precisou desse "ritual visceralmente comprometido pela delinquência política".
Conclusão: é possível ser mais democrático e honesto e ganhar.
Bolsonaro precisa de "armas pesadas" onde outros as dispensaram por uma razão: ele cometeu muitos erros, é muito incompetente.
Ele, bolsonaro, precisa jogar sujo (com anomalias não aceitas) onde outros venceram jogando com regras (e anomalias aceitas).
Pois é, como diz o autor, "incumbente, que está na cadeira e tenta se reeleger, leva sempre alguma vantagem" q não tem servido ao bolsonaro (demérito dele mesmo - ele nada tem pra apresentar, daí q sua vantagem da "cadeira" esgotou-se).
ExcluirÉ como um dirigente q usa a bomba atômica pra ganhar uma batalha contra quem não a tem. Este dirigente não criou a b.atomica, ele só a usa.
No caso do bolsonaro, ele não criou (nem tem competência pra criar) as "armas pesadas; só as copia e usa.
Tanto não criou, q tais armas são usadas por vários dirigentes ao redor do mundo (ditadores). Mas é exatamente o fato de PRECISAR usá-las q demonstra sua burrice: outros ganharam a batalha sem delas fazer uso (e delas tb dispunham).
Digo batalha porque a guerra, bolsonaro perderá. Como os golpistas de 64 e os ao redor do mundo: no longo prazo o bem sempre vence o mal (ainda mais q bolsonaro é burro pra caramba).
Bolsonaro sempre jogou sujo, desde o exército em que planejou explodir bombas e depois apresentou como sua uma carta publicada pela Veja que foi escrita por um jornalista - a carta era bem escrita e o ex-capitão era semianalfabeto, com limitadíssima capacidade de expressão! O canalha é uma fraude completa... A diferença é que, agora, no poder e com muitos apoiadores, sua sujeira é muito maior e mais imunda!
ResponderExcluirSobre a (in?)capacidade de Bolsonaro, veja o artigo de hoje de Nicolau da Rocha Cavalcanti.
ResponderExcluir''Não Verás País Nenhum'',li faz pouco tempo.
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